domingo, 8 de setembro de 2024

Algoritmos inadequados

Logo de manhã irritei-me com a balança. Não gostei do peso que me devolveu quando a pisei. Talvez a tenha insultado, já não me recordo. Consultei os registos e descobri que, afinal, o caso não era para tanto. Um aumento de trezentos gramas, nem chega a ser um verdadeiro aumento. Talvez lhe tenha pedido desculpa, mas também não tenho a certeza. Concluí mesmo que, afinal, as férias nem foram devastadoras. Para celebrar essa não devastação ofereci-me uns livros. Um deles foi um romance da escritora austríaca Marlen Haushofer, A Parede. São 292 páginas de texto, com a particularidade de não terem cortes. Não há capítulos, pontos ou qualquer outra estratégia que permita ao leitor descansar. Na contracapa, encontra-se uma bela citação do romance: Por vezes, é como se a floresta começasse a ganhar raízes dentro de mim e usasse o meu cérebro para conceber as suas ideias ancestrais e eternas. Uma chamada. Um amigo do outro lado. Conversamos um pouco até que ele me diz que um outro amigo, fomos todos colegas de faculdade, está com pouco mais de cinquenta quilos, o que tendo em conta a altura dele é muito preocupante. Qualquer coisa nos pulmões se desarranjou e começou a multiplicar-se, segundo um algoritmo inadequado à condição humana. Haverá alguma esperança, oiço. Espero que sim. Começo a ficar cercado por pessoas em que qualquer coisa se desarranja e se multiplica segundo algoritmos inumanos. Não vale a pena uma pessoa irritar-se com a balança.

sábado, 7 de setembro de 2024

Fantasias

Nos últimos tempos tenho dedicado algum tempo a ouvir, mais do que a ver, uns vídeos produzidos por nostálgicos de l’Ancien Régime. Sonham com a sociedade estratificada que começou a colapsar em 1789 e cujo estertor continuou até à primeira Grande Guerra. Vociferam – por vezes, com argumentação esteticamente interessante – contra o igualitarismo, o progressismo e todas as maleitas que o Iluminismo e a Revolução francesa terão trazido ao mundo, que seria, antes disso, um paraíso. O mais curioso é que muitos destes pacientes da nostalgia pelo Ancien Régime, caso vivessem sob ele, não teriam sequer direito à palavra, quanto mais à nostalgia. São plebeus que se sonham os aristocratas que nunca seriam, são os homens livres que, no mundo que sonham, nunca seriam. Fantasiam com elites a que imaginam pertencer, caso o mundo fosse outro e não o que é, embora estejam num mundo que, devido ao tenebroso igualitarismo que zurzem, os não impede de fazer alguma coisa para aceder a um qualquer género de elite. Este tipo de pensamento esconde duas coisas. Por um lado, esconde – melhor, disfarça e mal – uma vontade de poder enorme, de um poder que eles justificariam pela vontade divina. Por outro, oculta uma real impotência em lidar com as coisas tal como surgem na vida. Num mundo em que existe uma coisa como a Inteligência Artificial, num mundo em que a espécie humana adquiriu o poder de se reconfigurar através da intervenção técnica, sonhar com as categoriais sociais e mentais do Ancien Régime não será diferente de um adulto sonhar em retornar à vida feliz da infância, caso a tenha tido, ou imagine que a tenha tido. Há mesmo quem tenha extraordinários programas de resistência, como, por exemplo, escolarizar os filhos em casa, para que eles não sejam contaminados pelo tempo que lhes foi dado viver.

sexta-feira, 6 de setembro de 2024

Imbecilidades

A semana, a primeira deste Setembro, está a acabar. Hoje termina a semana útil e amanhã termina a inútil. O mais curioso é que todas as semanas começam com um dia de descanso, para terminarem num dia igualmente de descanso. Há nisto uma mensagem subliminar. A utilidade dos dias úteis está envolta pela inutilidade do primeiro dia, o domingo, e a inutilidade do último dia, o sétimo ou o sábado. A mensagem é que toda a utilidade é inútil, embora tenhamos a sensação estranha de que toda a inutilidade, nos nossos dias, foi capturada pelo útil. Enquanto escrevo estas coisas sem nexo oiço um grupo musical a ensaiar. Não consigo perceber se os ensaiadores estão na escola aqui ao lado ou se, mais longe, na praça central da cidade. Seja onde for, não preparam nada que torne a existência – refiro-me à minha, a dos outros é corveia que lhes compete – mais agradável. Entretanto, o ensaio parou, mas isso está longe de ser uma notícia tranquilizadora. A falta de assunto para o dia de hoje está directamente ligada ao estado catatónico em que me encontro. Há pouco li que, segundo a abalizada opinião de uma comentadora televisiva, há pessoas, e ela conhece-as, que ficaram imbecis desde que o Facebook começou. A sua actividade, dessas pessoas que ficaram imbecis, é de postar fantasias sobre elas próprias. Ora, também este narrador posta fantasias sobre si próprio – um si próprio que também é uma fantasia – e não o faz no Facebook. Isto significa que se pode ser imbecil em muitos lugares. Contudo, há uma coisa em que a comentadora está equivocada. As pessoas não ficaram imbecis. Já o eram, mas não tinham espaço público para o mostrar. Falo a partir da experiência pessoal. Não foi a escrever estas coisas que por aqui escrevo que fiquei imbecil. Já o era. Agora, posso tornar isso público ou semipúblico, pois sempre sou um imbecil anónimo, embora não frequente, mas talvez devesse, as reuniões dos imbecis anónimos, pois nunca se sabe quem lá se pode encontrar.

quinta-feira, 5 de setembro de 2024

Angústia, decepção e tormento

No capítulo 28, se é que se podem chamar capítulos aos pontos em que a obra se divide, de O passo da floresta, Ernst Jünger escreve: É angustiante o modo como os conceitos e as coisas mudam o seu aspecto muitas vezes de um dia para o outro, produzindo consequências diferentes das esperadas. O referente do excerto é completamente indeterminado. Que conceitos e que coisas? A frase seguinte dá uma pista: Esse é um sinal da anarquia. A pista pode ser, para muitos leitores, decepcionante. Afinal, está-se no campo da política, onde estamos solidamente habituados a que as coisas e os conceitos mudem de um dia para o outro e que as consequências sejam as mais inesperadas. Aliás, o campo da política é o território da mobilidade. A frase de Jünger, fora do seu contexto, é bastante promissora. Imaginemos que as coisas, as mais triviais, mudam de um momento para o outro. Por exemplo, o copo que tenho à minha frente e que vou deixar na secretária. Amanhã, ao sentar-me a essa mesma secretária, o copo é uma careira onde se transporta a colecção de cartões com que um homem moderno deve andar acompanhado. Seria uma coisa muito mais exaltante do que as mudanças nas instituições políticas. Não menos entusiasmante seria a anarquia conceptual. Por exemplo, o conceito de círculo – não, não me estou a referir à palavra círculo, mas à representação geral e abstracta – deixar de representar uma porção de plano limitado por uma circunferência e passar a representar, num dia, a medida do afastamento de duas semi-rectas que têm a origem num mesmo ponto – o vulgar, ângulo – e, num outro, representar um ser vivo microscópico, procariota, desprovido de sistemas de membranas internas, a que agora damos o nome de bactéria. Ora, se Jünger, um autor de que gosto, se sente angustiado pela alteração das coisas e dos conceitos ligados ao mundo da pólis, o que se sentiria ele se essas mudanças se dessem nos outros domínios da realidade, por norma mais conservadores e com uma forte inclinação para a estabilidade. Viveria um tormento, imagino. Tormentosa também é a leitura do livro. A tradução portuguesa tem 101 páginas, mas as letras são tão pequenas que cada passo dado na floresta é extremamente cansativo.

quarta-feira, 4 de setembro de 2024

Flatus vocis

Não é raro deparar-me com coisas escritas por mim há uns anos e ficar perplexo não por aquilo estar escrito, mas por aquilo que fui e que me levou a escrever o que escrevi. Temos uma inclinação para a identidade, isto é, para nos pensarmos como sendo os mesmos numa linha contínua no tempo. A memória socorre-nos na presunção dessa identidade. Ora, muitas das coisas que se escrevem não cabem no grande armazém da memória. Se as encontrássemos num sítio que não reconhecemos como nosso, não as identificaríamos como tendo a nossa autoria. Eu sou aquilo de que me lembro, mas há muita coisa que, apesar de ter sido, não cabe na montra da identidade. Posso dizer com propriedade eu não fui aquilo. Uma identidade fundada na memória é uma coisa frágil. Ora, em que outra coisa podemos fundar a nossa identidade a não ser na memória? Imagino que a identidade seja um flatus vocis, um termo que tem som, tem sentido, mas que não se refere a nada, e talvez isso seja o melhor que nos possa ter acontecido.

terça-feira, 3 de setembro de 2024

Influenciar e dominar

Pega-se num livro e olha-se para a capa. Suja-a a declaração O Bestseller Internacional Traduzido em Mais de 20 Idiomas. Para a coisa não ficar por aí, chapa-se A Arte de Influenciar Pessoas e Dominar Multidões. O livro em causa foi publicado em 1895 e foi discutido em meios académicos. Ser traduzido em mais de 20 idiomas não é nada de excepcional e o objectivo do livro não é ensinar qualquer arte, e muito menos a de influenciar pessoas e dominar multidões. É um estudo que pretende perceber determinado fenómeno, que foi discutido e criticado, como acontece a qualquer estudo académico. Que o tratemos assim é prova de que o provincianismo continua a fazer parte da ambiência mental dos portugueses. Parte da ideia de que haverá compradores para a obra não pela sua qualidade científica, mas porque esses compradores estão desejosos de influenciar pessoas e de dominar multidões. Tudo isto é, além de infantil, muito cansativo. Vou fazer uma caminhada para desintoxicar.

segunda-feira, 2 de setembro de 2024

A pesada carga

A história dos europeus é, por vezes, assombrada pela luz que chega da antiga Grécia. Esta assombração, porém, não provoca o terror, mas uma nostalgia que parece inultrapassável, como se a velha Hélade fosse, para nós homens de uma era sombria, uma idade de ouro, a nossa autêntica idade de ouro. Acontece que a nostalgia pode tornar-se pesada, muito pesada, e que, de forças enfraquecidas, não suportemos o peso sobre os ombros. Talvez por isso, nos estejamos a afastar desse modelo, sentido como tirânico. A sensação que se tem é que estamos apostados em cortar o fio de Ariadne que nos permite retornar à luz e à vida, para nos perdermos no labirinto que, como Dédalos inconscientes, construímos. Esta sensação pode ser apenas o resultado de este ser um narrador envelhecido, que já não descortina a luz do mundo. Isso seria o melhor que poderia acontecer, mas duvido. Os sinais desse esquecimento da idade do ouro, dessa conjugação de arte, pensamento e política, são tão evidentes que parecem corroborar que alijámos dos ombros a pesada carga que a perfeição grega sobre nós fazia cair.

domingo, 1 de setembro de 2024

Realidade e repetição

O último dia de férias. Amanhã, retorno à realidade, com a sua procissão de coisas inúteis. Para dizer a verdade, só retorno porque decidi fazê-lo. Um acto do meu livre-arbítrio. Sempre se poderá argumentar que esse acto livre não passa de uma ilusão. Eu estou determinado a realizá-lo por um conjunto de causas que desconheço, e é essa ignorância que me oferece a doce ilusão de que aquilo que faço depende da minha escolha. Isso foi pensado por um judeu de origem portuguesa, Baruch Espinosa. Por interessante que o pensamento de Espinosa seja, eu não partilho da sua falta de fé no livre-arbítrio. A minha fé – qualquer posição sobre o livre-arbítrio, por excelentes que sejam os argumentos que se possua, será, em última análise, uma questão de fé e não de prova racional – a minha fé, dizia, é de que possuo livre-arbítrio e que, por vezes, escolho aquilo que faço, podendo fazer uma coisa diferente. Por exemplo, poderia ter decidido, em vez de escrever isto, ir a uma esplanada, beber uma cerveja e contemplar o sol a afogar-se no mar. Nada me impedia e tenho várias esplanadas, com vista sobre o pôr-do-sol, mesmo à mão de semear, embora na areia e no mar nada se semeie e eu não tenha alma de agricultor. Ao fim de várias décadas de convívio com a minha alma, ainda não compreendi que tipo de alma é que me coube em sorte. Talvez seja uma alma sem tipo, como, no romance de Musil, o homem é sem qualidades. Hoje, ao telemóvel, tive uma longa conversa com o padre Lodo, mas não discutimos o problema do livre-arbítrio, uma das coisas em que eu e o velho jesuíta meu amigo estamos de acordo. Explicou-me, longamente, por que razão, este ano, não esteve por aqui, onde a Companhia tem um belo local de férias. Ao ouvi-lo pensei que estava a repetir-se, mas, de imediato, reconheci que também me repito e sou mais novo. Com o avançar da idade temos uma tendência para a repetição. No meu caso, parece haver uma predilecção pela anáfora. Imagino que o uso da repetição seja uma luta contra o desmemoriamento. A realidade aproxima-se, mas um dia hei-de esquecê-la. Não haverá anáfora que resista.

sábado, 31 de agosto de 2024

Repressão e censura

Leio num jornal online a frase a repressão é a mãe do desejo. A proposição não é particularmente inovadora ou, sequer, interessante, apenas explora uma promessa de erotização. Vivemos num mundo que se saturou de tal modo de psicanálise que tudo o que tenha o seu aroma se torna cansativo. Contudo, a frase recordou-me uma outra coisa, os livros que o antigo regime censurava e proibia. Sempre me pareceu que se essas obras fossem livres, o seu impacto social seria tendencialmente nulo. O acto censório era um modo de propaganda dos livros, muitos deles medíocres, outros de tal modo complexos que só seriam lidos por especialistas, os quais, apesar das proibições, encontravam sempre modo de os ler. Um dos livros vítima da censura portuguesa foi O Anticristo, de Friedrich Nietzsche. Contudo, que impacto poderia ter um livro que discute as raízes da cultura europeia e questões de natureza axiológica? O impacto que tem hoje, isto é, nulo. No acto de censura de um livro há uma crença de que os livros podem mudar o mundo. Uma crença exagerada. Mais facilmente uma descoberta tecnológica muda o mundo do que um livro ou mesmo um arsenal de livros. Repressão e censura de livros são exercícios não apenas moralmente inaceitáveis como inúteis.

sexta-feira, 30 de agosto de 2024

Devaneio

O dia tal como tem estado ofereceu-me duas possibilidades para o pós-almoço. Ou sentar-me aqui onde estou a escrever e acabar por adormecer, ou ir caminhar, aproveitando o dia cinzento e fresco. Escolhi a segunda opção. Fiz alguns quilómetros absorto, acompanhado pela música de Alban Berg. Talvez devesse caminhar sem música, prestando atenção ao caminho, deixando-me contaminar pela surpresa que nele, por certo, sempre haverá. Isto seria a realização de um ideal de vida. Prestar uma atenção sem falha a cada coisa que se faz, evitando a distracção que nos rapta do tempo presente e nos envia para um não tempo, onde a imaginação se entrega às suas divagações, criando mundos oníricos que se sobrepõem ao mundo em que nos movemos. Ouvir música, enquanto se caminha, é um compromisso. A imaginação é sustida e a atenção é mobilizada pela realidade daquilo que se ouve. Podemos imaginar que a arte, do ponto de vista, daquele que a contempla – visual ou auditivamente – representa um pacto que evita tanto as utopias subjectivas da imaginação quanto a crueza da submissão à realidade que nos cabe. Agosto aproxima-se do fim e isso é a única coisa que me ocorre neste momento.

quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Causa sui

Uma pessoa perde-se. É de tal modo desmesurada a obra de Fernando Pessoa que um leitor, mesmo medianamente atento, deixa escapar inúmeras facetas. Descobri há pouco que também escreveu histórias policiais. Acho que lhe chamava novelas policiárias. Talvez também tenha escrito ficção científica. É difícil um país tão pequeno conter um escritor tão grande, foi o pensamento que me ocorreu quando descobri que nem o policial escapara ao poeta. Não devia pensar coisas destas, pois pode indispor aqueles que andam sempre com a pátria na boca e a bandeira na lapela. Isto, porém, são coisas que não cabem nestas narrativas. Para dizer a verdade, eu não pensei que É difícil um país tão pequeno conter um escritor tão grande. Foi o pensamento que se pensou em mim. Se se tiver atenção, descobre-se que muitos dos nossos pensamentos não são nossos, mas são coisas que se passam em nós sem que tenhamos qualquer responsabilidade delas. Somos responsáveis pela censura ou não desses acontecimentos que se dão na nossa mente, mas não criamos a maior parte deles. Talvez uma parte substancial da obra de Pessoa seja desse género, coisas que ocorrem na sua mente e que ele, em vez de censurar, regista. Ele deve ter sentido isso mesmo e ficou perturbado, tentando encontrar pensadores para muitos dos seus pensamentos poéticos. Daí a heteronomia. Se ele fosse mais radical, admitiria que toda aquela obra não tinha autor. A obra compusera-se nele, mas tinha-se autocriado. Como diria Espinosa, a obra, como Deus, é causa sui.

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Sem laço

Em 1906, Arthur Moeller van den Bruck, um pensador alemão, com uma costela holandesa, ou neerlandesa, afirmava Uma perspectiva inesperada abriu-se assim diante da arte moderna: ser ela própria a cultura moderna! Passaram 118 anos e a profecia de van den Bruck parece falhada. A evolução da arte moderna afastou-a, de algum modo, do poder de dar forma a uma cultura moderna, uma cultura que se tornasse uma visão global e unificada do mundo. Pelo contrário, a arte moderna integra o amplo espectro daquilo a que poderíamos chamar o grande estilhaçamento. Por todo o lado, o que emergiu foi uma contínua pluralização espiritual e cultural, sem que se percebe nas infinitas manifestações culturais qualquer laço comum, a não ser o da sua radical autonomia e, por isso, não possuir qualquer princípio unificador partilhado com todo o resto. Não há uma cultura moderna, mas múltiplas culturas modernas, como não haverá uma arte moderna, mas múltiplas artes modernas, deslaçadas – culturas e artes modernas – umas das outras. Os nossos tempos são assim de estilhaçamento e deslaçamento. Uma unidade global do espírito poderá ter existido no passado, mas não existe no presente. Do futuro, nada sabemos. Em 1906, ainda se vivia sob a sombra de um passado que, agora, está morto.

terça-feira, 27 de agosto de 2024

Um acontecimento

Hoje, pela primeira vez nesta época balnear, passeei-me à beira-mar. Enquanto caminhava sobre a areia e sentia a água nos pés, pensava que era monsieur Hulot, num dos extraordinários filmes de Jacques Tati, no caso, Les Vancances de Monsieur Hulot. O filme é de 1953, ainda não tinha este narrador nascido. Demorei muitas décadas para poder encarnar a personagem que Tati filmou e encarnou, diga-se. O senhor Hulot era mais alto, mas pouco, do que este narrador e tinha uma inclinação pelo cachimbo, que não consta no rol das inclinações de quem narra este episódio. Partilhamos, porém, a inclinação para o desajeitamento, embora seja necessário fazer uma ressalva. Enquanto monsieur Hulot acentuava esse estado de pouco ajeitamento, este narrador disfarça, não poucas vezes com sucesso. A vida tem destas coisas que não sabemos como nos calham. Poderia ser uma encarnação de Ivan, o Terrível, mas não. Saiu-me na lotaria o senhor Hulot. O grande acontecimento, porém, foi mesmo estar à beira-mar, coisa que em tempos era banal, mas que se tornou excepção. Ainda fui desafiado para entrar dentro de água, mas exclamei de imediato vade retro Satana, que é como quem diz Afasta-te, Satanás, a que acrescentarei vai tentar o diabo, se quiseres mergulha tu. Eu tenho de passear, com o meu panamá genuíno na cabeça e as mãos atrás das costas, para ver o que se me apresentar diante dos olhos.

sexta-feira, 23 de agosto de 2024

A obra, não a biografia

Uma parte da manhã passei-a numa visita a uma casa-museu do século XIX. O proprietário foi um artista distintíssimo numa arte que então dava os primeiros passos. A visita foi guiada. O discurso da guia foi uma verdadeira hagiografia do antigo proprietário. Ora, este terá tido uma faceta privada pouco digna da glória dos altares, e não me refiro a picarescas aventuras sexuais, mas que o torna uma personagem ainda mais interessante. Há uma tentação de associar a grandeza em certa área das actividades humanas à bondade moral ou mesmo à santidade. Lembro-me de ter saído da escola primária, como então era conhecida, com a sensação de que Portugal só tinha sido governado por grandes heróis que eram, ao mesmo tempo, grandes santos. Estariam todos, imaginava eu, no céu. Ora, todos nós temos um fundo obscuro e, não poucas vezes, quanto mais luminoso se é em certa área – na arte, por exemplo – mais escura é a alma do ponto de vista moral. Era bom que isso fosse entendido num museu, mesmo de província, e que os artistas fossem apresentados na sua complexidade, embora a vida dos artistas seja uma curiosidade. O fundamental, enquanto artistas, não é a sua vida, mas a sua obra. As hagiografias surgem muitas vezes para colmatar uma certa incapacidade para comentar e explorar a obra. No caso de hoje, o que foi mostrado e comentado foram aspectos episódicos da biografia luminosa do autor, o seu peso social, mas nada se explorou da obra, do porquê da sua importância, da sua relação com as tendências da época.

quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Um problema de arrumação

Sem saber como fui ter a uma página da FNAC onde se exibia, depois da escolha de uns quanto doutos escolhedores, as 12 melhores obras literárias portuguesas, no âmbito da ficção narrativa, dos últimos 100 anos. Na verdade, dos últimos 108 anos, pois a escolha foi efectuada em 2016 e, tanto quanto dei por isso, nada surgiu no nosso país que merecesse elevar-se àquele empíreo ou entrar nesse restrito cânone. É feita uma breve consideração de cada obra, apresentado o começo e mobilizada uma frase sobre o autor, um juízo de autoridade que legitima a sua escolha. As obras não estão classificadas. São 12, ordenadas alfabeticamente. A que surge em primeiro lugar é A Casa Grande de Romarigães, de Aquilino Ribeiro. Ora sobre este, foi escolhida a frase É um inimigo político, mas é um grande escritor. O autor é António Salazar. Que se saiba, Salazar, apesar de ser especialista em classificar pessoas como inimigos políticos, não tinha qualquer autoridade enquanto avaliador de escritores. No lugar de Aquilino, mesmo morto, ficaria ofendido. De todos os começos apresentados, o de que mais gosto, considerando a época do ano em que estamos, é o do Vergílio Ferreira:  É uma tarde de Verão, está quente. Tarde de Agosto. Olha-a em volta, na sufocação do calor, na posse final do meu destino. Há outros excelentes. Por exemplo, se estivéssemos no Outono, teria escolhido o de Fernando Pessoa: Nasci em um tempo em que a maioria dos jovens haviam perdido a crença em Deus, pela mesma razão que os seus maiores a haviam tido – sem saber porquê. É óptimo para ser apreciado em finais de Novembro. Caso estivesse num Inverno chuvoso, escolheria o de José Saramago: Aqui o mar acaba e a terra principia. Chove sobre a cidade pálida, as águas do rio correm turvas do barro, há cheia nas lezírias. Sou um narrador ribatejano, note-se. Contudo a frase absoluta, que nunca esqueci é a de Herberto Helder: – Se eu quisesse, enlouquecia. Sei uma quantidade de histórias terríveis. Vi muita coisa, contaram-me casos extraordinários, eu próprio… Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso. O que me fascinou, quando li o livro pela primeira vez, foi Se eu quisesse, enlouquecia. Agora, o que mais se me adequa é Enfim, às vezes já não consigo arrumar tudo isso.

quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Dissidência

A Antígona Editores Refractários tem um pequeno projecto de publicação de cinco obras literárias, a que deu o sugestivo nome de Sementes de Dissidência, embora esta designação seja equívoca. Numa sociedade como a nossa a dissidência não precisa de ser semeada, pois qualquer um pode dissidir, sem que isso lhe traga consequências relevantes. Pode ser mesmo motivo de promoção. Não é, porém, a pertinência do nome do projecto, mas o começo das duas primeiras obras publicadas, ambas romances. A primeira – Caruncho (2021), de Layla Martínez – começa assim: Quando passei a soleira da porta, a casa precipitou-se sobre mim. Este monte de tijolos e sujidade faz sempre a mesma coisa, lança-se sobre qualquer pessoa que atravesse a porta e retorce-lhe as entranhas até a deixar sem fôlego. Eis um começo pujante. A outra – Niels Lyhne (1880), de Jens Peter Jacobsen, tem outra tonalidade: Ela tinha os olhos negro e faiscantes dos Blid, com sobrancelhas finas e rectilíneas; deles era igualmente o contorno saliente do nariz, o queixo firme, os lábios carnudos. Perante estes começos, podemos especular que no caso de Layla Martínez estamos perante uma narração na primeira pessoa e no caso de Jacobsen de uma na terceira pessoa. Podemos, então, perguntar que tipo de narração estará mais próxima da verdade, quero dizer, qual delas ficciona de modo mais adequado a verdade do que narra. A narradora de Layla Martínez narra percepções subjectivas, enquanto o narrador de Jacobsen faz uma descrição objectiva. Podemos pensar que aquele que fala de si mesmo sabe muito melhor o que diz do que qualquer outro. Não creio que uma autobiografia esteja mais próxima da verdade de uma pessoa do que uma biografia dessa pessoa feita por alguém preocupado com a objectividade do que escreve. Hoje, amanhã tenho o direito de mudar de opinião, prefiro uma narrativa na terceira pessoa. O começo de Jens Peter Jacobsen, menos tonitruante que o de Layla Martínez, moveu o meu espírito a dar-lhe a precedência na leitura, apesar de ser a segunda obra do projecta da editora, e o de Laila Martínez, a primeira. Também sou capaz de dissidência.

terça-feira, 20 de agosto de 2024

A gravidez dos mitos

Em Vico encontramos uma explicação em plano inclinado para a dificuldade que se tem perante os mitos, propriamente, os mitos da antiguidade clássica greco-latina. O autor italiano não usa mito, mas fábula, que traduz a palavra grega para mito. Por que razão se tem dificuldade em crer nos mitos? Eis a explicação. Eles nascem geralmente indecentes e, por isso, tornam-se impróprios, o que significará que estão alterados, o que os faz inverosímeis, o que dá lugar a que se tornem obscuros, o que conduz a que se tornem escandalosos, o que terá como consequência que sejam inacreditáveis. Encontramos um grupo de avaliações morais, são histórias indecentes, impróprias, escandalosas. Encontramos um grupo de avaliações epistémicas, são histórias inverosímeis, obscuras e inacreditáveis. O eixo em torno do qual giram estas duas rodas de avaliação dos mitos é a alteração. Os mitos são escandalosos e inacreditáveis porque estão alterados. Originariamente, escreve Vico, seriam narrações verdadeiras e severas, ainda uma avaliação epistémica e uma avaliação moral. Ora, em torno de que eixo giram estas duas avaliações? O eixo é a origem. Na origem, as narrativas dizem a verdade e expõem a conduta séria e rigorosa. Depois, quando o comboio do tempo traz as coisas e as narrações para cada vez mais longe dessa origem, mais elas se degradam moralmente e se tornam, ao nível do conhecimento, inacreditáveis. Repare-se, ainda, numa subtil distinção. Na origem, os mitos são verdadeiros e severos, mas nascem indecentes. Uma coisa é a origem e outra é o nascimento. O que nos leva a supor que a gravidez mítica é um processo de duvidosa moralidade que transforma uma história severa e verdadeira numa indecência inverosímil.

segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Um excesso

Na edição de 2007, da Bertrand Editora, das Elegias de Duíno e dos Sonetos a Orfeu, o nome em destaque não é o de Rainer Maria Rilke, mas o de Vasco Graça Moura. O tradutor surge como mais importante do que o autor. Talvez a ideia seja de que não é possível traduzir poesia, mas esta pode ser reescrita e, nesse caso, o reescritor é o autor. Peguei no quarto soneto a Orfeu, aquele que começa por O ihr zärtlichen, tretet zuweilen (Ó vós ternos, por vezes entrai) e, desconhecendo a língua, pedi uma tradução automática. Uma tradução automática rasura o poético do poema, mas devolve-nos imagens e materiais semânticos usados na construção original. A tradução de Vasco da Graça Moura propõe um novo poético, adaptado à língua portuguesa, do soneto de Rilke, mas trabalha com imagens e materiais semânticos provenientes, como não podia deixar de ser, de Rilke. Podemos discutir, e tem-se discutido, se na poesia o essencial é o som ou o sentido. Ora, nos poemas de Rilke, por certo, a grandeza nascerá de uma combinação entre som e sentido. O trabalho de tradutor de Vasco da Graça Moura é pessoal na dimensão sonora, mas tem uma dívida impagável ao sentido construído por Rilke. A capa da Bertrand Editora é uma tomada de posição sobre a discussão entre som e sentido, proclamando visualmente que o som é mais decisivo na poesia do que o sentido. Uma tomada de posição excessiva, parece-me.

domingo, 18 de agosto de 2024

O poder da acção

Num comentário a um longo romance de Fiódor Dostoiévski, alguém – um leitor ingénuo, por certo – escreve que as primeiras cem páginas são difíceis, mas, depois, chega a acção a sério, aquela que capta a atenção do leitor. E esse comentador terá as suas razões. O romance, tal como o compreendemos hoje, é uma invenção da modernidade europeia, essa modernidade que decretara que a acção se sobrepunha à contemplação. O importante não é aquilo que o homem pensa ou observa de modo desinteressado, mas o que faz. O romance narra esse agir humano e os leitores, tomados pelo espírito moderno, não compreendem que um romancista – seja Dostoiévski ou Eça, o Eça de Os Maias – se entregue a longas descrições que pressupõem um espírito capaz de se abstrair do que se move para contemplar aquilo que está aí e parece permanecer. Os modernos precisam de mergulhar na acção, talvez como refrigério por não saberem o que fazer, neste mundo, da alma que lhes coube em sorte. Há muitos anos, na década de oitenta no século passado, quando foi exibido aqui, nesta cidade onde me acolho, o filme de Akira Kurosawa A Sombra do Guerreiro, o programador local agendou-o para uma sessão de um sábado à noite. Estranhei a opção e ainda mais estranhei o facto de a sala, com uma lotação para mil espectadores, estar cheia. Programador local e público pensaram estar perante um filme de guerra ou de artes marciais. Sentia-se a decepção dos espectadores pela ausência de acção, pela natureza contemplativa que percorre o filme. Houve uma explosão quando foi exibida uma batalha bem activa. Isto são memórias com mais de 40 anos e há muito que não revejo o filme. Talvez seja uma boa ideia para a noite deste domingo, onde, na verdade, não espero qualquer acção. Melhor, onde dispenso qualquer acção.

sábado, 17 de agosto de 2024

Poder absoluto

Retornei ao sítio de calor de onde tinha partido ontem e fui recebido com um abraço caloroso, demasiado caloroso. Os neurónios suspendem a sua função, que já não seria muita, e o mundo fica mais turvo. Dei por finda a estadia junto do mar, cansado de mais de um mês de litoral. Para dizer a verdade, não é tanto cansaço do litoral como saudades do escritório, a minha cadeira. A minha secretária, as minhas estantes. É o meu reino, onde o poder não necessita de negociação e, por isso, é absoluto, tal como o de Luís XIV. Esta coisa de um poder absoluto é sempre uma mentira, pois mil coisas conspiram contra esse poder, até as mais benévolas. Ninguém, nem Luís XIV, tem, teve ou terá poder absoluto sobre si mesmo, sobre o seu corpo, o seu desejo, quanto mais um império sem limites sobre os outros e o mundo. Somos limitados e finitos, o resto são fantasias para disfarçar essa limitação e essa finitude, as quais, elas sim, são absolutas. Agora, vou beber água para me hidratar.