Hoje, ao passar pela avenida marginal, descobri que os castanheiros estão, muitos deles, sem folhas, e os outros apresentam uma roupagem envelhecida, encarquilhada, prestes a despenhar-se no calcário dos passeios, para que o sopro do vento a enovele e a empurre para dentro do nosso esquecimento. Não há maior sabedoria do que ser capaz de impelir as coisas para o lugar onde a memória perdeu os seus parcos poderes. Há pessoas que têm memórias fabulosas, vivem numa casa atafulhada de folhas mortas. Parecem ter nisso um grande prazer, embora o rancor nunca deixe de borbulhar se a recordação é adversa. Poderia escrever uma diatribe contra a memória e, ao mesmo tempo, uma apologia em seu louvor. Esta possibilidade de fazer uma coisa e o seu contrário deveria ser estimada e desenvolvida com afinco. Nunca se sabe de onde sopra o vento e aquilo que a vida exige de nós. Ainda no Natal nos parecia risível andar mascarados como se o ano fosse todo ele um contínuo Carnaval, agora é o que se vê. Também eu uso máscara, mas ponho-a sobre aquela que usava todos os dias, embora ninguém se apercebesse. Vou equipar-me e pôr-me a caminho para ver se chego a horas ao sítio onde estou.
quinta-feira, 24 de setembro de 2020
quarta-feira, 23 de setembro de 2020
Misantropia
O dia ensarilhou-se logo de manhã por causa de uma encomenda. Por vezes, uma pequena perturbação na agenda imaginada é o suficiente para me turvar o humor. Talvez seja mentira, e o que me indispõe é ter vindo tarde de Lisboa e uma noite mal dormida. Também é possível que não seja nada disso e me tenha transformado num misantropo. Esta palavra que me deve ter chegado aos ouvidos devido à peça de Molière fez-me lembrar aqueles dias em que perorava sobre a misologia, esse ódio visceral à razão. Como a generalidade das coisas que faço, também essas perorações foram inúteis, como se pode ver por tudo quanto é sítio. Uma sirene rasga o tecido cru do silêncio e anuncia a aproximação das treze horas. Não tenho por hábito ler teatro, mas há muitas décadas, ainda mal barbado, li, em transe, Sófocles e o Sartre teatral. Na província, precisa-se de pouco para ficar extasiado. O que isso terá contribuído para a minha inutilidade está por apurar, mas não terá sido pouco. Pego no jarro e verto vagarosamente a água no copo. Oiço com atenção o som do líquido contra o vidro. Há muito tempo tive uma gata siamesa que, como todas dessa espécie, tinha umas manias muito peculiares. Só bebia água em recipientes de vidro. Sobre mim teve a vantagem de nunca ter lido Sófocles, nem Sartre, nem Ésquilo. Talvez tenha lido Shakespeare. Kant, tenho a certeza que o fez, naquelas horas em que eu tinha a Crítica da Razão Pura aberta defronte de mim e ela se empoleirava no meu ombro para ver o que eu estava a ler. Como nunca me censurou, imagino que terá gostado.
terça-feira, 22 de setembro de 2020
Folhas mortas
Alegro-me. Chegou o Outono com o seu cortejo de folhas mortas. Oiço Yves Montand a dizer Les Feuilles Mortes e depois a cantar o poema de Jacques Prevert. De seguida, passo para a Edit Piaf a cantar em inglês e francês Autumn Leaves e concluo com a Ute Lemper, também a cantar o poema de Prevert. Foram as minhas boas-vindas à mais bela estação do ano. Olho para os cantores escolhidos e, com a excepção de Ute Lemper que é mais nova do que eu, pertencem a gerações bem anteriores à minha. Também eu já entrei no Outono. Estão mortas todas as folhas que caem de mim, mas sinto prazer em ouvi-las bater no chão e serem arrastadas pelo vento. Hoje a minha neta mais velha faz anos. Mal sabe ainda o que é a Primavera, mas os traços da adolescência já são motivo de comentários irónicos a que ela responde com um sorriso ou um olhar enviesado e um franzir de sobrancelhas. Está a entrar naquela fase em que as raparigas se riem por tudo e por nada, o que deixa sempre os rapazes desconcertados. Talvez não exista nada de novo sob o sol, mas estas eternas repetições nunca deixam de ser uma grande novidade, seja a vinda do Outono, seja a entrada na adolescência.
segunda-feira, 21 de setembro de 2020
Marinheiras
A segunda-feira resvala entristecida em direcção ao crepúsculo. Os dias estão muito mais pequenos e as noites alongam-se, espreguiçando-se vagarosamente sobre a cama de nuvens, onde um sol pávido também vai adormecendo. Quando começo com frases tão infelizes como as anteriores, sei que estou completamente vazio. Hoje oficiei durante algumas horas. Falei, falei. Muitas vezes as pessoas falam para ocupar os silêncios, pelo facto de os outros não terem nada para dizer ou não quererem fazê-lo. Sei, porém, que nada tenho a dizer. A cada dia que passa, sinto que deveria ter entrado há muito para a Cartuxa. Deixar o silêncio reverberar. Nada dizer e nada escutar, mover-me nesse confronto com o imponderável, nessa sombra que o absoluto projecta sobre os corpos. Diante de mim estão três bolachas marinheiras que deveria ter comido a meio da manhã, para ganhar alguma energia para suportar a outra metade. Envolto na minha álacre e pesarosa verborreia, esqueci-me por completo. Confesso que até há pouco tempo não fazia ideia de que existiam tais bolachas. A minha incultura geral é enorme, mas as minhas netas introduziram-me neste tipo de consumo. Têm uma vantagem. Não são doces. O meu problema não é com o açúcar é mesmo com os sabores adocicados. Um gato cose-se com a parede da escola ao lado. Vai sorrateiro, imerso na sombra da tarde. Depois, pára e coça-se. Por fim, corre e desaparece do meu campo de visão. Vou comer as marinheiras, talvez assim tenha energia para chegar à noite.
domingo, 20 de setembro de 2020
O desconsolo de domingo
Hoje é o primeiro domingo, de há muito para cá, que traz consigo o desconsolo da semana que se avizinha. Nunca soube se essa triste melancolia era parte inteira deste dia de ócio e que se projectava para os dias úteis ou, pelo contrário, ele a recebia vinda do futuro. É possível que muitas das coisas que sentimos no presente sejam apenas reflexos daquilo que existe na casa do futuro e que este envia para o presente como um sinal do que espera os mortais. Sentado numa esplanada na ilha do Baleal fiquei a olhar o mar pejado de surfistas que se entregavam ao difícil equilíbrio sobre a prancha. Estava nesta contemplação distraída quando oiço a voz do padre Lodovico. Se fosse novo, disse, aprenderia a fazer surf, agora é tarde. Quando se sentou à nossa mesa, acrescentou, os Settembrini nunca foram particularmente dados ao desporto. Os seus interesses sempre foram outros, talvez piores. Ainda por aqui, perguntei-lhe. Com a minha idade, respondeu, tenho uma maior liberdade e vim passar o fim-de-semana à casa da Companhia. Seja como for, já disse Missa, embora não tivesse assistência. Eu ri-me. Tem uma vantagem, continuou, não proferi a homilia. Já não tenho paciência para pregar a mim mesmo. Compreendo, respondi. Vamos almoçar à Areia Branca? Conheço lá um bar sobre a praia onde podemos comer e conversar descansadamente. Anuí. Então encontramo-nos lá às duas e meia. Pensei que era um horário pouco católico para um velho jesuíta, mas não disse nada. Ele levantou-se e eu fiquei sem assunto. Temos de nos despachar para o não fazer esperar.
sábado, 19 de setembro de 2020
Equívocos
No seu muito famoso livro Psychologie des Foules, de 1895, Gustave Le Bon cita um estranho caso narrado pelo diário L’Éclair em Abril desse mesmo ano. Tendo aparecido em Paris o cadáver de um rapaz em idade escolar, um outro identificou-o como sendo um seu colega de escola desaparecido há meses. Esta identificação foi corroborada pelos companheiros, pelo professor, pelos vizinhos, pelo tio da criança e pela própria mãe. O problema é que, passadas seis semanas, a polícia estabeleceu a identidade da criança, sem sombra para dúvida, e ela nada tinha a ver com aquela que as sucessivas identificações lhe atribuíram. Tratava-se de um rapaz de Bordéus, aí assassinado e despachado para Paris. A vida é assim feita de equívocos, que se multiplicam sem cessar. Também eu hoje julguei entrever sob uma máscara o rosto de alguém conhecido. Ainda me aproximei, mas valeu-me uma súbita mudança de posição da pessoa, para que vista de outra perspectiva se revelasse não ser quem eu supunha. Fiquei grato ao destino por evitar fazer uma triste figura, mas depois pensei que vivemos uma época interessante. Um terrível equívoco pode ser sempre o início de uma bela amizade. Aviso já que estas últimas palavras são uma citação sem aspas do diálogo final de um certo filme cujo nome omito. São plágio, pois, por falência de imaginação, não encontrei melhor saída do que esta. Agora vou cortar o cabelo. Será que me reconhecerei de seguida?
sexta-feira, 18 de setembro de 2020
Grandes causas
Ontem descobri que a mãe da visceral Natália Correia publicou dois romances, na década de quarenta do século passado, sob o singelo pseudónimo de Ana Maria. Quando percebi a ligação não pude evitar a comparação da visceralidade de uma com a singeleza pseudonímica de outra. Acabo de ser informado que alguém chegou primeiro do que eu a uns livros que há muito pensara em comprar. Terei de fazer novas investigações. O dia está buliçoso. O vento, irritadiço, sopra ao deus-dará, rajada para aqui, lufada para acolá, descarrega a sua ira sobre as copas das árvores que, medrosas, tremem, abanam, entregam-se, em coreografia frívola, a uma dança lamentável. Por vezes, chove. O Outono triunfou sobre o despotismo estival. Tenho ocupado os dias com a preparação de um longo relatório. Estou a tornar-me um especialista em tabelas e gráficos. Nasci com uma propensão para as coisas inúteis e elas não se fazem rogadas, vêm ter comigo para que lhes dê atenção. Muito admiro aquelas pessoas que têm sempre grandes causas e muito se agitam para tornar o mundo melhor, embora o mundo se recuse perpetuamente em fazer-lhe a vontade, quando não, devido à sua agitação, se torna um sítio bem mais infrequentável. Também eu gostaria de ter grandes causas, mas se me dessem uma, por maior que ela fosse, logo eu haveria de a apequenar e torná-la, pela minha mera adesão, em coisa risível. Grandes causas, mesmo ali ao entrar da Modernidade, tinha D. Quixote. A partir daí, e cada vez mais e mais rapidamente, toda a gente passou a ver gigantes onde estavam moinhos. O mais sensato seria evitar estas considerações, pois toda a gente precisa do consolo de uma grande causa. Até eu tenho a grande causa de não ter grandes causas.
quinta-feira, 17 de setembro de 2020
A palavra que não tenho
Perco-me na procura de uma palavra. A que tenho não me serve. Nisso não me distingo dos outros e quase sinto com eles uma fraternidade nesse nunca servir aquilo que se tem. A uns é o carro que não serve, a outros é a mulher ou o marido, a alguns será o destino, a número incerto de pessoas não lhe servirá a hora de nascimento, talvez pela disposição desfavorável dos astros, a mim são apenas as palavras que me não servem. Há quem tenha palavras dignas de inveja e eu, confesso-o sem contrição, não me faço rogado na cobiça. Talvez existam pessoas capazes de roubar ou matar por uma palavra. Apesar de dado à hipérbole, não vou tão longe. Não por mérito meu, mas porque a natureza não me deu inclinação para o crime. Enquanto escrevo oiço Anouar Brahem, um tunisino tocador de oud, um belíssimo instrumento de cordas parecido com o alaúde. A música combina-se com o tamborilar das persianas e o silvar do vento numa fresta da janela, e eu esqueço-me da palavra que não tenho. O pequeno bosque da escola ao lado resistiu bem à estiagem. Também as acácias da rua estão vigorosas. O Verão curva-se para o Outono e isso é tudo aquilo que agora desejo, mais do que a palavra que não tenho. Recobro o ânimo com o minguar dos dias. Talvez tenha nascido com a lua em quarto-minguante.
quarta-feira, 16 de setembro de 2020
Perder o rosto
terça-feira, 15 de setembro de 2020
O risco
Chegámos a meio de Setembro. Os dias deveriam agora inclinar-se para a melancolia. Um vento fresco, um ou outra folha caída, um sol menos dado à facúndia, a essa eloquência feita de brilho e raios a transbordar calor por todos os poros. Pára, oiço, os raios não têm poros. É pena, podiam ter. Ontem voltei-me para o cardiologista e perguntei-lhe qual o grau de risco caso seja contaminado pelo COVID. Intermédio, respondeu de imediato. E para me tranquilizar acrescentou que pelo coração não haverá problema, está como novo. O risco vem do grupo etário a que pertence. Não corro riscos pelo coração. Ainda bem, pensei. Já começo a não ter idade para os ademanes e volteios do órgão bombeador de sangue. Agora mesmo, ao abrir um livro vi uma afirmação feita há mais de 70 anos em género de previsão. Apesar do tom ser assertivo – uma das palavras odiosas em voga, tal como resiliência e a expressão inteligência emocional – a realidade decidiu contrariá-lo e fazer exactamente o contrário do que fora previsto. Não sei se isto foi um aviso, mas o melhor, ao contrário do que se tornou moda, é não confiar no coração, mesmo que esteja como novo ou por causa disso.
segunda-feira, 14 de setembro de 2020
Crenças delirantes
domingo, 13 de setembro de 2020
Um outro calendário
sábado, 12 de setembro de 2020
Sábado à tarde
sexta-feira, 11 de setembro de 2020
O que se merece
quinta-feira, 10 de setembro de 2020
Meus pobres enganos
Levantei-me cedo para ir fazer análises. Isto não demora, pensei. É só atravessar a avenida. Assim fiz. Chegado ao local de colheita dos materiais a analisar, descubro que está fechado. Foi transformado em posto dedicado ao COVID-19. Tenho de ir ao centro da cidade. Omito aquilo que me saiu da boca. O que seria uma história de meia dúzia de minutos transformou-se num processo que demorou mais de uma hora. Os planos da manhã foram todos estilhaçados. Isto fez-me lembrar uma canção de Chico Buarque. Uma certa Rita Levou os meus planos / Meus pobres enganos. Aqui não foi nenhuma Rita, mas a verdade é que todos os meus planos não passam de pobres enganos que uma qualquer conspiração logo trata de desfazer. Para ser honesto, tenho de dizer que vivo num mundo cheio de planos, planeamentos, planificações. Nesse estranho país pensa-se que tudo se subordina a objectivos, os quais ao longo do tempo vão mudando de designação, e que estes devem ser perseguidos através do achatamento da realidade. Nesse país, a maior parte do esforço das pessoas é andar com martelo ou maça a bater na realidade para a tornar plana. É uma pátria muito ruidosa. Pego nos livros que as minhas netas me ofereceram. Omito a referência bibliográfica, pois estou impedido pelo autor destes textos de me meter em política, e eu sou um narrador obediente. Só conto aquilo que ele deixa. Seja como for, sempre posso dizer que um trata de pestes e pragas, e o outro faz o retrato de três personagens importantes neste jardim à beira-mar plantado, todas elas endeusados pelos seus e vistas como pestes e pragas pelos outros. Esperam-me uns planos e outros enganos. Já estou de martelo na mão.
quarta-feira, 9 de setembro de 2020
Um profeta falhado
Esta é a fase do ano em que começo o dia com a consulta das previsões meteorológicas. Cada um ilude-se como quer. Olho para as do dia, as da semana e as dos próximos catorze dias. Estas são um bálsamo, ao prometerem-me temperaturas sensatas, embora com grau de probabilidade quase nulo. Sempre achei as previsões económicas uma coisa ainda mais extraordinária do que as do tempo. Mais tarde descobri que nem depois dos factos ocorridos se consegue acertar no que se prevê a posteriori. Se eu fosse meteorologista ou economista, faria as previsões na linguagem obscura de um Nostradamo. Escreveria quadras decassilábicas, onde em código faria o prognóstico do raio que cairia ali, da nuvem que passaria acolá, ou, caso se tratasse de Economia, não haveria de falhar uma compra no índice do consumo ou um investimento em esferográficas e papel higiénico de uma empresa, pequena que fosse. Tudo estaria cifrado nos meus escritos e quem quisesse conhecer a realidade, bastaria passar a vida a decifrá-los. Não quis, porém, a natureza dotar-me do talento de profeta. Uma pena, pois não há coisa mais emocionante do que uma terrível profecia, cheia de provações, anjos e trombetas. Que eu saiba, não existe nenhuma que seja anunciada pela música de piano, mas nunca se sabe. A previsão indica-me que estão trinta graus. Respiro fundo, bebo água e volto para as coisas sérias que pautam a minha risível existência.