terça-feira, 8 de junho de 2021

Uma pendência

Num pequeno excerto de um texto de Enst Jünger, leio que tudo o que nos cerca está impregnado, mais do que da racionalidade luminosa, de um cerrado mistério. Ele escreveu isto em 1916, em plena guerra mundial, nas instalações do Batalhão a que pertencia. Talvez a iminência da morte torne as pessoas mais sensíveis ao mistério, talvez existam pessoas mais sensíveis que outras. O texto reflecte uma pendência a que poderíamos chamar uma nova querela entre antigos e modernos. A racionalidade luminosa seria o facho erguido pelos modernos. O cerrado mistério, a sombra dos antigos. É possível, porém, que as coisas sejam bem mais simples. Quem conseguiria viver, envolvido em mistério, toda uma vida? Este dá profundidade à existência, mas as pessoas, como as crianças perante a escuridão, ficariam inseguras e temerosas. O que os pais fazem é ligar o interruptor, para que a luz dissipe o medo. A racionalidade dos modernos é essa luz. Não desfaz o mistério, mas oferece tranquilidade e segurança, ocultando-o na própria luz. A escola e as árvores que a envolvem oferecem-se ao meu olhar tranquilo, batidas pela inclemência da luz de Junho. Se ali há algum mistério, a luz não o deixa ver.

segunda-feira, 7 de junho de 2021

As horas

O dia deslizou rapidamente. As horas, quando mais precisamos que dilatem, mais elas têm uma inclinação para minguar. Esta separação entre as horas cronológicas e as psicológicas será sentida por toda a gente. Há uma duração uniforme, pautada pela convenção que inventou a divisão do dia em horas, destas em minutos e destes em segundos. Tudo isto parece, se se olha com exactidão, de uma regularidade imutável. Todavia, o mesmo não se passa no nosso pobre espírito. A regularidade torna-se em irregularidade, conforme as paixões que nos atormentam. Por vezes, uma hora não é mais que alguns segundos. Outras, contudo, parece dilatar-se, com se fosse tomada por um desejo hiperbólico. Hoje precisava de horas pouco dadas a grandes velocidades. Elas decidiram o contrário. Nem nas nossas horas temos mão. 

domingo, 6 de junho de 2021

Enviesar os olhos

Talvez seja uma ilusão de óptica, mas os loendros da escola aqui ao lado já floriram. Arbustos verdejantes deixam-se trespassar por pequenas mancha cor-de-rosa. Sob o sol, brilham e, tocados pelo zéfiro, dançam ondulantes perante o meu olhar. A vida vegetal não é menos enigmática que a animal. É menos dada a fogos-de-artifício, a grandes explosões de ira, aos jogos onde a vida e a morte se entregam a núpcias que parecem eternas. Se mata, é por descuido da natureza ou da vítima. O domingo corre para a hora de almoço. Vai chegar quase aos 30 graus, para anunciar a praga do Verão. Irei, como é habitual aos domingos, almoçar tarde. Uma conversa havida sobre arte chegou ao grau de perplexidade que é habitual neste tipo de conversas. A dificuldade de oferecer uma definição consensual do fenómeno. A conversa acaba sempre por resvalar para um certo tipo de cepticismo, cujo pano de fundo é a impossibilidade de definir o que é uma obra de arte. Talvez Johann Scheffler, para desgosto de filósofos que fazem profissão da arte do argumento, possa ajudar. Uma ajuda inadvertida, como todas as boas ajudas. Viveu no século XVII e ficou conhecido por Angelus Silesius. Um pequeno poema diz-nos a rosa é sem porquê; floresce porque floresce / não cuida de si mesma; não pergunta se alguém a vê. Talvez a arte seja essa rosa sem razão e a procura de razões daquilo que a não tem seja uma doença. Uma doença, perguntará o eventual leitor. Uma doença ocular, direi, talvez não seja cegueira profunda, mas uma forma de enviesar os olhos. Imagino que os que procuram definir arte ou rosas ou seja o que for sejam vesgos. Isto, porém, são imaginações e fantasias de um domingo em que se almoça tarde.

sexta-feira, 4 de junho de 2021

Pesadelos e catarses

Nos últimos dias voltei a um lugar de que muito gosto. Revi dois filmes de Ingmar Bergman. Primeiro, Persona. Depois, Sonata de Outono. Talvez logo reveja um outro. Há autores que nunca me cansam. Talvez toquem qualquer coisa de essencial e, por isso, obrigam o espectador a comprometer-se com a sua obra. Conheço muita gente que detesta o cinema do realizador sueco, que o acho soporífero. Eu encolho os ombros e penso que mais vale adormecer com um filme do Bergman de que com um comprimido. Será menos tóxico. A tarde de sexta-feira corre desvairada, como se uma ânsia a precipitasse para o rápido fim-de-semana. Recebo mensagens no telemóvel, abro-as, sorrio, para depois voltar os olhos para o horizonte. Toldam-no algumas nuvens, mas passarão. O vento de Norte empurrá-las-á para longe, para que a noite se cubra de estrelas, e os sonhadores tenham motivo para os seus sonhos. Também os dois filmes de Bergman tratam de sonhos, mas pouco benévolos. A vida dos seres humanos pode ser um enorme pesadelo. O cinema de Bergman tem um ponto de contacto com a tragédia grega. Funciona como catarse. É, para os espectadores, um exercício de purificação.

quinta-feira, 3 de junho de 2021

Transubstanciação

Hoje deu-me para andar a cismar sobre coisas que não aproveitam a ninguém. Pensamos que muitos dos nossos gestos têm um significado determinado pelas próprias circunstâncias onde eles ocorrem, sem que uma outra ordem intervenha para lhes dar sentido. Isto veio a propósito de gestos como os de Marcel Duchamp, que enviou um exemplar de um urinol fabricado em massa para uma exposição de arte ou que transformou em obra de arte uma trivial pá de limpar neve, dando-lhe o irónico nome de Antecipação de um Braço Partido, ou de Andy Wahrol que mostrou as Brillo Boxes, vulgares caixas de esfregões de palha de aço, como obras de arte. Estes gestos são matéria que facilmente pode conduzir a meditações sobre a dessacralização da arte. No entanto, essa seria uma visão errónea daquilo que está em causa. Eles inscrevem-se numa cultura que tem como um dos seus fundamentos a transubstanciação do pão e vinho no corpo e sangue de Cristo. O que estes artistas fazem é transubstanciar objectos do quotidiano em objectos de uma outra ordem, em obras de arte. Os seus gestos não devem ser interpretados apenas – ou principalmente – como provocações ou questionamento sobre o que é a arte, mas como rituais de consagração que transformam o trivial no extraordinário. Com isto fazem uma revelação sobre o que é um artista e o que é a arte. O artista é um sacerdote e a arte é o exercício desse sacerdócio, que opera a transubstanciação, esse gesto ritual de consagração que transforma os materiais vulgares em materiais nobres. Esta fútil meditação talvez tenha nascido por hoje ser feriado, ainda por cima feriado religioso, o dia do Corpo de Deus.

quarta-feira, 2 de junho de 2021

Santa trivialidade

A meio da manhã tive uma aberta e fui à farmácia. Apresento a receita, a farmacêutica investiga na base de dados. Não temos agora, só logo à tarde, diz. Só vendemos até hoje um medicamento desses, acrescentou. Acredito, respondi. Foi a mim. Encomendei duas embalagens, pois aquilo tem um preço desagradável e talvez se possa estragar armazenado na gaveta dedicada a sucursal da farmácia. Dá para dois meses. De tudo isto concluí que pouca gente tem o problema que eu tenho ou segue a mesma terapia. Com o passar dos anos acumulam-se os medicamentos necessários para sobreviver. Rio-me, sempre que tenho de retirar os comprimidos das embalagens. Não apenas pela quantidade, mas porque o acto é mais um exemplo da lei de Murphy, adágio sobre o qual ainda ontem tive uma conversa. O provérbio diz o seguinte: Qualquer coisa que possa correr mal, correrá mal, no pior momento possível. Há vários exemplos da lei. O pão cai sempre com a manteiga para baixo. A fila do lado anda sempre mais depressa. A informação mais importante de qualquer mapa está sempre na dobra ou na margem. Tudo isto é informação recolhida na Wikipédia. Eu acrescento um exemplo medicamentoso: quando se querer retirar um comprimido de uma caixa, abre-se sempre esta pelo lado errado. O lado errado é aquele onde se encontra a dobra da bula, que não permite aceder ao colírio salvador. Com tanta coisa importante, as minhas preocupações centram-se no que é trivial. Talvez, oiço dizer, nada mais exista a não ser a trivialidade. Uma ideia que me repousa e reconcilia comigo.

terça-feira, 1 de junho de 2021

Começar com um refugiado

Sem se dar por ele, Junho instalou-se. O dia esteve carregado, como se ameaçasse tempestade. O corpo, envolvido pela tensão eléctrica, exigia-a. O tempo, porém, recusou-se a um espectáculo de luz e de bombos celestes. Manteve sempre uma tonalidade crepuscular e na rua a temperatura não subiu muito. Descubro que a pintura representou pela primeira a Via Láctea em 1609. Coube o feito a Adam Elsheimer, numa representação da fuga para o Egipto. Curiosamente, só em 1610, no Siderius Nuncius, é que a ciência moderna, então a dar os primeiros passos, confirma, pelo trabalho de observação de Galileu, aquilo que o pintor mostrara, a nossa galáxia como uma acumulação de incontáveis estrelas. Especula-se que o pintor também teria algum interesse pela ciência e que talvez tenha dado uma espreitadela num desses primeiros telescópios. O quadro encontra-se na Alte Pinakothek, de Munique, onde a Via Láctea se continua a mostrar tal como a viu Elsheimer e a Sagrada Família, sobre um burro, permanece em fuga para o Egipto. A religião cristã começa com um refugiado. Talvez isso devesse dizer alguma coisa Europa fora, não se tivesse tornado esta mais pagã que cristã. Por aqui, nada indica que se possa contemplar a Via Láctea, esta noite.

segunda-feira, 31 de maio de 2021

Prolegómenos

O crepúsculo é cada vez mais tarde, pensei ao olhar para a luz ainda viva. Mais logo virá a noite com o seu império feito de trevas, a vida adormecerá lentamente, até que a aurora faça soar as trombetas, para que homens e animais retomem a azáfama que a despótica realidade lhes impõe. Leio, num poema de um poeta polaco, que um alemão na esplanada de um café tinha sobre os joelhos um pequeno livro. O título era Mística para Principiantes, e o poeta foi descobrindo, nessa língua incompreensível que é o polaco, que tudo o que sucedia não seria outa coisa que uma introdução ou uns prolegómenos a essa mística, seja ela o que for e qual for. O tradutor cometeu um deslize e traduziu prolegomena por prolegómeno, mas a palavra não existe em português a não ser no plural. Consultei o habitual dicionário da Porto Editora e o indispensável Houaiss. Aliás, prolegomena é uma palavra latina que se encontra no plural. Noutra encarnação, quando me dedicava a coisas para as quais não tinha qualquer competência, li um livro com o épico título Prolegómenos a Toda a Metafísica Futura que Queira Apresentar-se como Ciência. Hoje em dia, consumada a minha falta de préstimo para prolegómenos, introduções e prefácios, escrevo uns pequenos textos insípidos e que, se utilizados com cuidado, permitem bocejar, e como se sabe todos os bocejos são autênticos prolegómenos ao sono.

domingo, 30 de maio de 2021

Tresleituras

Um velho domingo de Maio. As temperaturas chegaram aos 33 graus, para que alguém distraído não se esqueça que isto não é o paraíso. Contrariamente aos meus hábitos, tive de ir fazer as compras semanais no dia de hoje. A cidade estava luminosa, mas de uma luz ameaçadora, vítrea. O calor ainda se está a entranhar nas paredes das casas e prédios, mas não tarda começará a ressumar deles, caindo sobre as ruas como lava expelida por um vulcão. Consulto as previsões para a semana que vem. Não são de molde a tranquilizar-me. Preciso de retomar as caminhadas, mas agora só pela noite, onde a temperatura se torna mais amigável. Há pouco passei os olhos por um título de uma entrevista. Li Eu fui uma privilegiada pelos pais que tive. Passado um bocado, tornei a passar os olhos pelo mesmo título e descobri que lá estava outra coisa, Eu fui uma privilegiada pelos filhos que tive. O que leva a mente – pelo menos, a minha – a cometer erros destes? Talvez a minha leitura se deva ao preconceito. Qualquer privilégio é herdado e não recebido de quem vem depois. As mentes humanas são máquinas frágeis e dessa fragilidade faz parte a tresleitura, a qual tem uma dimensão muito mais ampla que a leitura, quero dizer a leitura correcta. Ando falho de imaginação, essa é a verdade.

sábado, 29 de maio de 2021

A vontade pervertida dos objectos

Nunca deixa de me impressionar o número de coisas que encontro apenas quando não preciso delas. Assim que as quero requisitar para algum serviço urgente, elas decidem ocultar-se nos sítios mais inverosímeis e recônditos. Tendo passado a necessidade de uso, por ter desistido de o levar a efeito ou por ter resolvido o assunto de outro modo, elas reaparecem todas lampeiras e, como se fossem cãezinhos amestrados, não param de abanar o rabo. Isto não se deve a uma arrumação caótica do meu mundo, mas à vontade pervertida dos objectos criados pelo homem. Têm vida própria, pelo menos quando preciso de alguns deles. Um pouco mais acima escrevi a palavra lampeiras. Não sei se não passa de um regionalismo ou se o seu uso se estende a todo o território nacional. Antigamente, ouvia-a muito, mas agora ou caiu em desuso ou estou a ficar surdo. Julgo que virá de lampo. Por aqui classificam-se como lampos os figos temporãos. Fazem as delícias dos amantes do fruto, clube no qual não me incluo. O meu neto passou quase oito horas comigo. É a primeira vez desde que a pandemia começou. Tentámos recuperar algum tempo perdido. Eu tive a minha dose de A Masha e o Urso e também da Galinha Pintadinha. Esta é uma velha conhecida. Um sábado já inclinado para o Verão, embora um vento moderado de Noroeste baixe a temperatura e torne desagradável andar na rua. Não tarda e o dia está passado.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Requiem para uma máquina

Um velho computador, mas que ainda prestava um ou outro serviço relevante, decidiu entregar a alma ao criador. Não será bem isso. Ele ainda tem sinais vitais. Foi, naqueles tempos em que todos os outros sopravam desalmadamente, um aparelho silencioso. Uma ventoinha discreta fazia a minha felicidade. Depois, foi substituído, mas ali estava para fazer isto ou aquilo. Hoje precisava dele. Liguei-o. Não apenas começou por se recusar a enviar imagem para o monitor, como quando o fez foi para assinalar erro. Depois, nem isso. Limita-se a soprar com violência, como se se preparasse para levantar voo. Vai deixar a tela, como os brasileiros chamam aos monitores, viúva. Uma tristeza. A minha relação com os seres humanos deve andar tensa, para não falar deles e dedicar um requiem a uma máquina decrépita. As coisas são o que são. Não há nada como uma tautologia para rematar uma conversa ou acabar um texto, mesmo à sexta-feira. Assim seja.

quinta-feira, 27 de maio de 2021

Injustiças vegetais

Ao olhar o entardecer deste dia de Maio recordei-me de dois versos de Eliot: What is the late November doing / With the disturbance of de Spring.  Lembrei-me não porque estejamos em Novembro, mas porque este dia de um Maio tardio está com ademanes de Outono. Com algum calor, mas céu nublado e uma atmosfera tensa, como se a terra estivesse a pedir uma tempestade libertadora das más energias que se acumularam. Há pouco, voltei a contemplar os dois jacarandás que moram num quadrado relvado do outro lado da avenida. Um está cada vez mais exuberante, coberto com flores roxas a abrirem-se para o espanto de quem as pode olhar de cima. O outro, coitado, é o jacarandá pobre, sem meios para comprar roupa vistosa, um maltrapilho com as suas esparsas folhas verdes e uma ou outra flor. Nem no mundo vegetal a justiça distributiva funciona. Aparentemente, ambos tiveram as mesmas oportunidades, mas um aproveitou-as e cobre-se de glória, o outro vai acabar mal. Não devia estar com estas considerações, pois são impróprias de um mero narrador proibido, pelo autor, de falar sobre este tipo de assuntos. Procuro com os olhos os loendros da escola vizinha, mas ainda não floriram. Não consigo distingui-los da vegetação envolvente. O crepúsculo prepara-se para cobrir a cidade com um véu de hesitações. Há dias em que não tenho nada para dizer. São quase todos. Um pássaro passou diante da minha janela. Há quem diga que era um estorninho, respondo que não. Um anjo disfarçado.

quarta-feira, 26 de maio de 2021

Contra-conformista

Voltaram as antigas quartas-feiras. A pandemia ainda não foi dada como extinta, mas o conjunto musical da escola vizinha retornou em força. Tanto quanto sei, o conjunto é formado por professores, ou pelo menos por um, o vocalista, um rapaz do meu tempo, colega de colégio. Parece-me que estão a alargar horizontes musicais. Para além daqueles velhos slows dos bailes de há décadas, música para constituir família, foram adicionadas ao repertório umas composições mais hard-rock. Seja como for, não o posso jurar, pois sou um absoluto leigo nesse tipo de música. Consegui constituir família sem recurso a slows e de hard-rock só conheço os cafés, não por os frequentar, entrei uma vez no de Lisboa, mas por ouvir dizer. Confesso que tentei várias vezes gostar dessa música que animou a alma da minha geração, mas tive de reconhecer que sou um desalmado. Há pouco fiz uma intervenção num fórum online restrito sobre uma determinada temática que, embora venha para salvar a pátria da sua contumaz miséria, não vou aqui divulgar. Se sou para a música dos meus tempos um desalmado, continuo com a mesma alma que tinha nesses tempos. O prazer de estar contra. Há os conformistas, que estão sempre a favor, e há os contra-conformistas – não confundir com inconformistas – que estão sempre contra. Estar contra parece fácil, pois tudo o que é feito pelo homem é precário e imperfeito. No entanto, estar contra é uma arte. Exige que se explore aquilo que se vai contestar, se lhe descubra a imperfeição, se contribua para que melhore. É isto que um filósofo famoso do século XX propunha para a ciência. As teorias científicas não se podem confirmar, mas há que mostrar que são falsas, para se encontrarem outras melhores. Não se pense que estar contra seja o resultado de um elevado heroísmo. Não é. É, antes, uma coisa que está na massa do sangue, contra a qual não se pode lutar. O grupo de baile voltou aos slows, embora já ninguém constitua família desse modo.

terça-feira, 25 de maio de 2021

Emprestar a voz a uma mosca

Deveria aceitar emprestar a minha voz, de modo anónimo, a uma mosca? Vivemos num mundo cheio de animação e experiências. Recusei a proposta sem explorar as possibilidades. Disse que não tinha talento para mosca morta. Não era isso, retorquiram. Pensei que poderia ceder o meu aparelho fonador a um moscardo velho, mas contive-me, não fosse dar ideias. Isto foi a coisa mais saliente que me aconteceu no dia de hoje, pelo menos até ao momento. Nada impede, que não surja uma proposta para ceder os olhos a um tigre da Malásia, se é que existem tigres na Malásia. Por vezes, conto mentiras, não pelo prazer de mentir, mas porque a verdade é uma coisa que dá muito trabalho e uma pessoa chega já ao final de terça-feira de língua de fora. Leio numa legenda a uma fotografia de Charles Darwin, pespegada num livro que discute a existência de Deus, que o biólogo britânico explicou de maneira decisiva como a ordem surge naturalmente da desordem. Fiquei siderado, bastou a palavra decisiva para eu perceber que não sou o único a inventar propostas de emprestar a voz a uma mosca. Mesmo na discussão filosófica sobre a existência de Deus, a ficção é o ponto central. Confesso-me darwinista, mas tenho muita dificuldade com tudo o que é decisivo. Eu sei que sou um indeciso nato e que isso não é uma virtude, mas o que posso eu fazer, agora que espero um convite para, decisivamente, emprestar a minha voz a uma lesma?

segunda-feira, 24 de maio de 2021

Cartas de amor

Talvez o amor não seja mais de que a arte de o amante encontrar justificação para a falta do amado, para falar numa linguagem com cores da mística cristã. Numa carta de 3 a 4 de Março de 1913, dirigida à amada, escolho a palavra com cuidado, Felice Bauer, Franz Kafka escreve: Hoje não tive carta tua, meu amor. É fácil de explicar, a tua irmã esteve ontem em Berlim, não tiveste tempo. O amor não estará na designação da amada como meu amor, mas na antecipação daquilo que desculpará a sua falta. Todavia, qualquer coisa de perigoso esconde-se nesta benevolência amante. E se a irmã de Felice não estivesse estado em Berlim, ou se Kafka não o soubesse, ainda encontraria uma explicação – e toda a explicação é já uma justificação – para a falta de Felice? Esta sombra tão dissimulada faz, contudo, parte do amor humano. Nele se esconde sempre a possibilidade da decepção e da traição, isto é, do fim do amor. Recebi hoje o livro com estas cartas. São, na edição espanhola, um pouco mais de oitocentas páginas com a correspondência enviada pelo escritor checo, entre 1912 e 1917. Não constam as respostas de Felice. Elias Canetti refere-se a essas cartas como as ‘cartas de um tormento que se prolongou por cinco anos’. Também cinco anos antes de morrer, Felice Bauer vendeu as cartas ao editor de Kafka. Quando foram publicadas, o escritor tinha morrido há quarenta e três anos. Se a correspondência diz respeito a um amor tormentoso, há, no gesto de Felice Bauer, qualquer coisa de desabrido, talvez uma traição ao que deveria permanecer na esfera obscura da intimidade. O gesto teatral de queimar as cartas de um amor que não se consumou é, apesar da teatralidade, menos desabrido, para continuar com o mesmo adjectivo, de que a sua venda para publicação. Na verdade, faz lembrar os casos em que dois amantes trocam fotografias íntimas pelo telemóvel e depois, consumada a ruptura, o abandonado publica-as, como vingança, nas redes sociais. Esta consideração, porém, pode ser completamente injusta para Felice. A sua traição pode estar ao mesmo nível da de Max Brod, o amigo a quem Kafka pediu para queimar todas as suas obras. Brod, porém, não as queimou e deu a conhecer ao mundo um dos mais geniais escritores. Felice pode ter pensado que seria muito mais grave privar o público do drama interior de Kafka de que violar os segredos da intimidade. A revelação do génio de Kafka pela traição do amigo abriu o caminho para que a sua vida íntima lhe deixasse de pertencer, se tornasse pública e viesse parar à minha secretária em forma de livro.

domingo, 23 de maio de 2021

Uma questão de angústias

A angústia de domingo à tarde é pior que a do guarda-redes no momento do penalty. Não tenho experiência de guarda-redes, mas possuo uma evidência, fundada na realidade do sentimento, de que o domingo à tarde convoca uma espécie muito determinada de angústia, diferente de qualquer outra que possa existir. Comecei a senti-la quando me apercebi que havia domingo e, pior que isso, também havia segunda-feira, isto é, quando fui para a escola primária. A partir daí, nunca mais essa opressão dominical me abandonou. Durante muitos anos, enquanto o futebol me interessava e se jogava inexoravelmente aos domingos entre as três e as cinco da tarde, a angústia visitava-me com o apito final dos árbitros. Então a realidade fantasmagórica da segunda-feira descia sobre o meu coração para o apertar. Tenho de confessar que em certas épocas, que não são para aqui chamadas, a agonia não se manifestava. Depois, voltou com certa força e manteve-se não sem contumácia. Lembrei-me de tudo isto porque hoje é domingo e não sinto o tal estado depressivo que me tem atormentado ao longo da existência, sempre que o domingo se entrega nos braços de rameira que a tarde lhe estende. Não compreendo a razão, mas com a pandemia a patologia escondeu-se, desapareceu-me do coração, pois é uma coisa que ataca o coração, apertando-o com a tenaz da realidade. Talvez me tenha desinteressado definitivamente da realidade. Talvez.

sábado, 22 de maio de 2021

Cair na esparrela

Depois de uma manhã votada a discussões bizarras, que em nada contribuem para o progresso moral da humanidade, aceito a sugestão de ir experimentar um restaurante de comida grega numa outra cidade aqui perto. A sala estava quase vazia, a comida era razoável, mas a lentidão de todo o processo foi exasperante, quando havia quase tantas pessoas na cozinha quantas estavam na sala para almoçar. Para culminar, descubro que, na cozinha, ou não usavam máscara ou usavam-na no pescoço, talvez para evitar o vírus da papeira. Tendo em conta os preços, ao nível do que se paga nos restaurantes na moda das grandes cidades, a gestão do serviço e as precauções com a ameaça pandémica, não admira que não houvesse quase ninguém na sala. Ainda por cima não havia quem falasse português, embora os clientes pudessem escolher entre o inglês e o francês, para além de uma língua desconhecida que não era grego. A música ambiente, essa era óptima, mas ninguém vai a um restaurante por causa da música ambiente. Na verdade, nunca se deve esperar que limoeiros dêem uvas, nem que se encontre o cosmopolita num lugar recôndito da província. Nesta, o melhor é escolher o tradicional e deixar-se de experiências. Uma pessoa sabe destas coisas, mas acaba sempre por voltar as costas à razão e cair na esparrela.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Da pluralidade das ordens do mundo

Imagino, agora, que há uma ordem única na natureza. Hoje é sexta-feira, ontem foi quinta e amanhã será sábado. Caso a ordem não fosse única, amanhã poderia ser terça-feira e os dois dias seguintes serem ambos domingo. A sucessão dos dias não seria aleatória como acontece com as chaves do Euromilhões, mas obedeceriam a múltiplas ordens que coexistiriam pacificamente, gerando uma sequência de dias sempre inesperada. De imediato, o homúnculo que habita em mim começa a rir. Perguntei-lhe pelo motivo da risota. Respondeu-me que deveria aprender a pensar. Olhei-o de esguelha e com ar interrogativo. Se a sucessão dos dias obedecesse a múltiplas ordens, disse num odioso tom professoral, então também se poderia defender que as chaves do Euromilhões não seriam aleatórias, mas obedeceriam a um mesmo princípio. Nenhuma das bolas que sai é fruto do acaso, mas de uma certa ordem que se conjuga com outras ordens. A chave de um certo concurso estaria já pré-determinada, não por uma única ordenação causal do mundo, mas por múltiplas ordens que se cruzariam e combinariam para dar a aparência de aleatoriedade. Depois, o idiota do homúnculo tornou a rir-se e retirou-se para a caverna de onde nunca deveria ter saído. Olho para o que escrevi e pensei que o dia não está assim tão mau que eu tenha necessidade de me ocupar com estes devaneios em aparência de pensamentos. Eu não penso, embora não seja como o Alberto Caeiro, esse que não pensa, mas sente. Eu também não sinto. Tudo em mim é fantasia e quimera, tontices que me ocorrem.

quarta-feira, 19 de maio de 2021

Viagens e raízes

Não sou dado a viagens. Uma excepção num tempo em que toda a gente tem alma de viageiro e coração de turista. Gosto de estar, mas não aprecio particularmente o deslocar-me, embora quando viajo esqueço-me desse desgosto. A verdade é que sou um ser paroquial. Tudo isto para dizer que hoje tenho viajado bastante. Visitei o Japão através do canto de monges Zen, daí parti para a China, ouvindo a sua música tradicional. Não cansado, dei um salto à Arménia, através do Duduk, a flauta tradicional, e acabei no Irão e na Síria, na música de Mehdi Aminian & Mohamad Zatari. Estas diferentes sonoridades têm o condão de me mostrar que sou inextricavelmente europeu. Não porque me desgostem ou me sejam indiferentes. Não o são. A sua diferença fascina-me e amo-as pela sua diferença, como um homem ama uma mulher, pela sua radical diferença. É estranha a sensação que tenho perante esta música. Por um lado, ela abre em mim a certeza de eu não pertencer a nenhum desses mundos, mas sob essa capa pressinto algo mais fundamental, uma espécie de comunhão, cuja arqueologia se estenderá aos primeiros homens, aqueles que, sendo ainda uma comunidade única, começaram a transformar o mundo no jardim onde os caminhos se bifurcam. Afastamo-nos uns dos outros, mas a música, venha de onde vier, faz soar em nós, sob a capa da diferença, essa pertença arcaica a uma horda e a uma ordem únicas. Devíamos estar em casa fosse qual fosse o sítio onde estivéssemos. Se não estamos, é porque alguma coisa se perverteu em nós.

terça-feira, 18 de maio de 2021

Questões de imaginação

Um texto que escrevi ontem e que imaginara ter enviado para o destinatário, afinal não tinha saído do meu computador, onde dormia o sono dos justos. Não tivesse sido avisado e o escrito continuaria a descansar na pasta onde jazem esse tipo de redacções. Esta palavra trouxe-me à memória o tempo em que na escola as fazia. Não era um redactor particularmente feliz, falecia-me a imaginação e os textos deveriam ser mansamente insípidos e inodoros. Pior do que as redacções eram os desenhos. Absolutamente estereotipados, com ruas a saírem das portas das casas, estas com telhados encarnados, as árvores com copas verdes e troncos castanhos, o sol laranja e não sei se seria capaz de desenhar qualquer animal. A imaginação era coisa que em mim não abundava. Contrariamente ao que se passa hoje em dia. Imagino que envio coisas, imagino que faço coisas, imagino que sou isto ou aquilo, mas na verdade tudo isso é imaginação transbordante. Parece que aquela que não gastei na infância e na adolescência se acumulou e tenho agora uma grande reserva de imaginação. Não tarda e terei de entrar num webinar. As coisas que inventam. Pessoas que estão a gastar a imaginação e ainda são tão novas.