Acabei de fazer uma viagem de 17 graus centígrados. Saí de um sítio com 41o e cheguei a outro com 24o. A crónica de hoje de António Guerreiro, no Público, gira em torno do fogo. O título é Brincar com o fogo. E o lead diz: A Terra foi vista como um reservatório de energias inesgotáveis. Continuámos a brincar com o fogo e agora o planeta arde. Até certa altura pensava-se que a hipótese de as coisas acabarem devido a uma guerra nuclear era grande. Depois, o medo atenuou-se, embora não se perceba bem a razão desse atenuar. O medo seguinte, mas também cada vez mais atenuado, é de que tudo acabe devido ao aquecimento global. Ora, nem um conflito nuclear está posto de lado, nem há qualquer acção efectiva que vise travar o aquecimento global. Tirando uns infelizes militantes que atiram tinta a quadros, a generalidade das pessoas não quer saber de aquecimentos globais. Nós, seres humanos, somos fascinados pelo fogo. Poucos são aqueles que não sentem prazer em ver as labaredas de uma fogueira, o que significa que no fundo da alma de cada ser humano há um pequeno pirómano. Nesta altura, esses pequenos pirómanos parecem estar a tomar conta de cada um de nós e, em vez de temermos o fim pelo fogo, desejamo-lo cada vez mais e com mais intensidade. O ideal seria a combinação da revolta da natureza através do fogo e uma guerra nuclear. Enfim, hoje acordei com uma leve dor de cabeça e uma inclinação para a hipérbole. O planeta arde, mas isso não assusta a nossa alma de pirómanos. Pelo contrário, é como se estivéssemos numa noite fria de Inverno diante da lareira para contemplarmos as labaredas que dançam na lenha que arde. O prazer do fogo.
sexta-feira, 16 de agosto de 2024
quinta-feira, 15 de agosto de 2024
Moda
Robert Musil, o escritor de O Homem Sem Qualidades, acreditava que a fealdade não impede a moda de surgir. Escreveu isto num ensaio de 1931, “A Moda”. A certa altura, com o pretexto de exemplificar essa fealdade, escrevia e as saias curtas de mulher igualmente usadas até há pouco representavam, para uma observação imparcial, a repartição mais desfavorável da figura feminina que imaginar se possa, uma vez que se gerava um rectângulo elevado assente em duas pequenas andas curtas. Saliente-se que por saia curta o autor considerava a saia pelos joelhos. Como pôde ele ler a parte visível das pernas das mulheres como duas andas curtas? A apreciação estética que faz é fruto de um hábito e de preconceitos sobre o que se deve vestir e o que se deve mostrar – ou ocultar – no corpo da mulher. Ninguém da minha geração pensaria as pernas desocultadas de uma mulher como um dispositivo artificial tipo andas. Quando Musil escreve que a fealdade não impede a moda de surgir, talvez devêssemos compreender as coisas de uma outra maneira. Toda a moda se funda numa manifestação da beleza. Aqueles que a pensam como feia apenas não conseguem perceber o que de belo nela se manifesta. A moda estaria, deste modo, ligada à transmutação dos valores estéticos e, por isso, ela é sempre reservada a uma pequena vanguarda. Isto permite ir mais longe na especulação. Aquilo que é belo não apenas é difícil, como pensava Platão, mas tem em si um princípio de inquietação que conduz a contínuas metamorfoses, as quais são apreendidas, por instantes, pela moda, para logo se transformarem, esperando que a moda as capte numa nova imagem do que é belo.
quarta-feira, 14 de agosto de 2024
Derrelicção
terça-feira, 13 de agosto de 2024
Um gigante e uma vaca
segunda-feira, 12 de agosto de 2024
Beleza
Há títulos de livros extraordinários. Por exemplo, The Fragility of Goodness, de Martha C. Nussbaum. Contudo, a tradução para português deixa de funcionar. A Fragilidade da Bondade perde o impacto sonoro devido à repetição das duas sílabas finais de fragilidade e de bondade. Um expediente seria traduzir por A Fragilidade do Bem, mas não seria a mesma coisa. Aliás, a tradução existente em português, na variante brasileira, faz a tradução literal. Martha C. Nussbaum não é apenas uma muito interessante e talentosa filósofa, mas é uma criadora de títulos excepcional. Além do citado, vejam-se os seguintes: Cultivating Humanity; Political Emotions; Frontiers of Justice; Upheavals of Thought; Not for Profit; The Cosmopolitian Tradition. Poder-se-á pensar que a natureza retórica destes títulos é uma estratégia comercial. Imagino que a autora se ofenderia. A qualidade linguística estará ligada, de alguma forma, à qualidade do pensamento. Os primeiros textos filosóficos completos que nos chegaram são os diálogos platónicos. Aquilo que que foi escrito antes, e foi alguma coisa, perdeu-se ou permaneceu em forma fragmentária. É possível pensar que esses textos pré-socráticos, é assim que se chamam, teriam qualidade poética e retórica. Os textos de Platão, os diálogos filosóficos, nasceram de uma ruptura dentro do próprio filósofo. Este era um jovem escritor de tragédias, mas fascinado pela figura de Sócrates, de quem queria ser discípulo, aceitou a imposição deste e destruiu as tragédias que tinha escrito. Contudo, não se conseguiu livrar completamente de si mesmo e passou do teatro trágico ao teatro filosófico, onde encenou as aventuras da própria razão. Para tornar as coisas mais interessantes, não são poucos os diálogos onde, ao lado de uma exploração racional de um problema, Platão constrói ou usa mitos. Poder-se-á pensar, e haverá quem o pense, que esses mitos, tal como os belos títulos da contemporânea Martha C. Nussbaum, têm um efeito retórico, quase de natureza comercial. Imagino que Platão ficaria ofendido. A beleza do título ou o encanto dos mitos fazem parte da verdade, que recusa revelar-se caso não haja um módico de beleza. Dessa beleza que a arte do século XX e XXI expulsou de si mesma, numa confissão de que se tinha divorciado da verdade, mas que, apesar do desígnio de muitos artistas, essa beleza acaba por voltar, contra a vontade dos próprios.
domingo, 11 de agosto de 2024
Pensamentos sem sentido
Hoje, fui à praia, mais uma vez. Dizer que fui à praia é uma hipérbole, pois fui ao bar da praia, onde me sentei a beber um café e a comer um pastel de nata, enquanto olhava o mar. Não passei, claro, do bar, mas prometi que voltaria à praia, isto é, ao bar. Não sei bem porquê, aquele bar, que até hoje me era indiferente, passou a ter um valor para mim. Que valor? Não faço ideia, mas apetece-me lá voltar amanhã e no outro dia. Este apetite de voltar a um sítio é a melhor prova de que esse sítio merece a visita. Apesar do meu contencioso com a praia, o mar sempre me fascinou. Não, não é tanto o mar que me fascina, mas a visão do mar. Olho para o mar e sinto uma vertigem – isto é uma metáfora. Essa vertigem quer dizer que estou perante algo que me ultrapassa infinitamente. Sinto-a, ou sentia-a, quando olhava o céu estrelado. O mar e o céu estrelado são símbolos daquilo que me ultrapassa infinitamente, daquilo que me é incomensurável. Há muitas décadas, nas noites estivais de céu estrelado, procurava um sítio onde a poluição luminosa não me incomodasse e ficava a contemplar as estrelas. Tentava suspender o pensamento, mas este resistia e trazia-me sempre as mesmas questões: Para quê tudo isto? Porquê tudo isto? Depois, fui estudar filosofia, mas acho que não adiantei nada. As questões permanecem, mas já não me entrego à contemplação dos céus nas noites estreladas. Tudo isto é inexplicável. O oceano, o céu estrelado, a minha perplexidade perante ambos. Oiço passos, é uma das minhas netas. Não sei se elas sentem uma vertigem perante o mar ou o céu estrelado. E o meu neto, ainda nos cinco anos, algum dia olhará o mar ou o céu estrelado e perguntará para quê e porquê tudo isto? Se nenhum deles o fizer, o que andei eu a fazer neste mundo?
sábado, 10 de agosto de 2024
Obrigações
Tive de ir à praia. Função de avô. Em tempos, que me parecem muito recuados, tinha prazer nesse ritual da ida à praia. Depois, foi desaparecendo. Nem ritual, nem areia, nem sol, nem água do mar salgado. Uma esplanada com vista para o mar ainda é uma coisa que me dá prazer, pois contemplar a linha do horizonte, onde o oceano e o céu se fundem na ilusão do olhar, abre o espírito à rêverie, a esse sonho acordado onde os mistérios do universo se fundem com os segredos ultramarinos. Devo estar a tornar-me uma pessoa insuportável, se não o era já. Não cultivo nem a praia e os banhos de sol e mar nem a viagem, turística ou outra. Estar onde se está e viajar na sua própria morada é a mais difícil e desafiante das viagens. Voltou-me o gosto pelas hipérboles. De tarde, consegui escapar-me à função da ida à praia, com a desculpa esfarrapada de ter de ir fazer compras, coisas que só eu sei o que são, embora não imagine o quê. É certo que fui olhado com condescendência, mas é coisa que suporto bem. Sobre este narrador, há duas teorias. Uma é que sofre de autismo. Outra é que falhou a vocação de monge eremita. Por mim, aceito qualquer uma. Talvez as duas sejam verdadeiras. Tenho de ir às compras. Um dia cheio de obrigações.
sexta-feira, 9 de agosto de 2024
Mudos e surdos
quinta-feira, 8 de agosto de 2024
O perigo do ócio
quarta-feira, 7 de agosto de 2024
Um deus caprichoso
Por aqui, o tempo é particularmente volúvel. Altera-se segundo apetites de um deus desconhecido. Se observarmos de perto os deuses gregos e latinos, percebemos, de imediato, que são caprichosos e, também nisso, imitam os homens. Teve de vir de outro lado a ideia de um Deus único, e nessa unicidade esvaiu-se o capricho, a volubilidade, mas também a forma humana. Nesse esvair-se de tudo o que era humano, os seus desígnios tornaram-se insondáveis. O que será mais terrível para o animal humano, esse animal que sabe que vai morrer e tem a capacidade de pensar na imortalidade, a volubilidade dos deuses ou a insondabilidade de Deus? Imagino que tenha sido este dilema que levou Nietzsche, cuja formação não era filosofia, a anunciar que Deus está morto. Eis um modo fácil de se livrar de um dilema. Fácil e rendoso, pois os europeus adoptaram como verdadeira a proclamação daquele que, após algumas obras tonitruantes, enlouqueceu, entrando assim pela morte dentro. A morte de Deus trouxe, porém, um novo politeísmo, tão volúvel quanto o antigo. Os novos deuses são também caprichosos, mas não sabemos quem são. Eu não sei qual é aquele que aqui rege o clima, mas tem uma notável inclinação para a súbita variabilidade.
terça-feira, 6 de agosto de 2024
Um país estrangeiro
Abro um daqueles livros de autores portugueses quase desconhecidos que vou comprando em alfarrabistas. Não para os ler, alguns nem tentarei. Procuro, por vezes, alguma voz desconhecida que se manifeste nas páginas do livro, uma voz que não seja a do autor. Hoje, ao desfolhar, no original, um romance de 1911, de Virgínia de Castro e Almeida, deparei-me com inúmeras anotações a lápis. O romance denomina-se Fé. O anotador ou anotadora do livro, a certa altura, indigna-se: Saúde por salut é um galicismo intolerável. A auctora deixou-se arrastar pela saude [foi assim que a autora grafou a palavra] e fraternidade da Republica. Noutro ponto, perante uma visão imanente e não transcendente do divino, anota: Isto é o velho e sediço pantheismo. Quando uma personagem proclama que Todo o bom catholico deve combater pelo triumpho da sua Egreja!, anota-se: Tambem me parece. Na página 220, surge um extraordinário comentário: Esta scena de amor entre os dois veladores do cadaver do pobre Baby é repelente. Bernardo manifesta-se o (ilegível) sem escrupulos que quer roubar a mulher ao marido e aos filhos para se satisfazer, sem respeitar a camara mortuaria de um anjinho. Gabriella é uma qualquer (ilegível) ridícula do sentimento, a resvalar para cabra. A auctora que compara um beijo lascivo a uma primeira comunhão, ou nunca beijou, ou nunca comungou. Perante a afirmação que considera o cristianismo a religião de inercia ensinando a resignação e a atonia, empurrando a humanidade para o aniquilamento, a reacção é peremptória: Isto tudo já é velho e muito batido e já foi tudo rebatido. Tudo isto é palha, não presta para nada. D’aqui a pouco surge o super homem de Nietzsche. A partir deste ponto, nas últimas cem páginas, não há qualquer anotação, talvez o super-homem não tenha surgido. Apenas, abaixo da data Julho de 1911, que assinala o fim da escrita do romance, surge uma outra anotada a lápis: 13-12-1911. Na capa do livro, porém, encontra-se a sentença final, ainda a lápis: Não presta. Talvez existissem poucos leitores em 1911, o que não será completamente verdade, mas não os podemos acusar de serem passivos. Recorra-se à frase batida de L. P. Hartley: O passado é um país estrangeiro: lá, as coisas são feitas de maneira diferente.
segunda-feira, 5 de agosto de 2024
Narradores cruéis
Sou um narrador pacífico e incapaz de uma narrativa que me eleve. Por vezes, cultivo o riso sobre mim próprio, mas talvez isso seja um truque para esconder a minha impotência narrativa. Há narradores cruéis. Usam as palavras como estiletes. Por exemplo, aquele que narra Os criados estão contratados sob os auspícios da segurança social e perderam muitas das suas fraquezas que Swift tão bem descreveu. São funcionários e não lacaios queixosos e cheios de manhas. Raramente são vistos senão à hora das refeições e ninguém pode dizer que é possível pedir os seus favores nas horas tuteladas pelo sindicato hoteleiro ou coisa assim. Mas têm o mesmo olhar vingativo e sonolento que avalia melhor o hóspede do que um despachante da alfândega faria. Onde está a crueldade? Na anulação do valor do trânsito do mundo que levou certas pessoas de lacaios queixosos e cheios de manhas ao estatuto de funcionário, protegido pela segurança social e pelo sindicato hoteleiro. De que vale ter mudado de estatuto, de deixar de ser lacaio e passar a ser funcionário, se se tem o mesmo olhar vingativo e sonolento? Este é um narrador cruel. Quando o Conde, uma das três personagens que animam os entretiens das Soirées de Saint-Pétersbourg, fala dessa figura tenebrosa do Carrasco, procura nela a grandeza própria, apesar da distância que todos os homens, perante ela, sentem dever manter. Quem leu a autora, percebe de imediato que este narrador cruel só poderia ter sido criado por Agustina Bessa-Luís. Talvez o narrador de Agustina lamente o fim dos lacaios e a magnífica escrita da autora sirva apenas como um requiem de um mundo que acabou, como acabou uma certa casa de família transformada em hotel privado, isto é, em turismo de habitação. Os mundos perdem-se no tempo e não há narrativa que os salve.
domingo, 4 de agosto de 2024
Do reino e do império
Se se ouvir o título A Monarquia do Medo pensa-se de imediato numa série da Netflix, talvez ligada ao tráfico de droga e ao ajuste de contas entre cartéis ou entre a polícia e os traficantes. Contudo, é um belíssimo título de um livro de filosofia, de Martha C. Nussbaum. O título, na verdade, é The Monarchy of Fear – A Philosopher Looks at Our Political Crisis. O livro trata de um assunto que me está vedado, pois eu sou um narrador sem opinião, coisa imposta por um autor despótico. Em vez de A Monarquia do Medo, caso me tivessem perguntado, proporia O Império do Medo. Teria outra ressonância. Numa monarquia do medo, o medo reino sobre os súbditos, mas nem todos os reinos são reinos do medo. Podem ser reinos constitucionais. Num império do medo, aquilo que se escuta é o domínio absoluto do medo sobre aqueles que lhe estão sujeitos. Num império há sempre qualquer coisa de obsessivo, como o cineasta japonês Nagisa Oshima mostrou em Império dos Sentidos, embora seja em Império da Paixão que Oshima torna mais clara a ligação entre império e medo, onde o medo se torna senhor daqueles que lhe vão ficando sujeitos.
sábado, 3 de agosto de 2024
Histórias
O livro foi impresso em 1971, na Sociedade Astória, Ldª, de Lisboa. No talão, que o livreiro devia ter devolvido ao editor, mas que não o fez, constava o preço de 65$00. Contudo, rabiscado a lápis, no canto superior direito da primeira página, estava uma outra informação, que reproduzo: 65/81#50. Imagino que o livreiro terá, com o passar do tempo, adequado o valor de venda do livro. Quando e onde o livro foi vendido não sei. Há, contudo, uma informação na quinta página que mostra que o livro mudou de dono em 1975. Escrita a esferográfica preta está a seguinte informação: Moçâmedes e, debaixo da localidade, a data 4/11/75. Abaixo desta informação encontram-se dois traços grossos feitos a marcador preto que ocultam um nome, imagino que do proprietário original. Uma história possível é que o livro tenha sido comprado em Portugal e o proprietário o tenha levado para Angola, onde o terá cedido a um novo proprietário no dia 4 de Novembro de 1975. Este voltou a Portugal e trouxe com ele o livro. Os herdeiros venderam-no a um alfarrabista, onde o comprei. Contudo, a história pode ser outra. O livro foi vendido em Moçâmedes por 81$50. O proprietário trouxe-o para Portugal e quando ele ou os herdeiros decidiram vendê-lo a um alfarrabista ocultaram o nome, mas deixaram à vista o local e a data de compra. O livro é uma obra de Alejo Carpentier, com o título de O Século das Luzes. Foi traduzido por Alfredo Margarido para as Publicações Europa-América. Serão poucos os que hoje sabem o que foram as Publicações Europa-América e ainda menos quem foi Alfredo Margarido, um intelectual influente naquele tempo. A obra original foi publicada em 1962, o que significa que demorou nove anos a chegar a Portugal. Naquele tempo, tudo era mais vagaroso.
sexta-feira, 2 de agosto de 2024
Apetrechadas de asas
No canto XI, da Odisseia, Homero escreveu: Reconheceu-me a alma de Aquiles de pés velozes, neto de Éaco, / e chorando dirigiu-me palavras apetrechadas de asas. O segundo verso mostra a amargura de Ulisses com a sua sorte. Chora, mas mesmo assim as suas palavras são apetrechadas de asas. Elas não apenas voam, como são elevadas. As palavras voam de uma boca que as proferes para uns ouvidos que as escutam, mas a dimensão volátil talvez seja a menos importante na expressão metafórica usada, pois isso é o que acontece em qualquer situação de comunicação linguística. Ora o que distingue as grandes palavras das pequenas, é a capacidade de umas se elevarem, enquanto as outras voam baixo, um voo raso, perto do chão. Há nos gregos um culto desmedido das grandes palavras, dos discursos elevados, dessa capacidade de as palavras se elevarem, ao sair da boca de quem as profere, e dizerem um mundo que só do alto se observa: Filho de Laertes, criado por Zeus, Odisseu de mil ardis, / homem duro! Que coisa ainda maior irás congeminar? / Como ousaste descer até ao Hades, onde moram os mortos /sem entendimento, fantasmas de mortais estafados? A citação parece contrariar esta ideia de as palavras se elevarem. Ora, Aquiles fala dos mortos que não possuem entendimento, fantasmas de mortais estafados. Ao fazê-lo, ele que está morto e habita o Hades, exceptua-se dessa condição e pelas suas palavras mostra possuir entendimento. São as suas palavras que, ao elevarem-se, o raptam da condição da mortalidade dos homens comuns. Não é a velocidade dos seus pés ou a coragem no campo de batalha que o elevam, são as palavras que, ao erguerem-se e voarem para Ulisses, o erguem acima da condição mortal de todos os mortos.
quinta-feira, 1 de agosto de 2024
Aleijados
quarta-feira, 31 de julho de 2024
Preocupação
Estou quase preocupado comigo. Imagino que seja um efeito estival, mas dei por mim a comprar livros de ficção científica. Isaac Azimov, Robert Heinlein, Philip Dick, Ursula Le Guin, Frank Herbert, Ray Bradbury. O ano passado, por esta altura, comprei e li uma série de aventuras de Arsène Lupin, da autoria de Maurice Leblanc. Passado o tempo quente, e ainda durante ele, voltei à literatura não adjectivada e a outras leituras mais sérias. A minha preocupação centra-se na interpretação destas inclinações. Será que estou a regredir e não tardará estarei a ler a Enid Blyton? Depois, serão as aventuras, em banda desenhada, de Texas Jack e do Major Alvega, para descer, de seguida, às adaptações infantis das aventuras do Pinóquio? É evidente que, para me proteger de mim mesmo, tenho na secretária, bem à minha vista, a Teoría de la Constitución, de Carl Schmitt, e os Discursos à Nação Alemã, de Johann Gottlieb Fichte. Mais de um século separam estas obras, mas não será inútil para compreender muito do que se passa neste mundo – e talvez fora dele, quem sabe – dar alguma atenção aos autores e a estas obras, em particular. Se, por vezes, a coisa se mostrar um pouco árida, abre-se um romance de ficção científica, deixa-se este mundo, e entra-se noutros mundos possíveis, piores do que este, por certo, mas que nos aliviam do peso que este tem em si.
terça-feira, 30 de julho de 2024
Uma doença nos olhos
Uma senhora milanesa escrevia – por certo, desesperada – a 28 de Setembro de 1938, numa carta a Benito Mussolini, o seguinte: É impossível que uma mente divina, sobrenatural, como a vossa não consiga encontrar uma solução pacífica para o desentendimento. A segunda grande guerra estava à porta e a aflição explica a hipérbole na consideração da mente do Duce. Há, ainda uma outra coisa. A pobre senhora não percebia que quando alguém, num lugar de poder, julga que possui uma mente divina, sobrenatural, então os homens podem esperar o pior. E o pior é a guerra. O homem comum que reconhece as suas limitações, quando está no poder é prudente. Contudo, outro homem comum, mas sem sentido das suas limitações, perde a prudência e alimentado pela húbris arrasta os outros para o inferno. São inúmeras as cartas de mulheres que, naquele Setembro de 1938, incensando o ditador italiano, pedem com ardor maternal que ele salve o país da guerra. Elas não percebiam que estavam a pedir ao diabo para acabar com o inferno. Isso acontece não poucas vezes na vida dos homens e não apenas em assuntos ligados ao poder. Quantas vezes as vítimas vêem no algoz um salvador? Que doença distorcerá o olhar dos seres humanos para que tão mal saibam julgar aquilo com que lidam? E isto não é uma questão de educação, de acréscimo no ciclo de estudos ou de colecção de diplomas. Talvez seja um problema de oftalmologia, uma doença nos olhos. À falta de melhor, esta parece uma boa explicação.
segunda-feira, 29 de julho de 2024
Contra a realidade
Está uma segunda-feira de sonolência, tecida no nublado dos céus e no calor que teima em descer sobre a Terra, sem que o vento decida intervir para restabelecer a temperatura. O ideal seria uma tempestade. Chuva abundante, raios e coriscos, mas a realidade nunca está pelos ajustes e as excepcionais ideias que me ocorrem são desperdiçadas, sem sequer existir uma explicação. Por isto se percebe que a realidade não pertence a um tempo em que o espírito crítico reina. Está, essa realidade, em desacordo com as minhas ideias? Muito bem, mas tem a obrigação de dizer as razões desse desacordo. A realidade tem uma índole inclinada para o absolutismo. Ignora essa coisa de dar explicações, como se fosse uma rainha absoluta, que aliasse a uma beleza imaculada a frieza do mais insensível dos entes que povoam este universo. Faz o que quer porque pode e o poder é a única explicação para as suas decisões. Muito bem andaria essa realidade que se nega, sem explicação, em realizar as minhas mais elevadas cogitações em ler o que o senhor Immanuel Kant escreveu, no ano de 1781, no prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura: A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame. Assim como a religião e a legislação, também a realidade não quer submeter-se ao livre e público exame das razões que a assistem quando nega as minhas pretensões e ignora as ideias brilhantes que me ocorrem para salvação do mundo. Não apenas a realidade suscita justificadas suspeitas, como cria a certeza de que não está interessada na salvação do mundo. Agora, dito o que disse, posso continuar a minha sesta, neste dia sonolento, sem tempestades, nem raios e coriscos. Bocejo, é o que a realidade me permite, ela que se recusa a ler Kant, sabe-se lá a razão.
domingo, 28 de julho de 2024
Confiar
Nunca tinha lido e comecei ontem a ler o meu conterrâneo Claudio Magris, disse-me hoje, ao telemóvel, o padre Lodo. É brilhante, ouvi. Concordei de boa vontade. Logo no começo de Danúbio, perante a possibilidade de uma exposição sobre A arquitectura da viagem: história e utopia dos hotéis, ele – referia-se a Magris – escreve O projecto junto – redigido por professores das universidades de Tübingen e de Pádua, articulado segundo uma rigorosa lógica e acompanhado de bibliografia – quer levar à ordem inexorável do tratado a imprevisibilidade da viagem, a confusão e a dispersão dos caminhos, o acaso das paragens, a incerteza das noites, a assimetria de todos os trajecto. Isto é notável, exclamou o padre, pois fala da essência da vida. Não o sabia um essencialista, comentei. Devia, pelo menos, ter desconfiado, respondeu-me. Seja como for, continuou, e Magris nota-o de seguida, a existência é uma viagem, uma peregrinação. Sim, disse eu, uma peregrinatio ad loca infecta. Continua a desconfiar da bondade divina, devolveu-me. Não tanto da vontade divina, mas da qualidade dos materiais do mundo, a começar pelos humanos. Esse cepticismo não lhe faz bem, avisou-me. O cepticismo, caso não seja doentiamente pirrónico, é um modo de estar alerta. Há que desconfiar. Pois, respondeu-me o meu amigo, está enganado. Há que confiar. A confiança é fundamental. Voltei à citação de Magris e chamei-lhe a atenção de que o comentário do autor reflecte uma desconfiança estrutural no projecto académico, desconfia da redução do borbulhar existencial à arquitectura de um tratado ou mesmo à ponderada organização de uma exposição. É verdade, mas ele fá-lo porque confia mais no borbulhar da existência. Talvez tenha a esperança, acrescentei eu, que Leibniz tivesse razão ao afirmar que este é o melhor dos mundos possíveis. O padre riu e acrescentou que em breve estará por aqui, onde me encontro, e que no melhor dos mundos possíveis está aquela brasserie junto ao mar, uma das melhores mesas deste país. Para que dia marco o jantar, perguntei.