domingo, 19 de dezembro de 2021

Tempos de tribulação

O domingo já alçou a perna e está pronto a saltar para o outro lado da paliçada. Ainda não saí de casa, não porque tenha algum motivo para o não fazer, mas apenas porque não me apeteceu. O jantar de família, que deveria ter decorrido ontem, foi adiado sine die. O meu filho teve a infelicidade de almoçar na passada quinta-feira com alguém que, na sexta, testou positivo à COVID-19. Tribulações de um tempo de pandemia. Preciso de falar com alguém, mas o telefone está continuamente ocupado. Vou tentando, enquanto o dia se vai dissolvendo e a paisagem se aproxima cada vez mais de um esboço em carvão até que a noite pegue nela e a guarde num saco de sarapilheira. Na avenida, as pessoas entregam-se a longas conversas, num protesto mudo contra a realidade que as manda afastarem-se umas das outras. Não é fácil viver nestes dias, em que os hábitos enraizados são incapazes de fornecer a armadura necessária para enfrentar o inimigo. Como este é invisível, a tentação é negar a sua existência. Não tarda, cairá a noite. Depois, virá a manhã e será mais um dia.

sábado, 18 de dezembro de 2021

Diurese

Há dias, o cardiologista – também os narradores têm problemas de coração – calculava a medicação, como quem pensa um lance numa partida de xadrez, e alvitra: bem, se a tensão não se equilibrar ainda temos margem de manobra com o diurético. Como toma apenas metade da dose, ainda há espaço para aumentar. Olhei-o como se estivesse a compreender muito bem o que queria. Mal sabia ele, porém, o que me ia na alma. Se o problema está na diurese, não conheço melhor estimulante que um bom vinho tinto, de preferência seguido de café. Nunca compreendi por que razão, quando fazem a especialidade, os cardiologistas não são informados sobre aquilo que é verdadeiramente eficaz. Claro que fica mais barato tomar 50 mg de Hidroclorotiazida e 5 mg de amilorida, omito o nome comercial da mistela, do que beber dois copos generosos, ou mesmo um, de bom tinto, ainda para mais que, no caso do vinho, não existe um genérico, que torne o consumo mais em conta. Não podemos, todavia, estar sempre a pensar em poupança quando se trata da saúde. Isto tudo porque, no pós-almoço, verifiquei, mais uma vez, o efeito diurético dessa combinação entre esses dois medicamentos extraordinários, o vinho e o café. Hidroclorotiazida? Amilorida? Que cocktails são esses? Claro que também o tinto tem efeitos secundários. Hoje comecei a manhã com uma disputa acesa com a balança. Pisei-a e ela devolveu-me, como castigo, um peso desagradável. Tornei a pôr-me em cima dela, mas a rameira manteve-se fiel à palavra. Insultei-a. Olhou-me, impávida, e, depois de um longo silêncio, atirou-me à cara: então, não és tu que achas que o melhor diurético é o tinto? Voltei-lhe as costas. É inútil discutir com gente estúpida.

sexta-feira, 17 de dezembro de 2021

Derrubar muros

Ao acaso, abri uma edição da Poesia Completa de Herberto Helder. Leio, então, o verso Muita coisa começa a bater contra os muros do meu poema. Estanco. O verso fascina-me, não apenas pela sua qualidade poética, mas pela descrição da realidade. Também no dia de hoje, muita coisa começou a bater nos muros de mim mesmo. Foi um batuque contínuo, com oscilações no ritmo, mas sem parar até ao momento em que me sentei para escrever isto. Então aquilo que batia em mim, suspendeu a actividade. Agora sou eu que bato nas teclas, que choco contra o muro que envolve o texto e trabalho para o derrubar. A queda dos muros é uma coisa que excita a alma das multidões. Há nelas uma alegria insana, se vêem um muro ruir. Têm esperança de ganhar espaço para construir um novo. A actividade humana não passa de um contínuo erguer e derrubar muros. Festejam quando se ergue um. Celebram quando ele é derrubado. Depois de um dia como de hoje, onde o batuque frenético da realidade tentou derrubar o muro que me constitui, não sei se celebre ou não. O muro resistiu, mas será isso uma virtude? Ao ler esta palavra, rio-me. Quem quer saber de virtudes, dessa invenção dos velhos filósofos gregos. Anoiteceu há muito, o melhor será calar-me.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2021

Raízes

Podemos fugir àquilo que somos? E aquilo que somos pode desligar-se do lugar onde nascemos? Estas perguntas vêm a propósito de Toshio Hosokawa, um compositor japonês de música erudita contemporânea. Ocorreram-me quando escutava a peça denominada Wie ein Atmen im Lichte, que o serviçal tradutor da Google verte para Como Respirar na Luz. Para as pessoas não habituadas à música contemporânea, as peças de Toshio Hosokawa não parecerão mais estranhas que as do português Emmanuel Nunes. No entanto, há em Hosokawa uma clara influência da música tradicional japonesa. Não é aqui, porém, que quero chegar, mas ao carácter lancinante de algumas das suas peças, como aquela que se referiu acima e que se pode transformar numa pergunta, Como Respirar na Luz? O compositor nasceu em Hiroshima, passados dez anos da deflagração da bomba atómica. Quantas pessoas, da sua família, porventura, não se viram confrontadas com a impossibilidade de respirar naquela luz terrível, no esplendor fulgurante do cogumelo impetuoso e mortal que caiu sobre a cidade? Podemos alienarmo-nos, tornarmo-nos estranhos a nós próprios, mas aquilo que somos e o lugar de onde viemos não deixa de estar, no fundo da consciência, a orientar o olhar, as opções, as escolhas estéticas, ou outras. O sol, lá fora, brilha, com uma tonalidade invernal. A vida passa tranquila e confia-se que nenhuma bomba atómica caia sobre nós e estilhace o céu e a terra, para que um compositor a vir componha em forma de música essa dor sem nome que nasce dos corpos lacerados.

quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

Forças mágicas

No volume II, A Queda para Fora da Realidade, da sua Crónica dos Sentimentos, Alexander Kluge tem um capítulo dedicado ao tema da Revolução denominado A Revolução É um Ser Vivo Cheio de Surpresas. Como no resto da obra, também este capítulo é composto por pequenos textos, alguns com títulos extraordinários, A Querela das Revoluções: Formam Círculos ou Espirais? Ou Serão Hipérboles? Levantam Voo? Se achou este título demasiado grande há outros mais pequenos, como por exemplo Aplicação da Medida Métrica ao Tempo do Relógio ou, então, Os Perigos da Filantropia. Das múltiplas denominações dadas aos textos sobre a vexata quaestio da Revolução, aquele que hoje elejo como o meu preferido é Poderão as Ambições de Dominação Gerar Forças Mágicas? Eis um problema fundamental. Há coisas extraordinárias desde que se ponha em movimento a ambição, o desejo e outras forças que não sendo ocultas, também não são manifestas, como no caso que acabo de ler de uma enfermeira italiana. A pobre senhora militava no negacionismo dos efeitos do vírus SARS-COV2. Estava suspensa da função por se recusar vacinar. Publicava vídeos em apoio das suas teses e consta que afirmara querer apanhar o vírus. As forças mágicas fizeram-lhe a vontade e a infeliz não resistiu aos efeitos virais. Sendo assim, não será uma coisa de somenos importância saber se as ambições de dominação têm poder para gerar forças mágicas. Pelo menos forças elas geram, se são ou não mágicas, isso é objecto de disputa, como quase tudo.

terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Acabar em nome de hotel

Ora, para o que um homem está guardado, comentei para mim mesmo. Descobri há pouco, numa deambulação online em busca de alojamento para uma saída, que um dos mais brilhantes, senão o mais brilhante, dos oradores parlamentares do século XIX, é agora nome de hotel. Anda uma pessoa a enfrentar perigos e revoluções. Usa uma das mais terríveis retóricas que se fizeram ouvir por estes lugares. É odiado e amado. Tudo isto para acabar em nome de estabelecimento comercial. Neste caso, num lugar onde as pessoas se deslocam para dormir e não para fazer da vigília um estado de alerta para o combate. Quando as pessoas acabam em nome de rua, ainda vá que não vá. Agora, em nome de hotel, restaurante, loja, parece que toda aquela glória, afinal, era de pechisbeque. Seja como for, o ilustre deputado, o homem da patuleia, o setembrista radical, lá terá a sua rua, a sua estátua e também deverá ser nome de escola. Por falar na patuleia, dois dos liberais radicais terminaram em nome de liceu, o Passos Manuel e o Sá da Bandeira. Foi neste, apesar de nunca o ter frequentado, que diversas vezes na vida enfrentei terríveis examinadores. Pior sorte que aquela que coube ao magnífico retor, foi a dos seus colegas setembristas. Começaram como nomes de liceu e acabaram em designações de escolas secundárias. Ele que se acautele, pois ainda pode acabar em nome pensão. Nunca se sabe.

domingo, 12 de dezembro de 2021

Doze dias para o Natal

Hoje é dia doze e daqui a doze dias será véspera de Natal. Este passará com grande rapidez. Por vezes acalento a esperança vã de que o tempo sofra um refreamento na sua ânsia de chegar ao futuro. Ele, porém, mantém-se firme na sua decisão e corre sem freio. Isso não me retira o sono, depois do almoço tardio de domingo. Até há pouco estava uma luz exuberante de Primavera. Agora, a fulguração declina, o brilho desaparece e tudo se prepara para ceder ao desejo da noite. Leio que há um novo campeão mundial de Fórmula 1. Outrora, a notícia ter-me-ia interessado vivamente, mas vai para cinquenta anos que as corridas de automóveis deixaram de me interessar. Mais uns anos e talvez voltem a prender-me a atenção. Nunca se sabe para o que se está guardado. Os jornais e sites noticiosos continuam com a sua contabilidade mórbida. Assinalam que por cá a pandemia fez mais treze mortos. Podiam ser mais precisos. Ontem morreram em Portugal x pessoas, treze das quais vítimas de COVID. Podiam ser ainda mais rigorosos e indicar com precisão a causa de todos os óbitos. Para contrabalançar deveriam também indicar o número de nascimentos e a causa deles. Diriam x neonatos desejados, y fruto do acaso. Dentro deste, poderiam categorizar, elencando cada classe de acidentes que originaram uma criança. Ficaríamos todos mais informados e a estatística tornar-se-ia de grande utilidade noticiosa e dar-me-ia motivo para escrever mais umas linhas. Oiço o jazz do Tord Gustavsen Trio. Embala-me. E as compras de Natal? Tenho de pensar nisso.

sábado, 11 de dezembro de 2021

O lutador

Há pouco, ao arrumar uns ficheiros no computador, deparei-me com uma colecção destes textos. Tinha o nome de E aquilo que fatiga o lutador coroa o vencedor – diário da pandemia. Correspondia a quatro meses de actividade bloguística, desde o dia 1 de Março de 2020, até a 30 de Junho. Não faço ideia por que razão destaquei esses textos de todos os outros. Também não imagino o motivo que me levou a parar a recolecção no dia 30 de Junho. Terei, na altura, imaginado que o distúrbio que atingiu a vida dos seres humanos sobre a Terra estivesse a acabar? Santa inocência. O título, porém, sei a onde o fui buscar. A uma frase do Traité de la Maison Intérieure ou de l’Édification de la Conscience. Obra atribuída a Bernardo de Claraval, mas a atribuição é espúria. Há na frase escolhida por mim uma tonalidade guerreira, o que não chocaria com uma atribuição ao autor da regra da Ordem do Templo, o mesmo Bernardo de Claraval. A questão, todavia, é se aquilo que fatiga o lutador terá possibilidade de um dia coroar o vencedor. Se em Junho de 2020, talvez ainda se imaginasse que daí a uns meses as coisas voltariam ao que eram, agora, a percepção parece a contrária. O vírus mostra-se persistente e com capacidade de se adaptar ao combate que lhe é movido. Seja como for, o melhor é o lutador continuar a fatigar-se, talvez chegue a hora em que a fadiga coroará o vencedor. Não há nada como um princípio de esperança.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

Dias difíceis

Há dias em que se têm de tomar decisões que gostaríamos muito de nunca ter de as tomar. O melhor, mesmo se por dentro tudo se dilacera, é enfrentar o inevitável, como se fosse a coisa mais banal do mundo. Sempre achei que a realidade tem uma face abominável, mas à qual não podemos voltar as costas, pois ela devora-nos. Terá outras alegres e benfazejas, dir-se-á. Não o creio. A alegria e a benevolência, aquilo que traz contentamento e prazer, tudo isso não faz arte da realidade. São pequenos sonhos e fantasias com que edulcoramos a vida, para a tornar suportável. Sempre abominei aqueles programas sobre a vida selvagem. Os animais são seres magníficos, mas tudo na sua vida gira em torno de matar e morrer, com interlúdio para o sexo, para que o triste espectáculo da sua existência possa continuar, num mundo onde só há devoradores e devorados. Essa é a realidade, mesmo entre nós, seres humanos. Talvez a diferença específica que nos separa, um pouco, muito pouco, desse mundo sangrento, não seja o facto de termos sido dotados com a razão, mas de haver em nós uma faculdade produtora de fantasia. Uma frágil faculdade, diga-se, mas que mesmo assim nos faz pensar que a vida vale a pena, que é possível fugir dessa orgia de morte com que a vida se alimenta. Talvez não seja por acaso que a tradição cristã elegeu a sexta-feira para a morte de Cristo.

quinta-feira, 9 de dezembro de 2021

Ser zaragatoado

Uma calamidade termos voltado ao estado de calamidade. Por causa disso, tive de ir hoje oferecer as minhas pobres narinas ao exercício do escarafuncho. Como terei de ir amanhã fazer uma visita a um hospital, além do certificado de vacinação, tenho de levar a prova de que fui zaragatoado e que o resultado foi negativo, como comprovei há pouco ao recebê-lo no email. Pior, muito pior, do que ser vítima da arte de escarafunchar narinas é a odisseia – só esta palavra indica o carácter aventuroso do que vou dizer a seguir – a odisseia, repito, de marcar a escarafunchadela. Liga-se para aqui, para ali, para acolá, laboratório público, laboratório privado, e não há uma alma que nos atenda. Minto. Há técnicas ainda mais soezes de conduzir, ao desespero, o candidato à zaragatoa. Atendem do geral, amabilidades mil, diz-se ao que se vai, respondem que vão fazer ligação ao laboratório, é lá que se trata de tudo. Agradecemos humílimos, fazem a ligação e somos recebidos por uma música inenarrável, entrecortada pela informação de que nos encontramos em fila de espera. A fila deve ser tão grande, que a própria operadora de telemóvel se cansa de nos ver esperar e acaba com a chamada. Talvez também não gostasse da música. Assim como num dia nublado há momentos em que surge uma aberta para o sol brilhar, também neste céu nebuloso das testagens COVID se fez uma aberta, eu marquei o teste, foi testado à hora exacta e recebi mais cedo do que esperava o resultado. Nem tudo é mau. Não tem sido um dia fácil, mesmo para um herói sempre disposto a odisseias.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Falta de coragem

Hoje foi um dia em que não fiz rigorosamente nada. Pelo menos até agora. É certo que levei uma pessoa à estação rodoviária para ela apanhar o Expresso. De seguida, fui à bomba de gasolina encher o depósito do carro e, por fim, passei pela farmácia para comprar aspirinas de 100 mg, coisa que consumo ao ritmo de uma por dia, e que me irrita solenemente, pois custa tanto como as aspirinas normais que possuem cinco vezes mais de substância activa, o célebre ácido acetilsalicílico. Tudo isto não dá para uma aventura digna de narração e de rememoração. Fosse a ida a um supermercado ou à frutaria da esquina, as coisas seriam diferentes, pois são lugares onde há gigantes a enfrentar e dragões a abater. São locais que dão sentido à vida humana. Não tendo ido lá, nem sequer ao Shopping, pois aqui também há um entreposto comercial com esse nome, vi seriamente abalado o sentido último da minha existência. Ainda iria a tempo, caso tivesse coragem e me dispusesse a enfrentar o ar frio, mas estou em registo de feriado. Fico-me por casa, na companhia de Pelleas und Melisande, de Arnold Schönberg, compositor que me tem acompanhado todo o santo dia, pois este é um dia santo, como me recordou há pouco o padre Lodo, como é conhecido entre os amigos o velho jesuíta Lodovico Settembrini, que trocou, há décadas, a terra natal por este recanto da península, onde, além de Deus, cultua os vinhos e a comida. Com moderação, como nunca se esquece de sublinhar. É verdade, hoje estive quase uma hora em conversa de telemóvel, mas isso não é uma aventura, apenas um prazer. Tivesse eu a coragem de um Cid campeador ou de um Orlando Furioso, ainda iria comprar umas coisas ao supermercado. Falece-me, porém, a coragem e tenho de pensar nos presentes de Natal.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Uma dura aventura

Uma dura luta contra as forças arbitrárias que comandam o universo. Em 2011, comprei a Encyclopaedia Britannica. Não em papel, claro, mas num DVD. Ela lá foi prestando os seus serviços, em concorrência com a Universalis, em língua francesa. Tendo feito uma troca do disco interno do computador, preparei-me para a instalar. Coisa simples. O pior é que as forças do mal não estavam pelos ajustes. Dava o comanda para instalação, e nada. Que me instalasse eu, cheguei a ouvir murmurado. Pensei, depois de várias tentativas, que o problema poderia ser da unidade de DVD do computador. Ligo uma unidade de DVD portátil. Resultado? Nada. Entretanto, tive de me fazer à vida. Entre outras coisas, fui ao dentista. No retorno, para descargo de consciência, fui tentar mais uma vez. A princípio, o dispositivo continuou renitente, mas depois, talvez por eu ter ido ao dentista, apiedou-se e decidiu começar a instalação. A certa altura pediu o serial number. Com delicadeza, dizendo-me que ele se encontra na caixa do DVD, no lugar referido no documento que acompanhava a mercadoria. Esse documento, se o guardei, não faço a mínima ideia onde estará. Pus-me a pesquisar na caixa e lá o encontrei muito disfarçado. Olhei para ele, ajustei os óculos, fiz incidir a luz de um candeeiro, mas isso só serviu para constatar que há dez anos via muito melhor. Pensei numa lupa, mas estava noutro lugar da casa. Ocorreu, então, fazer uma fotografia com o telemóvel. Remédio Santo. O serial number lá se mostrou em algarismos e letras bem visíveis. E é isto o que me ocorre narrar. As outras coisas não interessariam a qualquer leitor e aquelas que, porventura, o interessassem, não me interessam a mim. Fica aqui, para os pósteros poderem recordar, uma aventura onde, depois de muita porfia, as forças do arbítrio e do mal são vencidas, aventura que supera tanto as do Cid, o Campeador, como as do Quixote.

domingo, 5 de dezembro de 2021

Meditação dominical

Há livros de poesia cujos títulos são, por si só, autênticos poemas. Um dos poetas com mais talento para escolher títulos foi Eugénio de Andrade. Por exemplo, As mãos e os frutos¸ ou Obscuro domínio, ou Véspera de água, ou Limiar dos pássaros, ou O peso da sombra, ou Branco no branco, ou Rente ao dizer, ou O sal da língua, ou Lugares do lume. Cada um dos títulos basta para produzir um profundo efeito poético no leitor. Mais do que isso, cada um destes títulos tem o poder de arrastar o leitor para uma meditação que ultrapassa em muito o prazer poético que eles produzem. Essa meditação pode conduzir à descoberta de conexões inesperadas entre realidades que o hábito ritualizado mostra como completamente separadas. Há, por exemplo, uma clara incongruência na expressão véspera de água ou em o peso da sombra. No entanto, podemos ser conduzidos a pensar sobre o que antecede a água, o que será aquilo que vem antes dela, ou então a meditar por que razão aquilo que a véspera antecede é denominado água. Hoje é véspera de amanhã. Não será, neste momento, o amanhã ainda uma coisa líquida, sem os contornos da solidez? Também a sombra não tem peso, mas não haverá algo de pesado em tudo o que é sombrio? Estas incongruências são o produto da imaginação que oferece ao leitor uma chave para abrir aqueles obscuros domínios, onde a realidade se esconde. A mim, todavia, não me ocorre nada de poético, apenas que é domingo e o almoço será, como é habitual, tardio. Também os dias têm a sua gramática, morfologias e sintaxes muito próprias, que os classificam e organizam, que estruturam os seus rituais. Talvez a poesia, com as suas incongruências, seja uma luta contra o ritual dado na gramática de cada coisa.

sábado, 4 de dezembro de 2021

Citação

Comece-se com uma citação. A inocência é uma coisa admirável; mas é por outro lado muito triste que ela se possa preservar tão mal e se deixe tão facilmente seduzir. Que bela citação. Talvez o leitor pense de imediato estar perante um texto do século XVIII. Não se terá enganado. De facto, o livro de onde foi retirado o excerto é da parte final desse século de luzes, revoluções e libertinagens. Tem, aliás, o odor desses tempos. Depois, ao meditar no conteúdo, verá nascer-lhe a convicção de que se estará perante o começo de um romance ou de uma novela libertina, daquelas em que a inocência facilmente é vencida por sedutores mais ou menos experimentados. Talvez obra do senhor Donatien Alphonse François de Sade, também conhecido por divino Marquês. Ah! Como as ilusões depressa cobrem com o seu manto de fantasia a realidade. Já se pressentia uma jovem inocente afogueada, presa da líbido exuberante de algum dominador cruel, já se via o rubor da alma ainda imaculada a ceder à curiosidade que o desejo logo acende. A imaginação não tem fronteiras. A verdade, porém, é que a citação pertence a um autor pouco dado a aventuras libidinosas, de uma moral rigorosa e, não será uma hipérbole dizê-lo, assexuada, alguém que atravessou a vida sem se casar ou, que se saiba, ter tido uma aventura erótica. Que se saiba, sublinho. Estas coisas nem sempre são o que parecem. Não, não é um libertino o autor de tão promissora abertura de uma novela libertina. Trata-se daquele senhor que todos os dias dava um passeio à mesma hora pela cidade de Konigsberg e cujo nome é Immanuel Kant. A páginas tantas da sua Fundamentação da Metafísica dos Costumes, saiu-se com esta, mas o desenrolar da narrativa não conduz a aventuras dionisíacas, não há jovens inocentes e belas seduzidas pelos mestres da perversão, mas traço o duro caminho do rigor moral apolíneo. O sábado sombrio não me está a fazer nada bem.

sexta-feira, 3 de dezembro de 2021

Uma traição

Mandei trocar o disco interno do computador, o que me limpou o dispositivo do imenso lixo que o tornava mais lento que Aquiles atrás da tartaruga, mas trouxe-me um grande desgosto. O Word apareceu-me formatado para o malfadado Acordo Ortográfico de 1990. Esta mania das reformas e simplificações ortográficas, de adaptar as coisas aos tempos, como se os tempos não se pudessem adaptar às coisas, causa-me desprezo. As línguas vão-se transformando, tal como as sociedades, os países e as sociedades. Hoje em dia ninguém se lembra de ir dinamitar umas ruínas romanas ou um castelo medieval só porque, na verdade, são inúteis. Foi o que fizeram com o português. Ele tinha, em algumas das suas palavras, os vestígios mudos, mas visíveis, da sua origem, verdadeiros monumentos linguísticos, e aqueles senhores, os que perpetraram a ignomínia do acordo e os que o aprovaram, acharam que era boa ideia pôr umas bombas nesses vestígios monumentais. Não foram os primeiros, pois um corpo de linguistas do tempo da Primeira República fez o mesmo, eliminando os vestígios visíveis do grego, mas isso compreende-se. Nesses tempos, os bombistas estavam na moda. Este jacobinismo linguístico irrita-me. Até aqui o meu processador de texto era fiel ao português anterior ao segundo bombardeamento. Agora, se escrevo cacto ou conjectura, sublinha-me as palavras a vermelho. Se tenho a veleidade de escrever o mês com maiúsculas, lá está o Word a sublinhar a palavra a azul, indicando-me uma incorrecção gramatical. E este processador não é o pior, pois há os que o único português que conhecem é o do Brasil e não hesitam em sublinhar facto a vermelho, pois no Brasil, factos são fatos e fatos são ternos, apesar dos cactos e das conjecturas continuarem a ser aquilo que eram. Se se fossem internar, ficaria muito grato. Uma traição.

quinta-feira, 2 de dezembro de 2021

Um dia de luz

Um dia luminoso e frio, belíssimo, mas talvez a anunciar um ano sem chuva. Na praceta, adolescentes jogam à bola, gritam golo, emitem uns urros próprios ao estado em que se encontram. Sem que o entusiasmo esmoreça, de súbito, calam-se. Terão entrado para o Centro de Línguas. Ali não haverá lugar para urros, nem para golos, mas a preparação do futuro, convencidos todos que o futuro ainda será escrito e falado em língua inglesa. Estas presunções são difíceis de provar, mas é muito mais difícil mostrar a sua falsidade. Quando tinha a idade deles, era inverosímil pensar que o Francês se tornaria, em Portugal e um pouco por todo o mundo, uma língua dispensável. Pertenço a uma geração cuja cultura de base é francesa. A literatura, a música, o modo de vida e até a política, embora sobre isso o autor não me deixe falar. Agora, ninguém quer saber do Francês. A língua inglesa, como certas variantes dos vírus, tornou-se dominante, há já faculdades a ministrar os cursos em inglês, e, caso o gosto de alguns se tornasse dominante, em pouco tempo Portugal tornar-se-ia um país anglófono, a que não faltaria o pedido de adesão à Commonwealth. O que teria as suas vantagens, pelo menos no Algarve. Agora, enquanto o dia resiste aos avanços da noite, vou ver a luz resplandecer na cidade.

quarta-feira, 1 de dezembro de 2021

Presépios

Chegou a última carruagem do comboio de 2021. Este corre desenfreado em direcção a 2022, como se estivesse tomado pela urgência de um encontro decisivo. Não tarda, a Restauração fará quatro séculos. Apesar de gostar imenso de Espanha, gosto ainda mais de não ser espanhol. Não que a condição de ser espanhol seja algo que provoque vergonha. Pelo contrário, os espanhóis têm imenso prazer em sê-lo. É esse prazer que eu sinto em ser português. Lamento as nossas idiossincrasias mais obscuras, lamento a falta dos climas do Norte, sou dos poucos a fazê-lo, mas a forma como os portugueses olham para o mundo, com bonomia e moderado cepticismo, coisa de gente que já viu muito, são-me agradáveis. Esse prazer de ser português justifica plenamente que se comemore o cartão vermelho aplicado a Filipe III. Importante, porém, foi ter cá o meu neto. Ainda não sabe nada de restaurações, mas mal passou a porta e viu a árvore de Natal e os presépios – coisas que por cá são montadas no início do Advento – ficou fascinado. Queria ver as luzes na mão dele e mexer nas figuras. Sou muito sensível a estas reacções, pois nunca esqueci um presépio montado pelo meu pai, há muitas décadas. Pelas minhas contas tinha eu a idade do meu neto. Julgo que estou ligado ao Natal por esse presépio arcaico, feito por alguém que não era crente e que nunca vacilou na sua descrença. Ou talvez eu esteja enganado, e aquele presépio feito para mim fosse a confissão de uma crença bem funda. Se tiver tempo, ainda hei-de contar ao meu neto o presépio que o bisavô dele montou, com pedras e musgos, rios de prata e caminhos de areia, céus azuis com estrelas e lua. Amanhã, a Restauração estará acabada e a realidade voltará com os seus imperativos e mandamentos, mas o Advento prossegue com os seus presépios debruçados sobre a infância.

terça-feira, 30 de novembro de 2021

O Restaurador

Adeus, Novembro. Está tudo terminado, daqui a algumas horas será feriado e Dezembro virá como o Olex, o restaurador. Claro que pouca gente saberá o que é o Olex. Não é, apesar das aparências, nenhum rei de uma tribo pré-romana, que tenha restaurado a dinastia, nem haverá semelhanças com um Bragança que aceitou que os espanhóis fossem postos fora do trono para ele o ocupar. Se tem problemas com a cor do cabelo, então o Olex restituir-lhe-á a cor primitiva, uma verdadeira poção, apenas ultrapassada por aquela em que Obélix caiu em pequeno e a que toma o seu companheiro de orgia – não sexual, note-se – Astérix. O Restaurador Olex pertence à mesma empresa que produz a célebre pasta medicinal Couto. Ambos os produtos possuíam in illo tempore anúncios que, pelo seu inusitado ridículo, funcionavam muito, muito bem. Amanhã, quase hoje, livrar-nos-emos da espanholada, defenestraremos o Miguel de Vasconcelos e, como gauleses do Astérix, haveremos de resistir a todos os cantos de sereia dos castelhanos. Este é um dos episódios da nossa história que, na narrativa dos meus professores primários, me fizeram pensar que todos os nossos gloriosos antepassados eram heróis e santos, que haveriam de estar na glória do Senhor, cantando hossanas e aleluias. A inocência é uma grande coisa.

segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Questões de beleza

Revejo algumas reproduções de quadros de Jackson Pollock. Nunca me canso. Não é a técnica, drip painting, que me interessa, mas o resultado. Imagino sempre que se está perante uma visão daquilo que se esconde por detrás das aparências. Nestas a figura e o contorno são forças que impedem a visão de se confrontar com o caos originário. O que alguns quadros de Pollock fazem é mostrar que também no caos, naquilo que parece ser o resultado de gestos fortuitos, se encontra a beleza. Isto pode parecer paradoxal, pois a beleza é, por norma, associada à organização, à forma, à feliz disposição das aparências, as quais surgem ordenadas segundo uma justa medida. Uma das leituras da arte do século XX é que esta despediu a beleza. Talvez essa apreciação esteja radicalmente equivocada. Talvez a beleza se tenha estendido para domínios que antes seriam considerados não belos. Não sei se esta meditação pseudo-estética foi motivada pelas reproduções de Pollock ou por ser segunda-feira, aquele dia em que a realidade bate à porta, entra e senta-se até que chega a sexta-feira e ela vai de fim-de-semana. Demasiado contacto com a realidade não faz bem a ninguém, como se pode ver.

domingo, 28 de novembro de 2021

Um domingo ganho e um choque

Estava a atravessar a cidade quando ouvi: e se passássemos pelo local onde estão a vacinar, pode ser que ser que tenhamos sorte. Talvez esteja fechado, hoje é domingo, respondi. Mas dirigi o carro para lá. Era meio-dia e meia hora quando chegámos ao sítio. Às treze horas estava na rua à procura de um restaurante com o reforço da vacina contra a COVID feito e a toma da vacina da gripe, uma estreia. Isto significa que as coisas por aqui estão a funcionar como deve ser. A coisa está, por agora, resolvida, tanto quanto se pode resolver. Foi um domingo ganho. Curioso é que as pessoas que estavam a vacinar-se, a maioria, era gente nova, o que quer dizer que não o tinham feito no devido tempo e que alguma coisa lhes assaltou agora a consciência. Também se demandou por testes COVID, mas estão esgotados por toda a parte. As pessoas estão a abastecer-se para as festas de Natal e de Ano Novo. Como é que a indústria não antecipou a reacção do mercado? As acácias da praceta, que ainda há dias apresentavam uma belíssima e composta folhagem amarela, estão agora quase despidas. O vento balança-lhes as folhas mortas e estas caem, enovelando-se no chão. Numa passagem pelo supermercado tive uma das piores experiências que se pode ter. Estávamos a pagar numa caixa e alguém se mete connosco, com à vontade e familiaridade. Olho perplexo para a pessoa, torno a olhar e, só passados largos, demasiado largos, segundos, descubro que, por detrás da máscara, estava o rosto do meu filho. Acho que ainda não me recompus do choque de não o reconhecer de imediato.