sexta-feira, 6 de novembro de 2020

As pequenas coincidências

Nunca deixo de admirar certas perfeições que existem no calendário, como acontece hoje, em que o sexto dia do mês corresponde à sexta-feira. Pequenas e infrutíferas coincidências alegram-me e fazem-me pensar que nem tudo no mundo estará assim tão mal. Se as coincidências ainda funcionam, não se perca a esperança. Chegado aqui, o pensamento turva-se-me, pois não sei qual haverá de ser o objecto dessa esperança. A tarde desce ronronante a calçada, apesar da chuva fria e da noite próxima que traz a escuridão sobre a terra. Da janela do meu escritório olho os campos ao longe. Estão verdes, mas na verdade não é essa a cor que vejo, mas um cinzento violáceo cada vez mais escuro, como se espalhasse, pela terra, uma imensa nódoa negra. Não param as mensagens no meu telemóvel. Trazem notícias sobre um mundo delirante, tecido de pequenos nadas que têm por finalidade empequenecer a realidade. Na Sá Carneiro, os carros passam com os seus fogaréus incendiados, enquanto nos passeios húmidos, as pessoas foram substituídas pela tristeza, que caminha invisível e, a cada passo, se expande para dentro dos olhos de quem observa. Nos bares, há luzes amarelas e mortiças, e, entre o folhedo de uma tília, diviso o círculo verde que me anuncia a farmácia. Estou aqui, penso, e não sei nada acerca do que vejo, nem do que está para lá da minha visão, como se tudo se me tivesse tornado incompreensível e insignificante.

quinta-feira, 5 de novembro de 2020

Uma tarde cheia

Bebo lentamente o café. Não uso açúcar, o gosto é intenso e o amargor que a torrefacção lhe dá explode na boca, em instantes de prazer mais longos do que seria de esperar. É possível que esta inclinação do paladar para os sabores difíceis, para aquilo que é amargo, reflicta qualquer coisa do meu carácter que prefiro desconhecer. Deste modo meditativo, entro na tarde. Anuncia-se longa, cheia de videoconferências, esses exercícios de piedade que não convertem ninguém, mas que são essenciais numa realidade que perdeu qualquer sentido do que é razoável. Durante anos vi crescer à minha volta a irracionalidade e o niilismo, como se houvesse em algum sítio cujo nome me recuso a nomear uma fábrica de fomento de entropia nas instituições. As pessoas, essas ou sofrem os efeitos sem perceber o que se está a passar, ou são agentes, quase sempre ingénuos, do processo tenebroso que estende a teia por tudo o que é lugar. Não devia escrever coisas destas depois de almoço. Podem afectar a digestão, ainda por cima estou a ganhar o terrível hábito de falar por cifras. Ontem, estava-me a esquecer, ouvi o conjunto musical da escola aqui ao lado. Imagino uns professores cuja idade se deverá omitir a tocar um arremesso de rock sinfónico. Fico feliz, não pelo interlúdio musical que me oferecem – dispenso-o de bom grado – mas por aqueles músicos. Depois, penso que talvez nem fossem eles, mas apenas uma aparelhagem a reproduzir qualquer coisa gravada numa outra época. É possível. Vivemos num tempo de simulacros. Mansamente, vou deixar a tarde deslizar sobre mim com as suas videoconferências, as suas injunções à salvação das almas que se querem perder e odeiam salvadores, os seus sacerdotes perdidos num labirinto, sem que um fio de Ariane tenham para poderem voltar à luz do dia.

quarta-feira, 4 de novembro de 2020

Uma parábola

Sento-me e distribuo o pão pelos pobres. Cada um traz três pratos. Não pense o leitor que encho cada um dos que se apresentam à minha frente. Aquilo que cada pedinte leva cabe num único prato e as mais das vezes sobra. A caridade, porém, deve ser inovadora e abrir o leque das distribuições, pois vendo assim tanta louça à frente, o esfomeado, apesar de comer o mesmo, pensa que come mais, não tardando a comer menos, convencido de que quanto mais pratos lhe derem, maior a ração. Também o doador caridoso fica com a alma mais cheia. Chega a casa e diz à mulher, olha hoje dei três pratos de pão a cada pedinte que me cabe cuidar. Estou muito contente, a minha consciência transborda e o meu coração exulta. Ela, a mulher, pergunta-lhe, então, se endoideceu. Ele não sabe o que lhe responder. Desde quando é que te dedicas à caridade? Ele olha-a de viés e vai ver televisão. Distribuir o pão de um prato por três, multiplicado por dezenas de candidatos é um trabalho árduo e está exausto, mas orgulhoso com a sabedoria dos chefes da caridade. Os pedintes iam agora poder reflectir sobre que pão tinham mais dificuldade em comer. Bastava-lhes apontar um dos pratos e logo uma bateria de análises lhes diria a estratégia que deveriam seguir para o deglutir. Toda a gente andava feliz. Também eu estava muito feliz, mas quando acordei deste sonho pensei por que razão haveria de sonhar coisas tão idiotas. Talvez esteja na tua natureza, disse-me o homúnculo que habita na caverna da minha consciência. Pela primeira vez, estou de acordo com ele.

terça-feira, 3 de novembro de 2020

O cruzeiro da noite

Cheguei aqui, ao lugar onde escrevo, já a tarde tinha sido engolida pela boca voraz do tempo. Olho pela janela do escritório, o hospital ao fundo, com as suas luzes vermelhas, amarelas e esbranquiçadas, é um cruzeiro tomado pela tristeza da doença a sulcar as águas negras do oceano da noite. As acácias da praceta, batidas pelo vento, ondulam as folhas exíguas banhadas pela tinta da escuridão. Lá em baixo, adolescentes ensaiam breves urros, num exercício de uma memória secreta que prende a humanidade a essas eras em que os homens ainda não o eram, e não havia hospitais, nem cruzeiros, nem luzes, nem quem se sentasse num escritório e escrevesse apenas porque não tem nada para dizer, apenas para ocupar parte desse tempo que medeia entre duas noites eternas, apenas porque não sabe o que fazer com a vida ou com a azáfama dos dias. Invejo os que têm uma mensagem, uma causa para viver e para morrer, um horizonte cheio de objectivos a alcançar, troféus para disputar. Como são beatos, na sua face sorridente. Sou como aquelas garrafas que alguém, não sem alarido, despeja agora no vidrão. Também eu fui despejado no mundo, uma garrafa entre garrafas que, depois de bebida, será atirada para o caixotão que a guardará até que volte ao pó de onde veio. Um carro pára, liga os quatro piscas e o amarelo que se apaga e acende vai alfinetando o veludo da noite. Num outro carro, alguém usa a buzina, e para todos estes acontecimentos não descubro linha que os cirza e com eles possa fazer uma coberta para o frio que há-de vir.

segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Crepúsculo e romantismo

Escrever ao crepúsculo deveria dar uma tonalidade romântica ao discurso, pensei, enquanto olhava para o céu cinzento do anoitecer. Quando penso nos grandes românticos, é sempre em paisagens crepusculares que os vejo chegar. Depois, o meu pensamento deu um salto, e vi-me internado num hospício. Tinha enlouquecido e, para defesa da sociedade, fora compulsivamente internado. Uma nova acrobacia e esqueço-me dos românticos e da minha loucura, e os meus olhos fixam-se na mulher que passa na praceta. Perscruto-lhe o rosto sob a máscara azul. Os olhos são promissores, belos e profundos, há neles sombras douradas sobre florescências de verde. Poderia apaixonar-me por aqueles olhos. Oiço-me dizer: quais olhos? Os daquela mulher, respondo. Não sejas idiota, ninguém, onde estás, consegue ver os olhos de quem passa lá em baixo. Comecei a pensar que talvez já estivesse internado no manicómio. Tenho delírios e visões, falo comigo mesmo. À minha frente, uma reprodução de um quadro de Caspar David Friedrich, pintado nos anos trinta do século XIX. Um homem caminha, perto da floresta, de cabeça curvada ao crepúsculo. Vai pensativo. Aquela figura não me é estranha e, de súbito, sinto uma grande vontade de falar com ele. Entro pelo quadro e persigo-o. Chamo-o, mas ele finge não me ouvir. Aproximo-me e torno a chamá-lo, ele volta-se para mim e descubro que aquele homem sou eu perdido num anoitecer de um século acabado há muito.

domingo, 1 de novembro de 2020

Todos-os-Santos

Já passavam das quatro da tarde quando me apercebi de que estávamos no mês de Novembro, no dia de Todos-os-Santos. Sempre achei espantosa esta solução para a difícil questão da celebração de cada um dos santos, tantos devem ser que não há calendário litúrgico que tenha dias disponíveis para acolher tal profusão de santidade. Não fora a minha vontade ser fraca, também eu haveria de trabalhar para fazer parte dessa legião que hoje se celebra. Seria um santo anónimo, que ninguém conheceria, mas se alguém visse uma estátua minha numa Igreja, haveria de ler na dedicatória: ao santo desconhecido. Mais tarde, começariam a dizer que era um santo anónimo. Passados mais alguns séculos, haveria o culto do Santo Anónimo. Seria eu, sem que ninguém o soubesse. Eu, da humildade da minha santidade, distribuiria as graças que me fossem dadas e também broas, daquelas de que muito gosto, e se fosse o caso e mo pedissem, um belo copo de tinto. A vontade, porém, é fraca. Não tenho inclinação para o jejum e outras práticas que conduzem directamente à glória dos altares, mas que tenho pena, lá isso tenho.

sábado, 31 de outubro de 2020

Despedida de Outubro

Outubro despede-se em glória, deixando atrás de si um halo de luz e um rasto daquele calor que torna a vida aprazível. Quando a tarde se aproxima do crepúsculo lembro-me dos momentos em que um grupo de velhos amigos se reunia à volta da mesa e deixava que o pão e o vinho abrissem o caminho a longos discursos, em que cada um corrigia a maldade do mundo e a perversidade dos corações, ou então falava da beleza ou da ocultação do sagrado. Ninguém, entre os convivas, cria nas suas próprias palavras, mas o momento era-lhes propício, e todos tinham jurado que, sendo adequada a altura, não haveriam de lhe faltar com a eloquência que fosse a sua. Bebíamos e falávamos, tudo nos parecia naqueles dias possível, embora soubéssemos que nos estávamos a mentir. Mentíamos para ocupar o tempo, pois a verdade é tão crua e tão seca que logo mata o discurso. Agora os meses limitam-se a passar. Por vezes, telefonamo-nos, perguntamos pelos filhos e pelos netos, se já os há. Há dias recebi uma chamada. Se queria ir jantar. Estaria presente a, e aqui omito o nome. Vão gostar de se ver. Eu não vejo aquela cujo nome não digo há mais de trinta anos e recuso o convite. Não suportaria destruir a beleza dela que ainda subsiste na minha memória pela frivolidade de um encontro. Há que saber hierarquizar as coisas, disse.

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Pensamentos

Ocupo o tempo não sei se em jogos florais se em guerras do Alecrim e da Manjerona. Como um pedinte que não pode abandonar a esquina onde recebe no chapéu roto as moedas com que transeuntes indiferentes aliviam a consciência, também eu, movido pela estrita necessidade, vivo num universo de mais pura irrelevância, concebido por um génio maligno, que tem ao seu serviço legiões de espíritos impuros. Caso exista um céu e que aos homens seja dado conquistá-lo, muito difícil me parece a tarefa, tendo de viver em lugar onde aquele que não se nomeia ordena, meticuloso, o caos. Este pensamento sombrio chegou-me depois de outro mais luminoso. Olhei para o Sol, para a luz, para o revérbero das paredes e disse-me que talvez este ano haja Verão de S. Martinho. Contrariamente ao Verão propriamente dito, o do santo alegra-me. Num leilão de livros online, vejo um livro de um jesuíta que foi meu professor. Uma das grandes figuras da cultura portuguesa do século passado. O seu livro, porém, vale à partida 1 euro, embora o mais provável é que não valha nada. É o mercado a funcionar. Também eu me leiloaria, não fora a inutilidade do gesto. Assim, em vez de me sujeitar a licitações fui comer uma broa dos santos, coisa que aqui tem maior culto e arrasta mais devoção do que os próprios santos do altar.

quinta-feira, 29 de outubro de 2020

A felicidade da falência

O dia acrepuscula-se não tarda. Ainda o sol está no horizonte e a luz já é frouxa, arrastando tonalidades de sombra e recordações da noite que há-de chegar. Atravessei a cidade várias vezes. Fui e vim, fingindo ter um destino. Não tenho destino, tenho necessidades, e são elas que me fazem ir e vir. Não as tivesse e seria inerte como uma estátua, imóvel como uma rocha que lançou as raízes no fundo da terra. E nessa pura imobilidade estaria toda a minha perfeição. Perfeito é o que não se move, que não muda. Seja como for, não é o meu caso, que a necessidade torna volúvel. Também os pássaros meus vizinhos são dados à imperfeição. Voam em círculos, ora largos, ora apertados, desenham figuras de ócio com as asas, planam como surfistas que cavalgam as ondas. E cantam. Tento decifrar-lhes a linguagem, mas no momento em que parece que lhe descubro um sentido, um novo gorjeio lança-me na incerteza, deixa-me perplexo, até que reconheço que falhei mais uma vez. Todos os dias elejo uma actividade em que seja impossível ter sucesso, aplico-me a ela com denodo e vigor, até que chega o momento da derrota e eu sinto toda a felicidade que há na falência do próprio desvario. Então leio Und dieser Zustand verging nicht. Não percebo, mas na outra página está a tradução, a mais adequada das traduções a esse estado que me acompanha em cada falência que construo com o ânimo de um conquistador.

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Paixões vulgares

De manhã fui de tratar de assuntos do carro. Tudo agora obedece a uma organização que se pretende eficaz e protectora. Valha a verdade que os funcionários não são muito eficientes no cumprimento de regras de protecção, como se lhes faltasse a fé no credo sanitário que nos guia. Assunto tratado, rumei para a minha secretária onde me esperam mil insignificâncias e outras tantas minudências, com as quais atendo aos ditames da necessidade. Faço-o, ao atendimento, não só na secretária, mas também na entrega à pura representação de um papel para o qual me falta o talento e, com a passagem dos dias, o ânimo para não deixar morrer de fome a ficção com que entretive a existência. Com a pandemia e o uso da máscara, quase me sinto um velho actor grego. Ia mentir, mais uma vez, ao leitor. Estava pronto para escrever que não sabia se represento comédias ou tragédias. Eu sei. Tendo em conta quem sou, a tragédia, reservada aos caracteres nobres, está-me interdita. Apenas posso representar comédias, só me cabem as paixões dos homens vulgares. Dou por mim a escrever com o dedo no vidro que cobre o tampo da secretária. Depois recordo-me que Cristo, na perícope da adúltera, escrevia com o dedo no chão. O que terá escrito no pó apenas Ele saberá. O que escrevi no vidro, nem eu sei. Preciso de tomar café e isso tem o mérito de evitar prolongar indefinidamente esta conversa inútil.

terça-feira, 27 de outubro de 2020

Os dias decrescem

Como um fósforo que mal se acende e logo o vento apaga, o dia amanheceu iluminado por um fogo descido do céu. Olhei-o surpreso, ainda mal refeito daquele momento de estupor que cai sobre mim ao acordar, mas de imediato as nuvens em tropel tomaram conta do firmamento, cobrindo a terra com uma mantilha de cinza. Outubro, esse mês de amenidades e prenúncios, caminha para o fim, enquanto os dias se estreitam e as noites erguem asas cada vez maiores. Vejo vultos na rua, gente com afazeres, alunos esquecidos das aulas, homens em trânsito entre negócios, mulheres que trazem na cara a faca da decepção, gente a quem a idade quebrou o vigor. Um cão corre à desfilada, no passeio do lado de lá. As torres do castelo, as duas que ainda avisto, contemplam com desdém a cidade. Hoje evitei as notícias logo pela manhã. Talvez tivesse deixado de crer que a leitura diária do jornal é a oração matinal do homem moderno. A frase de Hegel fascinou-me em tempos, mas o deus que ali se cultua, descobri-o, é perverso, vingativo, e o seu odor não é o do incenso, mas o do enxofre. Olho a avenida, os carros passam, uns adolescentes trocam palavras agudas, enquanto eu penso que a cidade onde vivo é uma aldeia que bem merecia ser elevada a vila. Tem um castelo e um rio, um jardim público, uma praça grande que serve de brasão. O que mais precisará?

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Uma Antígona melancólica

Olhei para um livro do Régio que tinha na secretária e ri-me do título, As Raízes do Futuro. Quando se chega a certa altura da vida, aquilo que era um mero pressentimento torna-se uma realidade iminente. Pouco interesse para o caso o tamanho da iminência. O pior nem é isso, mas a pergunta sobre o que se fez nesses dias em que havia um futuro, ou talvez nem seja nada disso e a única coisa a fazer seja celebrar o dia, beber o cálice até ao fim. Isto contou-me a Lu, quando me encontrou e convidou para tomar café com ela. Perguntei-lhe pela irmã, disse-me que fora apenas um susto, que tudo lhe ia bem e logo encerrou o assunto. Estava inclinada para a confidência e para a melancolia, coisa muito rara nela. Talvez as Antígonas devam morrer jovens, pensei, enquanto ela discorria sobre a existência, num exercício que parecia reunir a contabilidade e a confissão. Ouvi-a em silêncio, na minha mente perpassavam imagens dela quando nova. O tempo é sempre devastador, ouvi-a dizer. Respondi que ela não se podia queixar. Deixa-te disso, já não temos idade para galanteios desses. Depois, calou-se, olhou-me e exclamou: agradeço-te. Apesar de tudo faz-me bem. Rimo-nos e eu acrescentei temos de fingir. Sim é o que nos resta, disse. Saímos do café e separámo-nos. Ela foi à vida dela e eu comprar uma solução hidroalcoólica para desinfectar o que tiver a desinfectar.

domingo, 25 de outubro de 2020

Luz imóvel

A luz que ilumina a avenida, curvada à cinza que se desprende do exército de nuvens, dá uma estranha ilusão de imobilidade, como se o tempo tivesse suspendido a voracidade com que devora os seus filhos e se recusasse a passar. Imagino que o sentimento da passagem do tempo se deve todo ele às metamorfoses da luz, como se estas fossem sinalizadores de que não é na eternidade que vivemos, mas que tudo tem um princípio e um fim. Uma mulher vestida de preto, atravessa a passadeira. Outra arrasta atrás de si, pelo passeio molhado, um cão. Vestem-se de invernia. Lençóis de folhas mortas estendem-se junto aos passeios, enquanto os carros passam endomingados, uns à procura de um lugar para descansar, outros a dirigirem-se para outro lado, como se os seus condutores tivessem um destino, uma Penélope à sua espera, uma guerra para combater. Talvez estejam apenas atrasados para a Missa do meio-dia, aonde vão de consciência contrita e certos da indulgência que hão-de receber as iniquidades que, durante a semana, não se esqueceram de realizar. Um raio de luz mais intenso atravessou a atmosfera e fendeu a realidade, o tempo recomeçou a sua caminhada e o pequeno encanto de há minutos estilhaçou-se.

sábado, 24 de outubro de 2020

Triste tristeza

Suspendo a música e o sábado abre-se num vale de triste tristeza. Não tens vergonha de um truque tão fácil? Olho para o homúnculo que proferiu estas palavras e hesito entre ordenar que se vá deitar na caverna da minha consciência ou começar uma discussão com ele. Acabo por lhe responder e pergunto-lhe se ele queria que eu dissesse alegre tristeza. Depois, antes que abrisse a boca, fiz-lhe um gesto imperativo e ele desapareceu. Nem sempre as coisas são assim tão fáceis. Daqui a pouco irei a casa da minha mãe. Terei máscara, ela também. Impedirei que se aproxime de mim, pois não se sabe se sou um filho radioactivo e ela já não tem idade para estar perto da radioactividade. A seguir sairei e caminharei ao deus-dará, que é aquilo que tenho feito a vida toda, mesmo que eu o disfarce, mesmo que eu finja, nunca o meu caminho foi outro do que ir e vir à toa, sem destino nem propósito. Deixa-te de ficções. Voltaste, perguntei ao homúnculo. Voltei. Revolvem-me o estômago as tuas tiradas patéticas. Um pouco de pathos no discurso fica bem, retruco. Olhei para a cinza que envolve a rua e fiquei a meditar na fealdade do verbo retorquir. Os gramáticos, talvez por ociosidade, classificam os verbos em regulares e irregulares. Uma classificação miserável para esconder o moralismo que há neles. O que terão, os gramáticos, contra os modos de vida irregulares? Se fosse gramático, classificaria os verbos entre belos, horrendos e os que nem se dá por eles. Esta é a verdade crua. Muitos verbos passam por nós e nem damos por eles, falta-lhes a beleza que nos prende ou a fealdade que nos afasta, quando afasta. A campainha tocou. As minhas netas acabam de chegar. Correm para mim e o homúnculo assustado foi dormir.

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Desactualizado e obsoleto

O Office informa-me que tem disponíveis actualizações, mas há que fechar algumas aplicações. É um mundo quase perfeito. Sê-lo-ia se também eu me pudesse ligar à rede, encerrar algumas aplicações, enquanto instalava actualizações que haveriam de fazer de mim o mais actual dos seres ao cimo deste pobre planeta. Digo-o com a máxima seriedade. Olho-me no espelho e, mesmo com máscara, não consigo esconder quanto as minhas aplicações estão desactualizadas. Isto quanto ao software. Quanto ao hardware a única palavra decente para me descrever é obsoleto. Sobre o meu estado de obsolescência há diversas teorias. Uma defende que me fui tornando obsoleto com o passar dos anos. É uma teoria sensata, mas benévola. Outra, menos benévola e menos sensata, estará mais próxima da verdade. Já nasci obsoleto. Nasci pronto para ser descontinuado. Há pessoas que nascem voltadas para o futuro. Eu nasci voltado para o passado. Não é que o passado seja um lugar mais aprazível que o futuro, mas é o horizonte que me coube. Esta conversa não tem pés nem cabeça, isso, todavia, é um efeito colateral de ser sexta-feira. Tenho de ir à rua. Não vou aglomerar-me, será que preciso de pôr máscara? Espirro. Uma, duas, três vezes. Uma dúvida abre-se no meu espírito. Estes espirros são sinais de desactualização do software ou da obsolescência do hardware? Cala-te, digo-me. Obedeço.

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sacrifício ritual

Cheguei a casa exausto. Sentei-me em frente à televisão e liguei-a num canal desportivo. Homens trepam por uma montanha cavalgando bicicletas resplandecentes. Desenham-se-lhes rictos estranhos nos rostos. O cansaço, a luta contra o declive, a contabilidade de quem vai à frente ou atrás, tudo isso rouba-lhes a contemplação das paisagens magníficas que os envolvem e assistem indiferentes ao seu sofrimento, ao sacrifício ritual que os leva ao altar, onde, por um passe de mágica, se transformam de vítimas propiciatórias em sacerdotes escolhidos pelos deuses, para oficiar as cerimónias em seu louvor. Recomponho-me, respiro fundo, desligo a televisão e deixo os ciclistas entregues aos segredos da montanha, presos aos olhos dos espectadores que os aclamam como se fossem um exército vitorioso chegado do campo de batalha. Eles ainda não sabem que esse esforço desmedido é inútil. De pouco lhes servirá o nome num registo que o tempo fará esquecer. Essa inocência engrandece-os, pois toda a grandeza nasce de um não saber, de uma virgindade existencial que mergulha incauta nas águas turvas da vida. Hoje atravessei a cidade várias vezes. Nem dei por ela. Ela também não deu por mim, o que nos reconcilia. Reparo que as folhas das acácias começam a amarelecer. Têm um ritmo diferente das tílias e dos jacarandás. Cada coisa terá o seu ritmo, mas um maestro invisível subjuga-as à sua batuta para que uma música tensa e vibrante se erga da terra. O sol brilha anémico, alunos de um centro de línguas esperam agitados o começo da aula e eu esqueço-me dos pensamentos que me assaltam. As nuvens lembram grandes transatlânticos à deriva no oceano sombrio do céu.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Ausência de sentido

O tempo desbarbariza-se. Há nuvens, vai chovendo, mas o vento sopra com mansidão e, no céu, lagos de azul deixam o sol chegar à terra. No campo de jogos da escola vizinha, um grupo de adolescentes corre sem pressa, num ritual de aquecimento que talvez anteceda algum jogo. Medito nas coisas que, com o tempo, se me foram tornando incompreensíveis. É possível que a morte não seja uma determinação biológica, mas um evento semântico. Quando a realidade perder sentido, então a morte chega para resgatar a pessoa da turbulência em que vive trazida pela ausência de significação com que o mundo se revestiu. Tudo é mais confuso do que se pensa e talvez não haja coisa mais obscura do que as razões que movem a morte. Um raio de sol ilumina a frota de nuvens que atravessa o meu horizonte. Elas resplandecem, enquanto eu penso no que tenha para fazer ainda hoje. Uma árvore podada estende os dedos curtos para o céu, mas nenhum anjo poisa nela. Os adolescentes recolheram-se, os carros passam na avenida, as pessoas entram e saem dos cafés, e eu olho para as páginas de um livro em que se discute a vexata quaestio se uma máquina pode pensar. Eu sei que não posso, mas não sou uma máquina.

terça-feira, 20 de outubro de 2020

História de uma desconhecida

Entretive a manhã com certos problemas cuja solução atormenta os homens há muito. Não se pense que estive dedicado à sua resolução. Nem pensar. Entreguei-me apenas a torná-los claros para os distribuir a quem os queira apanhar. Ninguém, por certo. Valeu-me o toque da campainha. Era o correio. Trazia-me um embrulho com livros que comprara num alfarrabista online. Dois deles pertencem àquela colecção de capa amarela da Editorial Minerva. São edições do início dos anos sessenta do século passado. Um não foi aberto. Comprado na Bertrand, da Rua Garrett, custou 22$00. Não faço ideia quem seja o autor, Orio Vergani. O outro está aberto, possui uma assinatura feminina e a data de 13 de Abril de 1972. Quem foi a autora, Florence Barclay, também desconheço. Comprei os livros apenas porque a capa me agradou e o seu preço não era propício a arrependimentos e contrições. Talvez os venha a ler ou talvez os arrume e me esqueça deles e, quando um dia os meus livros forem parar a um alfarrabista, quem os descobrir vai dizer que um nunca foi lido, pois continuará fechado, e o outro pertencia a uma mulher, o que sendo verdade já não será toda a verdade. Penso no que se terá passado naquele longínquo 13 de Abril. Talvez ela tenha dado um salto a uma livraria, talvez alguma amiga se tenha lembrado do seu aniversário, talvez um apaixonado tenha encontrado na dádiva pouco imaginativa de um livro a expressão do seu amor. Porventura foi apenas uma mãe – aliás de origem estrangeira – que tenha oferecido aquele livro para completar a educação sentimental da filha. Continua a chover e não tarda terei de ir falar sobre questões que não interessam a ninguém que me vai ouvir. Se lhes falasse da antiga dona do livro, mesmo desconhecendo-a, seria outro o seu interesse e entusiasmo.

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Sentimento num dia de chuva

Chove. A água interpõe entre os meus olhos e o hospital um véu de cinza. Tudo o que vejo é digno de um daqueles filmes sombrios que vinham do leste europeu. São imagens de exaustão, de um cansaço trazido pelos fungos às paredes dos edifícios. Procuro um nome para dar ao sentimento que toma conta de mim, mas não o encontro. São tão poucas as palavras que possuímos, mesmo aqueles que usam um vocabulário mais vasto, para uma realidade demasiado extensa, mesmo que essa realidade não seja mais do que a gama dos sentimentos humanos. Recebo uma mensagem da Protecção Civil. Avisa-me que vai haver chuva e vento forte nas próximas 48 horas. Risco de inundações. E eu debito um credo apropriado. Creio na Protecção Civil toda poderosa, informadora das ocorrências no céu e na terra, creio nos seus emails e sms. Creio…. De súbito, a memória irrompe neste devaneio patético e transporta-me para o tempo em que havia grandes inundações no Tejo. Nessa desgraça adivinhava-se uma grandeza sem voz, ânimos temperados pelo confronto com o desatino da natureza. Agora tudo se tornou um problema de gestão de caudais. Ao escrever isto não consigo deixar de sorrir. Também eu preciso de introduzir um programa de gestão da verborreia. Um dos homúnculos que habite na caverna da minha mente diz mesmo que nunca se viu quem tanto escrevesse sem ter nada para dizer. E isto é a pura verdade. Se eu tivesse alguma coisa para dizer, calava-me.

domingo, 18 de outubro de 2020

É falso tudo o que vou contar

Tudo o que vou contar é falso. Se o leitor acreditar numa palavra que seja, fica por sua conta e risco. Eu bem o avisei. Ontem fui visitar a minha mãe e, em vez de poluir a atmosfera com os gases do carro, pus os pés ao caminho. Saindo de casa dela, decidi que, também eu, tal como o velho genebrino Jean-Jacques me entregaria às minhas rêveries du promeneur solitaire. Pus-me a caminhar pela cidade, por sítios onde raramente ou nunca passo a pé. A certa altura a imaginação começa a importunar-me e a perguntar por que motivo, em dado momento da história do país, qualquer vilória, com poucos milhares de habitantes e uma existência tão cosmopolita como uma paróquia perdida sabe-se lá onde, quis tomar o nome de cidade. Não lhe soube responder e continuei a promenade. Quando passava diante de um cemitério, numa avenida que leva de uma rotunda a outra rotunda, que por sua vez levará a uma terceira, ocorreu-me um episódio da semana que tinha passado. Recebo uma chamada no telemóvel. Estou, respondo. É o senhor e declinam o meu primeiro nome. Ainda com bonomia digo o próprio. Aqui fala a Doutora… Ah, respondi, o seu pai conseguiu pôr-lhe o nome de Doutora. Deve ser muito nova. Quando fui ao registo civil para registar a minha filha também quis pôr-lhe o nome de Doutora, mas não me deixaram. Cheguei lá e disse quero registar a minha filha recém-nascida. E o nome, perguntou-me o funcionário já entradote. Quero que se chame Doutora e acrescentei dois apelidos da mãe e dois do pai, só para ela treinar a letra quando, na escola, escrevesse o nome. Não pode, retorquiu. Doutora não consta da lista de nomes autorizados. Não? Olhe, acrescentei, não estava preparado para isso. Que nome lhe hei-de pôr? Pode chamar-lhe Isabel, Madalena, Teresa, Sofia, Fátima ou Maria, que era o nome da Nocha Chenhora, foi assim que ele pronunciou. Eu respondi, se era o nome da Nocha Chenhora, fica Maria, e Maria ficou. Os tempos mudaram e agora há muitos pais a porem como nome aos filhos Doutor e Doutora. Lembrei-me de uma outra história, tão verídica como esta, de um rapaz também ele doutor e presidente da junta, mas talvez a conte num dia destes, se numa nova promenade me entregar a nova rêverie. Tudo o que narrei é falso, repito. Se acreditou numa só palavra, não culpe este pobre narrador, um mitómano contumaz, cuja papel é inventar coisas que nunca se passam.