sexta-feira, 10 de maio de 2024

Esquinas

A disposição das coisas impede-nos de compreender o que se oculta sob essa disposição. Foi esta a primeira lição que tirei ao ler Se não fosse a vida estender-se numa linha contínua, talvez ela tivesse reparado a certa altura que tinha dobrado uma esquina. O excerto é o começo de um breve texto denominado “Borboleta branca”, de O Livro Branco, de Han Kang. A linha contínua do tempo oculta-nos tanto as mudanças de rumo no espaço como as que acontecem na existência. Acumulamos tempo até que o tempo se nos acabe, mas essa acumulação hipnótica esconde outra acumulação, a das esquinas dobradas, as etapas existenciais que só sabemos que o são quando estão acabadas e se tivermos muita sorte e possamos, por instante, quebrar a hipnose que o tempo faz cair sobre nós. Imaginemos que, mortos, somos levados a um tribunal para prestar contas. Não nos perguntarão, por certo, quantos segundos acumulaste ao longo da vida. O promotor público perguntará: quantas esquinas dobraste? Escutada a resposta, dirá vamos agora examinar se as que dobraste são as certas ou se te transviaste no caminho. Talvez o defensor nomeado proteste, argumentando que a existência de esquinas certas ou erradas é uma presunção do promotor, uma mera conjectura que não tem em consideração que o visado, ao abordar uma esquina para a dobrar, está sempre convicto de que é a certa. A discussão entre o promotor e o defensor pode durar várias eternidades, sem que se chegue a alguma conclusão, deixando o visado sem julgamento, isto é, sem punição nem absolvição. Seja como for, o melhor é dar atenção às esquinas que se escondem sob a linha do tempo e também às do espaço, não vá toparmos com quem não queríamos ver.

quinta-feira, 9 de maio de 2024

Dia da espiga

Não fui colher a espiga, hoje que é dia dela. Aliás, nunca participei nessas romarias ao campo, para colher a espiga e fazer um ramo que incluía ainda papoilas, malmequeres, pequenos ramos de oliveira, alecrim e videira. Uma festa claramente pagã e que acabou por coincidir com a festa cristã da Ascensão. Em tempos, a Quinta-Feira de Ascensão foi feriado nacional, mas agora só é feriado em alguns – são bastantes – municípios, como este em que me recolho. Não terá sido muito inteligente acabar com o feriado nacional. Os católicos festejariam a Ascensão, os pagãos iriam à espiga e os outros entregavam-se ao descanso, pois, contrariamente ao que se propaga desde a tenebrosa (por certo, por causa do carvão) Revolução Industrial, o homem não foi feito para o trabalho. Este é um mal, um castigo metafísico. Ora, se o trabalho tem essa natureza, o mais sensato será aliviar os homens, o mais possível, dessa punição. Punição como aliás decorre da própria palavra trabalho, que foi derivada de tripalĭu, um aparelho de tortura composto por três paus. Como a história das palavras nos conta coisas interessantes. Num tempo de grandes preocupações ambientais, seria sensato que um governo decretasse a Quinta-Feira de Ascensão, com a adenda de se considerar também Dia da Espiga, como feriado nacional, e todos fossem passear ao campo, fazer ramos e testar a sua resistência às alergias provocados por pólenes, pós e poeiras. Por ser feriado, tenho passado o dia a trabalhar e a ouvir as sinfonias de Gustav Mahler, dirigidas por Eliahu Inbal e executadas pela Radio-Sinfonie-Orchester Frankfurt, em gravações que datam do século passado. Este é o meu programa musical para hoje e os próximos dias. Daqui a pouco, mais à tardinha, irei caminhar junto ao rio, num lugar onde há papoilas e malmequeres. Não os apanharei, mas olharei para eles e ficarei grato pela sua existência, como pela existência do rio e dos chorões e salgueiros que por lá existem.

quarta-feira, 8 de maio de 2024

Ruminar o futuro

Hoje, decidi comprar um livro de Ursula K. Le Guin. É conhecida como autora de romances de ficção científica. Li dela apenas três romances do denominado ciclo de Terramar, o qual foi completado, mais tarde, por outros três, que nunca li. Estes romances fazem parte de uma literatura de fantasia, cuja personagem principal é um feiticeiro denominado Ged, o gavião, se bem me recordo. Não eram romances típicos de ficção científica ou de antecipação. A ficção científica foi um género que nunca me atraiu. Talvez seja o contraponto do romance histórico. Enquanto este ficciona o passado, a ficção científica fá-lo-á com o futuro. Talvez este género literário seja mais importante do que aquilo que eu tenho pensado. Não pela literatura em si mesma, mas pelo modo como a imaginação opera para trazer à linguagem as expectativas humanas, o modo como dentro de nós o futuro é ruminado. A compra de Do Outro Lado do Sonho, o romance de Ursula K. Le Guin, é uma tentativa de entrar nesse mundo narrativo, do qual, na verdade, só conheço o Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley. A minha percepção é que esse tipo literário tem uma natureza distópica. Seria interessante perceber a razão por que o futuro é, por norma, antecipado como um lugar de trevas. Isto recorda-me a velha teoria das Idades do Mundo, em que a primeira Idade era a mais ditosa, a de Ouro e a quarta, a última, a Idade de Ferro, aquela que era tenebrosa por essência. Esta inversão da ideia de progresso talvez seja a fonte que alimenta a imaginação dos escritores de ficção científica, ou, porventura, de todos os escritores. O melhor dos mundos possíveis não está no presente, nem no futuro, mas pertence a um passado de que perdemos a memória, restando apenas vestígios inconscientes, cuja luz não é suficiente para iluminar o futuro.

terça-feira, 7 de maio de 2024

Ondina

Esta noite acabei de ler um conto – talvez fosse mais correcto classificar a obra como uma novela – onde uma das personagens centrais é uma ninfa ou um génio feminino das águas. O autor é Friedrich de La Motte-Fouqué, autor que desconhecia por completo e que um acaso depositou diante de mim a sua obra, Ondina, na tradução portuguesa. É um conto fantástico e mais um episódio daquilo a que se poderia chamar a legenda do amor no Ocidente. Não sou dado à literatura fantástica, mas talvez esteja numa fase de alteração do gosto. Nunca se sabe o que a idade traz aos seres humanos. Sobre aquilo a que chamei a legenda do amor no Ocidente, apenas posso remeter para a obra de um dos pais da Europa, Denis de Rougemont, no seu O Amor e o Ocidente. Presumo que ainda seja obra que mereça ser lida, embora a alteração do gosto tenha sido acentuada nas últimas décadas, e a influência anglo-saxónica tenha obliterado a atenção aos autores da Europa continental. Voltando à bela Ondina, ela abandona o seu mundo em busca de uma alma humana. É o máximo que posso adiantar, mas poderei acrescentar que a pretensão de Ondina será a de todos os seres humanos, quando abandonam o mundo do nada onde existiam, antes de serem concebidos, e são postos sobre a Terra. A partir daí buscam por mil caminhos encontrar e conquistar uma alma humana, a sua alma. A questão que se pode colocar é se eles a encontram ou a perdem, não por a terem, mas por não encontrarem a alma que seria a sua. O que me vale – acabo de o pensar – é não viver num tempo em que o Tribunal do Santo Ofício exercia os seus poderes nesta terra, pois estas formulações acerca da alma são heréticas. Heréticas ou não, são muito mais interessantes. Uma coisa é receber de mão-beijada uma alma na hora da concepção. Outra, bem diferente, é enfrentar o mundo, como D. Quixote, o cavaleiro da triste figura, para encontrar a sua alma. Que aventuras não há que empreender? Que ilusões não há que desfazer? Sim encontrar e conquistar a sua alma é uma prova difícil, mas todas as coisas belas são difíceis, como o escreveu um dia Platão.

segunda-feira, 6 de maio de 2024

Da fealdade das palavras e da origem das sombras

Uma sombra projecta-se no muro da escola aqui ao lado. Depois, desaparece. Este é o destino de todas as sombras, oiço dizer dentro de mim. Por uma vez, aquiesço, no sentido de condescendo com a opinião que foi soprada nem sei bem de onde e por quem, talvez um homúnculo que vive escondido nas terras escuras do meu subconsciente. Aquiescer é um verbo horrível. Não pelo seu significado, mas pela sua sonoridade. Há palavras assim, nascem feias e, por mais tratamentos de beleza que façam, nunca se tornam umas belas palavras. Há pelo menos três categorias de palavras feias. Uma categoria fonológica, em que a fealdade deriva do som, como o verbo aquiescer. Uma categoria semântica, em que a palavra é feia pelo seu significado; por pudor, omito um exemplo. Uma categoria do uso, em que a fealdade deriva da palavra ser usada para tudo e para nada, como a horrível palavra empreendedorismo. Imagine-se, agora, que uma palavra é feia pelo som, pelo sentido e pelo uso. Não haverá palavra que queira casar com ela. No muro, continuam a projectar-se sombras. Umas desaparecem rapidamente, outras permanecem, como a das árvores ou dos carros parados. Todos nós, dotados de bom senso – a coisa mais bem distribuída no mundo, pois, como ensinava o bom Descartes, não há quem queira mais do que aquele que tem – todos nós, dizia, afirmamos que as sombras naquele muro se devem a uma interposição de corpos opacos entre o muro e uma fonte luminosa. É sensato acreditar nisto. Seria, porém, insensato crer que aquelas sombras são emanações de um mundo interior ao muro e que chega até nós não sua vividez real, mas num estado penumbroso, pois perdeu a energia para se manifestar vivo e cintilante na superfície externa do mundo? Se esta hipótese parece inverosímil, há que sublinhar que ela tem um papel relevante na nossa sociedade. Oferece uma solução alternativa à explicação da sombra, o que assegura a concorrência no mercado das ideias e promove a liberdade de escolha dos cidadãos.

domingo, 5 de maio de 2024

Do necessário e do contingente

Peguei num romance que li décadas atrás. Deixou-me, então, um sentimento de prazer. Ao pegar nele, ainda sem saber se vou voltar a lê-lo, dei por mim a pensar se na literatura não se passa o mesmo que no vestuário, onde a moda reina despótica, mas por um reinado curto, o e uma estação. Este romance, do romeno Mircea Eliade, publicado em Portugal com o título Rua Mântuleasa, terá passado de moda? Sempre imaginei a literatura, a arte em geral, sub species aeternitas, o que, seguindo a lição do velho Baruch Espinosa, implica não apenas a eternidade das obras de arte, mas também a sua necessidade. Contrariamente a nós, seres humanos marcados pela contingência, as obras de arte teriam em si uma necessidade intrínseca que as fez vir ao mundo para permanecerem eternamente. O que significa que elas teriam necessariamente de ser criadas, mesmo que os seus autores sejam seres contingentes que poderiam não ter existido. Parece haver uma contradição insanável entre a natureza necessária da criatura, a obra de arte, e a contingência do criador, o artista. Aparentemente, para manter o carácter necessário da obra de arte e a sua eternidade, haverá duas soluções. A primeira diz-nos que o criador, tal como a criatura é um ser necessário, o que significa que um Leonardo, um Joyce, um Pessoa ou um Picasso, por exemplo, não poderiam não ter nascido e não se terem tornado artistas. Uma hipótese que nunca poderemos verificar. A segunda solução, talvez mais interessante, diz-nos que os criadores são contingentes e que são as obras de arte, antes de serem realizadas, que escolhem entre os seres humanos disponíveis aqueles que as irão criar, a elas que já existiam, num mundo potencial, antes de virem à existência. Eu sei que estas soluções são estranhas, mas haverá alguma coisa no mundo que o não seja? Ora, e era aqui que queria chegar, se as obras de arte são necessárias, então não estão sujeitas ao império da moda, o que me permitirá voltar a ler o livro de Mircea Eliade. Admito a culpa que me atribuírem de escrever coisas sem nexo. É verdade, mas isso faz parte da estranheza de tudo o que existe, inclusive a de um narrador sem nome e sem narrativa, como eu.

sábado, 4 de maio de 2024

Honrar o Floreal

A 24 de Novembro de 1793 entra em vigor, em França, um novo calendário, cujos meses tinham um pendor ecológico, tendo as denominações por fundamento aspectos do clima e da agricultura. Havia o mês das brumas, o do vento, o da neve, o das geadas, o do calor, mas também o das vindimas, o das colheitas, o das pradarias. Estes nomes foram fabricados por um poeta, segundo consta, Fabre d'Églantine. Se o calendário tivesse vingado e as invasões napoleónicas o tivessem exportado, hoje estaríamos no Floreal, o mês das flores. Este amor ao mundo da natureza e à vida nos campos, visto a partir dos nossos dias, parece uma premonição, uma tentativa de evitar aquilo que germinava em Inglaterra e que tomou o nome de Revolução Industrial. Esta, ao contrário da Revolução Francesa, não se predispôs a reformar o calendário. Onde iria ela buscar o nome dos meses? O mês do carvão, o mês das minas, o mês do vapor, o mês das máquinas, o mês da ferrovia? Fizeram bem os ingleses em não contratarem nenhum poeta para renomear os meses do ano, nem nenhum cientista para reformular o calendário. Os franceses são mais dados a este tipo de rasura. Estamos cansados do passado. Vamos começar tudo de novo. Que se reforme o calendário. Doze meses, parece boa ideia, mas há que ser racional e consequente com os ideais da Revolução. Para respeitar a Igualdade, têm todos 30 dias e são divididos em décadas, isto é, uma espécie de semana de dez dias. Os outros 5 dias – ou seis, no caso dos anos bissextos – ficam fora dos meses e são feriados nacionais, talvez para compensar a exclusão. Chamavam-lhe os dias sans-cullottes. Cada dia era dividido em 10 partes e cada uma destas em cem outras. Isto foi para acabar com aquela conta das 24 horas, dos sessenta minutos e dos sessenta segundos. Se nos pomos a pensar, talvez esse fosse o calendário mais razoável alguma vez inventado. Tudo contas certas, com um sistema decimal a funcionar. E posso provar que, mesmo hoje, seria o mais correcto dos calendários. As orquídeas cá de casa estão quase todas em flor, ou não honrassem elas o Floreal.

sexta-feira, 3 de maio de 2024

Palavras

O dia deslizou rapidamente. Ainda vai durar um pouco, antes de se entregar no crepúsculo, mas a luz já perdeu o viço e ninguém que passa nas ruas precisa de se acoitar nas sombras das árvores ou dos prédios. Ao escrever acoitar, pensei que estranhos e extraordinários instrumentos são as línguas que os povos vão criando na sua peregrinação sobre este pobre planeta. Basta uma simples cedilha e tudo muda. De acoitar passa-se para açoitar. De encontrar refúgio transita-se para o exercício da violência. Como pode uma coisa tão insignificante como a cedilha mudar o universo em que se vive. Em tempos contaram-me uma história que não tinha que ver com açoitar, nem acoitar, mas de algum modo se ligava com esta última palavra. Um professor, já não me recordo de quê, pessoa excessivamente religiosa, tinha um aluno de apelido Coito. Ora, coito é também a designação do acto sexual e, por isso, nunca tratou o aluno pelo apelido, imaginando, possivelmente, que cada vez que dissesse Coito cometia um pecado. E como se peca por pensamentos, temera cair num pecado mortal, ao chamar o Coito e pensar no coito. Asseveraram-me ser a história verdadeira, mas a imaginação das pessoas é coisa que, não poucas vezes, transborda para lá dos muros da verdade. Coito é, ainda, uma forma de dizer couto, e assim como há Coutos, também há Coitos. Já sou tão arcaico que me lembro de haver um comentador político da RTP denominado João Coito e nunca constou, apesar daquele tempo ser dado ao pudor e à censura, que o seu nome fosse censurado. Por aqui, coito também é um lugar que, nos jogos infantis, serve de abrigo. Se aquele professor em conflito com o coito tivesse de ensinar lógica, não sei como substituiria a palavra cópula que, numa proposição categórica, une o sujeito ao predicado. Quem bane o coito, por certo não admite a cópula. Chegou o fim-de-semana e com ele os dias inúteis onde nos acoitamos do açoite da realidade.

quinta-feira, 2 de maio de 2024

Destino

Entrámos em Maio no meio da incerteza climática. Os dois primeiros dias do mês parecem pagamento de juros ao Inverno. Uns juros moderados – talvez o Inverno não seja dado à agiotagem – pois o frio não é excessivo, a chuva é moderada e o vento não é tão exuberante que lembre um vendaval. O mais grave é que, neste momento, ainda não sei se lá pelas seis da tarde poderei ir caminhar junto ao rio. Dependerá dos humores de quem gere a grande empresa que fabrica o tempo. Acabei de ler o romance O Caminho do Sacrifício, do escritor alemão Fritz von Unruh. O destino das pessoas é mais estranho do que aquilo que se espera. Este aristocrata prussiano pertencia a uma família de militares. O pai era General e ele próprio foi militar. Deixou de o ser, para se dedicar à escrita, em 1911 e voltou a sê-lo com o início da primeira grande guerra. O Caminho do Sacrifício é uma obra baseada na sua experiência na mais longa das batalhas desse conflito. Contudo, não é uma obra para glorificar a guerra e promover heróis, mas um libelo pacifista. Foi este o destino de Unruh. Pertencer a uma tradição guerreira e a uma casta feita para o combate e tornar-se em pacifista. Quando os nazis chegaram ao poder, os livros de Unruh foram proibidos e ele emigrou para França e, de seguida, para os Estados Unidos. A primeira guerra mundial foi fértil do ponto de vista literário. Do lado alemão, por exemplo, há, para lá de Unruh, Erich Maria Remarque ou Ernst Jünger. É provável que a Europa nunca se tenha recomposto dessa guerra, que assinala o fim de um mundo que começara a acabar em França, no ano de 1789, e dá origem a um outro onde essa Europa deixou de ser o centro e começou a sua inexorável caminhada para a periferia onde se encontra nos dias de hoje. O destino das nações é tão estranho quanto o das pessoas. Aliás, não há coisa mais estranha do que o próprio destino.

quarta-feira, 1 de maio de 2024

Sem retorno

Sem se dar por isso, Abril de 2024 escapuliu-se para um lugar de onde não há retorno possível. Se tem de prestar contas – e que mês não terá as suas a prestar? –, não será aqui, mas naquele lugar para onde vão os meses que acabam. Talvez lá, mas isto é uma especulação sem dados empíricos, exista um tribunal, onde, após um processo rigoroso, o mês é julgado por aquilo que deixou acontecer no seu reinado e aquilo que deveria ter acontecido, mas não aconteceu. Será, parece-me, um tribunal de júri, mas também isto é incerto. Como qualquer outro mês, também Abril terá uma equipa de advogados que o defenderão. São especialistas no direito dos meses, gente treinada na barra dos tribunais e que a cada mês tem um cliente novo para defender. Os honorários serão altos – também as acusações são graves – e não se sabe como cada mês encontra dinheiro para saciar a voracidade dos seus defensores. Nesse reino para onde vão os meses acabados ou mortos, houve em tempos uma célebre disputa constitucional. Girou em torno de uma das penas propostas para o caso de um mês ser condenado, o que não é caso raro. Alguém defendeu, mas é incerto quem foi, que em determinadas ocasiões um mês, especialmente culposo, seria condenado a retornar ao calendário e ter uma segunda vida. Argumentou-se que isso possibilitaria a sua redenção, ao tornar-se mais propício a uma existência sensata dos homens. Os defensores da proposta viam na pena um instrumento de recuperação do condenado. Formou-se, de imediato, um partido oposto. Este argumentou que a pena de retorno ao calendário de um mês condenado feria dois direitos fundamentais. Em primeiro lugar, punha em causa o direito de um mês que, assim, não vinha à existência, pois o calendário teria sido ocupado por outro que já fizera o seu papel e agora regressava. Em segundo lugar, o retorno de um mês condenado seria a antecâmara de uma segunda condenação, quando acabasse e voltasse ao reino dos meses mortos para ser de novo julgado, o que contradizia uma norma constitucional que afirma que cada mês só pode ser julgado uma vez. O tribunal constitucional acolheu esta última interpretação e, a partir dessa decisão, já muito antiga, sabemos que nenhum mês que acaba torna a voltar às suas funções no calendário humano. Portanto, não voltaremos a ter um Abril de 2024.

terça-feira, 30 de abril de 2024

Curiosidades

O mundo, apesar de tudo, não deixa de ser um lugar curioso. Comprei no site denominado Trade Stories um romance, O Vestido Vermelho, do escritor sueco Stig Dagerman. O livro custou-me oito euros, incluindo os portes, enquanto novo custa dezasseis. A curiosidade reside não apenas no livro estar praticamente novo, tem apenas uma folha ligeiramente dobrada, mas no caso de a vendedora ter incluído na remessa um post-it (não daqueles amarelos, mas um com alguma animação) com agradecimento pela compra, um marcador de livros com uma reprodução de um excerto de um quadro de Monet, um autocolante que figura uma pilha de livros e, pasme-se, uma saqueta, devidamente embalada, de um chá, Earl Grey, da Lipton. Confesso que não sou um cultor de chá, nem do chá das cinco nem o de qualquer outra hora. Isso, todavia, é irrelevante. Nunca imaginei receber chá ao comprar um livro. A obra é publicada pela Antígona que se apresenta como Antígona Editores Refractários. Não tem um catálogo muito grande, mas tem muitas coisas que merecem ser lidas, como os livros de Stig Dagerman, Silvina Ocampo ou o romance O Caminho do Sacrifício, de Fritz von Unruh. Seja como for, ainda não será desta que me converto ao chá, agora que estou a limitar o café.

segunda-feira, 29 de abril de 2024

O dia de hoje

Só cheguei aqui depois de jantar. Isto significa que o dia foi excessivo em ocupações e actividades. Valeu-me a caminhada junto ao rio, seis quilómetros para ajudar na pacificação com a balança. Em pouco tempo, o volume da água diminuiu assustadoramente, deixando já entrever o leito, anunciando o fio de água que será no Verão. Em contrapartida, a erva cresceu na proporção inversa à descida das águas. Espantosas estavam as papoilas nas margens, mas não havia quem colhesse um ramalhete rubro de papoulas, nem burguesas que descessem de burros e fizessem piqueniques, onde houvesse pão de ló molhado em malvasia. Tudo isso acabou há muito. Sobraram as posturas tolas, mas essas são eternas ou tão eternas quanto a espécie humana. Estarão inscritas no seu, isto é, no nosso ADN. Os dias estão enormes, a luz prolonga-se e é um prazer o fim da tarde na rua, como se fosse a promessa de um dia sem fim e de uma luz que não acaba. Uma ilusão, mas a vida seria impossível sem ilusões, há que cultivá-las com cuidado, na exacta medida em que estabelecem um laço com a existência, mas não mais do que isso. Vou ver a noite da janela do escritório, observar como é conspurcada pelas luzes artificiais, que apagam as estrelas do céu e matam o mistério do mundo.

domingo, 28 de abril de 2024

Palavra

A sabedoria que dirige a humanidade – falo de sabedoria e não de ciência – é uma coisa muito antiga. Veja-se o que está escrito no capítulo 15 do livro dos Provérbios, do Antigo Testamento. Ira destrói até sensatos; / Mas uma resposta submissa desvia fúria; Porém, uma palavra melindrosa desperta cóleras. / Uma língua de sábios sabe coisas belas; / Mas uma boca de tolos anunciará maldades. A tradução é de Frederico Lourenço. O excerto começa com a descrição dos efeitos de um estado psicológico, mas, de imediato, passa para o domínio da linguagem. O que o texto bíblico nos mostra é o imenso poder da linguagem no concerto e no desconcerto das comunidades humanas. Isto significa que o homem não tem apenas voz, não é um mero animal comunicacional, mas, ao ser dotado de linguagem, a sua palavra é uma forma de agir sobre o mundo e a comunidade em que vive. A regulação do discurso é essencial nas comunidades humanas, embora sejam aquelas em que ele foi menos regulado que se tornaram mais prósperas e onde a vida é menos desagradável. A linguagem articulada é um poder extraordinário, uma arma de grande calibre, mas, como todos os poderes e todas as armas, pode ser usada para o bem e para o mal, para enunciar a verdade e proclamar a mentira, para apaziguar ou para desencadear a guerra. Não é impunemente que se usa a palavra. Ela nunca deixa de ter consequências.

sábado, 27 de abril de 2024

Disrupção

Há qualquer coisa de errado na minha relação com o calendário. Ontem sentia que estava numa segunda-feira. Hoje, dou por mim a pensar que é domingo. O melhor será ir à oficina, talvez possam consertar o que parece avariado. Tive de ir a um aniversário. Centro e trinta quilómetros para lá, mais centro trinta quilómetros para cá. A aniversariante ficou um ano mais velha, mas eu, apesar dos quilómetros andados, trago a mesma idade e apenas mais umas escassas horas. Como se vê, o tempo é uma coisa muito estranha. O que para outra pessoa representou um ano, para mim não me acrescentou mais do que uma dezena de horas. Como estava perto do mar, estou com a sensação na pele de que passei o dia na praia. Não passei, nem sequer vi o oceano. Tudo o que escrevi até aqui refere situações disruptivas. Quando nascemos, penso, existe já a disrupção no ser que somos. Saídos do ventre materno, somos trabalhados e trabalhamos para curar essa disrupção, sentida como uma patologia. Com o passar dos anos, conseguimos ocultá-la e, a certa altura da vida, nasce em nós a convicção de que estamos curados. Pura ilusão. A pouco e pouco, ela começa a forçar o cerco que lhe montámos e as muralhas, sem se dar por isso, vão cedendo, abrem brechas, é o que se passa comigo, até que cairão, com um grande estrondo. As coisas são o que são e toda a sabedoria se resume a aceitar a verdade desta tautologia. O que não é fácil, diga-se.

sexta-feira, 26 de abril de 2024

Pessoa

Há pouco o céu estava negro, mas, depois de uns chuviscos, foi ficando cinzento. Cinzento, foi a cor desta sexta-feira. Ia para dizer segunda-feira, pois andei todo o dia a pensar que estava no início da semana, tendo de fazer algum esforço para não dizer coisas insensatas. Poder-se-á argumentar que escrevo por aqui muitas coisas insensatas. Logo, dizê-las não traz qualquer novidade. Seria um mau argumento, pois o facto de escrever coisas sem sentido aqui não implica que as diga publicamente. Aliás, poderei sempre dizer que utilizo este espaço narrativo para me purificar das coisas levianas que me ocorrem, e não são poucas. Este espaço está para mim como a tragédia, segundo Aristóteles, está para os gregos. É uma catarse da minha estarolice, a qual, catarse, me permite, na vida quotidiana no mundo real, disfarçar a irrazoabilidade que há dentro da minha pessoa. É verdade, eu também tenho uma pessoa. As pessoas pensam que são pessoas. Eu não sou uma pessoa. Eu tenho uma pessoa, como outros têm automóveis, acções em empresas, amores fatais. A minha fatalidade é ter de possuir a pessoa que sou. Tivesse eu comprado outra e tudo poderia correr melhor, ou pior, quem sabe? John Locke afirmava que uma pessoa é um ser consciente e reflexivo, dotado de memória e capaz de pensar por si mesmo. Já Kant define a pessoa como um ser autónomo e racional, capaz de agir segundo a lei moral. Apesar de terem perspectivas diferentes, tanto o inglês como o prussiano incorrem no mesmo erro. Ambos não percebem que pessoas é uma coisa que se compra – e se se compra, alguém a vende – e se usa ao longo da vida. Pode-se deixar em herança, mas até hoje não se conhece nenhum filho ou filha que reivindicasse essa herança. Como nenhum herdeiro quer a pessoa do pai ou da mãe, é o Estado que fica com ela em depósito. Passados anos – normalmente, várias décadas – o Estado privatiza as pessoas e elas entram de novo no mercado. A pessoa que eu tenho já pertenceu a outro ser humanos ou, melhor, a outros. E haverá de pertencer a mais, muitos mais, espero. Tudo isto porque a minha pessoa está convencida de que hoje é segunda-feira.

quinta-feira, 25 de abril de 2024

Um desvario

Imagino muitas vezes que a realidade é muito mais bela na escrita do que despejada dos artifícios da escrita. Por um desvario que ainda não entendi, ontem comprei um romance de Hermann Hesse. Tem por título Hans – Sob o Peso das Rodas. Na contracapa tem um excerto que diz O Outono estava a revelar-se mais belo do que nunca, pleno de tons suaves, amanheceres argênteos, meios-dias banhados de sol e cor e noites igualmente claras. Os montes ao longe adquiriam um profundo tom de veludo azul, os castanheiros refulgiam em tons amarelo-dourados e do cimo dos muros e cercas pendiam videiras de tons purpúreos. Este Outono escrito é, por certo, mais belo que um Outono real, talvez porque a escrita torna presente um todo que, na experiência dos sentidos, se dá de modo fragmentário. Não é que os fragmentos não possam ter beleza, claro que a têm, mas falta-lhes a completude. Não são epigramas, mas restos amputados de um texto que nunca se escreve. Falei em desvario por ter adquirido um romance de Hermann Hesse. E é verdade. Há décadas, li, com prazer, alguns romances desse autor alemão. Quando por volta dos trinta anos tentei voltar a eles, não o consegui, tinham alguma coisa de infantil. Ainda tentei mais uma vez ou outra, mas os resultados foram sempre os mesmos. Este de que falo nunca o tinha lido e trata-se do segundo romance do autor e, imaginei ao comprá-lo, ainda não estivesse contaminado pelo estilo e temáticas das suas obras de maior fama, que lhe terão valido o Nobel da literatura, além do Prémio Goethe. Veremos se a obra resiste ou se eu já estou numa fase regressiva da existência e volte a gostar daquilo que um dia gostei e depois deixei de gostar.

quarta-feira, 24 de abril de 2024

O grotesco

Recebi uma das minhas revistas preferidas, a Electra. O assunto da edição da Primavera de 2024 é o excesso. Há um artigo de Christian Salmon com o título O excesso e o grotesco: as novas formas de soberania política. Como estou proibido pelo autor deste blogue de falar acerca de política, fico por três citações. A primeira diz O grotesco parece ter tomado conta de tudo. A segunda acrescenta Onde quer que se tenha conseguido impor, a tirania dos bufões combina os poderes extravagantes do grotesco com o domínio metódico das redes sociais. A terceira sublinha Nunca os bufões, os palhaços e os bobos tiveram tanta influência na vida política. Deixo de lado a análise de Salmon e pergunto-me de onde terá vindo este grotesco. Não caiu do céu, não foi trazido por uma invasão de alienígenas, não surgiu do nada, pois do nada, não se sendo Deus, nada se tira. O grotesco estava aí, estava dentro de cada um de nós à espera de se poder manifestar. Somos habitados por pulsões dadas à hipérbole e à incongruência e quando os quadros da racionalidade se rompem, essas pulsões, à falta de um Apolo vigilante, vêm à luz do dia. As redes sociais permitiram a manifestação dessas pulsões, as quais se foram acumulando até se tornarem um rio caudaloso. Antes de os bufões, os palhaços e os bobos terem chegado à política, já o grotesco e o ridículo que nos habita chamava por eles, os quais, ao descobrirem o mercado, se lançaram na concorrência, certos de terem uma mercadoria para oferecer aos que foram abandonados pela tocha de Apolo e se acolhem sob o tirso de Diónisos.

terça-feira, 23 de abril de 2024

Simplicidade

Tive um dia cheio de complicações, pois elegemos a complexidade e esquecemos as coisas simples como um poema de Ryōkan: será que me fartaria dele / cem anos / passados / a contemplá-lo? / o orvalho sobre a eulália do meu jardim. Talvez o tradutor devesse ter escrito eulalia e não eulália. Cheguei a conhecer mulheres com o nome de Eulália, mas há muito que não encontro nenhuma assim chamada. Talvez volte ao uso, pois os nomes também têm épocas altas e baixas. A poesia de Ryōkan é feita de uma extrema simplicidade, talvez porque as nossas autênticas razões, e não aquelas que usamos para complicar a vida e o mundo, sejam simples: não é por não gostar do mundo / que vivo aqui / recolhido – / simplesmente / habituei-me a esta vida. Poderia dizer uma coisa semelhante: não é por não gostar do mundo / que não viajo / de terra em terra / apenas / habituei-me a estar onde estou. O hábito é o que torna as coisas simples e é por isso que se instigava – nos dias de hoje, não sei – a criar bons hábitos e a combater os maus. Ao dar uma vista de olhos pela imprensa descobri um grande tumulto em torno de uma exigência de uma escola lisboeta em relação à indumentária dos alunos. Parece que há alguns que a simplificam em demasia, pois confundem as salas de aulas com as praias da Costa ou da Linha. O erro é da escola, pois não encontrou a simplicidade suficiente que permitisse a esses alunos, e aos respectivos pais, perceberem que estarem sentados numa carteira numa sala de aula é diferente de estarem sentados na areia a olhar as águas do oceano. Esta diferença é complexa e há que, cartesianamente, a simplificar para que todos a possam compreender.

segunda-feira, 22 de abril de 2024

Da mudança

Presto sempre alguma atenção ao começo de um romance, às primeiras palavras. Diante de mim está um que começa assim: A minha família estava sempre a mudar de casa. Pelo menos, desde que me lembro. Esta família, por certo, é um símbolo dos tempos modernos, da incapacidade dos homens se enraizarem e permanecerem fiéis a um lugar, da sua necessidade contínua de mudança. Não se trata de uma revivescência do nomadismo, pois os nómadas – pelo menos certos nómadas – acabam por estar fixados a um certo percurso. É antes uma inclinação para a vagabundagem. Ir para aqui e para ali, não ter poiso certo. Esta paixão pelo movimento é a confissão de uma incapacidade, a incapacidade de se manter no seu lugar, de habitar o sítio a que se pertence, talvez porque tenhamos todos deixado de pertencer a um lugar ou porque temamos o horizonte que esse espaço nos oferece. Não sei, porém, como o romance se desenvolve, como é que Mario Benedetti, em A Borra de Café, tece a história daquele cuja família estava sempre a mudar de casa. Talvez daqui a dias o saiba, caso tenha tempo e o ânimo me incline para a leitura. Olho para a rua e vejo o calor. Aqui o calor não é coisa que apenas se sinta. Vê-se, ouve-se, saboreia-se, não sem uma careta, cheira-se. Com um horizonte destes, o meu sítio é-me adverso. Terei de mudar de casa?

domingo, 21 de abril de 2024

Falar com orquídeas

A minha neta mais nova tem estado por aqui o fim-de-semana, a contas com a Matemática e os humores algébricos da avó. Ela leva a ascese com alguma paciência, embora se confesse cansada de funções. Alegrou-a, porém, o estranho episódio de surpreender a avó a falar para uma orquídea que se tem mostrado renitente em abrir o caminho para a floração. O que terá pensado quando perguntou: mas a avó fala com as plantas? Eis um assunto delicado. Será que a minha avó, terá pensado, está a enlouquecer. A avó esclareceu que é um velho hábito e que as plantas não se dão mal com ele. E eu acrescentei que é muito mais interessante falar com orquídeas do que com muitas pessoas, pois as orquídeas nunca nos dão respostas idiotas, ao contrário das pessoas. Eu, acrescentei, também já tenho tentado falar com as orquídeas, mas devo estar surdo, pois nunca oiço o que dizem. Ela olhou-nos com ironia e comiseração e deve ter pensado que os avós deveriam estar à porta do hospício. Esclareci-a que há pessoas que falam com anjos que nunca viram ou santos que morreram há muito. Outros há que falam com cães e gatos, que apenas ladram ou miam. Há mesmo quem fale com pessoas que não merecem qualquer palavra. Que problema haverá em falar com orquídeas? E seja o que for que se lhe diga, assegurei, elas nunca contam a ninguém. São óptimas a guardar segredos. Talvez seja melhor passarmos às funções, disse ela, estupefacta.