sexta-feira, 7 de outubro de 2022

A leitura como pena

É uma experiência curiosa tomar um relaxante muscular. Não apenas os músculos relaxam, como a pessoa fica meio aparvalhada. As pálpebras insistem em fechar-se, para que me entregue ao sono. Embora a tentação seja grande, resisto. Leio, no Público, num artigo de António Guerreiro, que um juiz turco condenou um réu a 15 dias de prisão, que poderiam ser substituídos por hora e meia de leitura diária, numa biblioteca, durante alguns meses. O condenado, depois da experiência de ir a uma biblioteca ler, confessou que a pena tinha sido terrível. Não a desejava nem ao seu pior inimigo. É caso para dizer que mais vale cadeia do que biblioteca. Daqui podemos concluir que os livros não foram feitos para todas e nem todos foram feitos para os livros. O autor do artigo conta que há mais casos, noutros países, em que o juiz condena alguém à leitura. Caso a moda pegue, os meritíssimos juízes, antes de proferirem as suas doutas sentenças, têm de indagar se a leitura é um prazer ou uma tortura. Se for um prazer, o réu condenado a sessões de leitura tornar-se-á de imediato um reincidente, por culpa do juiz. Mas se o réu sentir a leitura como alguma coisa de torturante, será que o juiz que ordena tal pena não corre o risco de infringir a lei ao recorrer a uma pena sentida como tortura? Deixo este problema à consideração de quem o quiser considerar. Vou dedicar-me a fruir desta sexta-feira, antes que ela acabe. Incluirá por certo um tempo de leitura.

quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Fazer silêncio

Seria um sábio o jurista Alberico Gentili que, nos finais do século XVI, terá dito Silete theologis in munero alieno! Eis um imperativo que, para além dos teólogos, todo o ser humano deveria seguir. Que os teólogos façam silêncio sobre assuntos que lhes são estranhos! Prosaicamente, Gentili está a dizer aos teólogos da época para não se imiscuírem nos assuntos do Direito. Este é um extraordinário conselho, embora talvez um pouco deficitário, a não ser que concebamos a referência aos teólogos como uma metonímia, em que se toma a parte pelo todo. Que todos os seres humanos fizessem silêncio sobre os assuntos que lhes são estranhos. Isto teria a vantagem de eliminar parte substancial do ruído existente no mundo. Plausivelmente, ditaria o fim das redes sociais e acabaria, inapelavelmente, com estes textos, pois um narrador sem nada para narrar tem de encontrar matéria nos assuntos que lhe são estranhos. A frase de Gentili tem, por outro lado, um inusitado efeito revelador. Em cada um de nós existe um espírito de teólogo, pois não apenas temos opinião sobre tudo, como gostamos muito de meter a foice em seara alheia, embora eu não tenha certeza se esta expressão deriva do campo dos saberes, ou se do campo erótico, ou se dos dois ao mesmo tempo. Não sei a razão, mas esta quinta-feira tem-me parecido uma segunda-feira. A luz continua anémica, tem uma falta clara de glóbulos vermelhos, o que faz com que não consiga levar oxigénio ao Sol, para este dardejar a Terra com mais vigor ou com maior poder de cintilação. De súbito, na praceta aqui em baixo, fez-se um grande silêncio, como se todo o tumulto tivesse sido engolido pela terra.

quarta-feira, 5 de outubro de 2022

Da concórdia

Num dos poemas de Ararate, Louise Glück escreve ‘De repente, depois de morreres aqueles amigos / que nunca concordaram sobre nada / concordam sobre o teu carácter’. A morte não é apenas o poder de a todos igualar, mesmo aqueles que pensam fugir ao horror da igualdade através de recurso a um jazigo, mas ainda a capacidade de criar consensos. É possível que essa concórdia nasça de cada um temer a sua própria morte, do sentimento obscuro de que poderá ser o seguinte na lista da incansável ceifeira, caso crie dissensão sobre aquele que morreu. O acordo perante a morte é uma negociação com a rainha da noite, um pedido de prolongamento do tempo de jogo. Saí há pouco. O dia fez-me lembrar o de Todos-os-Santos, pela luz esbranquiçada que pairava como uma gaivota sobre os prédios. Enquanto pensava isso, lembrei-lhe que nessa altura, os dias serão mais frios, a não ser que o S. Martinho esteja já a preparar o seu Verão. Não notei em ninguém com quem me cruzei um fervor republicano, mas, valha a verdade, não havia ninguém com cara de monárquico. Estava tudo mais preocupado em fazer compras ou ir ao café para encontrar alguém com quem dê dois dedos de conversa. Há muito que deixei de frequentar cafés, mas os cafés que em tempos frequentei morreram todos. Agora, podemos dizer que eram excelentes cafés e contar as peripécias que neles se deram. Nada os salvará, nem aos cafés, nem aos proprietários, nem aos empregados, nem mesmo aos clientes. No monte Ararat teria repousado, após o dilúvio, a arca de Noé. Um mar de sirenes fende a tranquilidade do dia. Talvez sejam os bombeiros locais a comemorar o seu aniversário.

terça-feira, 4 de outubro de 2022

A hora certa

Comecei pela clínica privada onde costumo ir. Não havia médicos de família disponíveis. Pensei que tinha a obrigação de ser bom cidadão e não ir entupir as urgências do hospital público. Telefono para o centro de saúde, talvez umas quatro vezes. Nunca me atenderam. Decido, mesmo assim, ir lá. Chego, na recepção perguntam-me o nome do médico de família. Debito um nome, embora não tivesse a certeza, só sabia que era uma rapariga nova, que terei visto uma vez por causa da pandemia, mas parece que acertei. Dizem-me para me dirigir a um balcão. Assim fiz. Explico o que se passa. Informam-me que, como não tinha consulta marcada, só poderia ir a uma consulta aberta se lá estivesse até às oito da manhã. Eram quatro da tarde. Registei que não se pode ficar doente depois das oito. O que me impressionou mais foi a quase ausência de pacientes na sala de espera e o pressentir a presença de médicos nos gabinetes. Não tive outro remédio senão a ir fazer número para a urgência do hospital público. Havia muita gente, mas fui triado rapidamente, deram-me uma pulseira com uma bolinha amarela e mandaram-me esperar numa sala pequena. Passado pouco tempo estava a ser consultado. Acabada a consulta fui injectado, esperei um tempo como na vacina da COVID, a médica que me viu tornou-me a chamar, deu-me as receitas e fui pagar num terminal em que se fala com a máquina e não com pessoas. A dor lombar que quase me tolhia o andar retrocedeu e começo a sentir-me com outra disposição. A única coisa que não compreendo é a racionalidade disto. Seria mesmo necessário ir à urgência hospitalar? Talvez tudo seja planeado milimetricamente, para que depois nas televisões se culpem os pacientes pela barafunda das urgências hospitalares. Também aprendi uma coisa. Em Portugal, esse país incapaz de planear seja o que for, até a doença tem de ser planeada. Se uma pessoa fica doente fora de horas, os serviços enlouquecem. Também a clínica privada me está a começar a irritar, parece estar a adquirir certos tiques do sistema público. Já é a segunda vez que me deixa pendurado. Por causa de coisas destas o quatro de Outubro de 1910 foi o último dia da Monarquia. Qualquer dia cai a República. Sem Monarquia nem República, ficamos com um problema de regime para nos governar, mas talvez nem necessitemos, cada um se há-de governar como puder, e toda a gente há-de ter os seus planos para ficar doente à hora certa. Não devo falar de política, mas um dia não são dias. Também não há coisa melhor do que acabar com um provérbio ao gosto popular.

segunda-feira, 3 de outubro de 2022

Sem ambição

Voltemos à trivialidade dos dias úteis. No friso das orquídeas, apenas duas se mantêm floridas. A de flores amarelas, porém, será por pouco tempo, pois as pétalas estão já murchas e não tardarão a cair. Mais vigorosas estão as flores fúchsias da outra. A questão das tonalidades é para mim um quebra-cabeças. Talvez a minha cultura em termos de cor não ultrapasse as 12 cores dos lápis usados para desenhar na escola primária. As primeiras lições são aquelas que ficam para sempre. Quando oiço a designação das cores por nomes como fúchsia (é assim que o dicionário da Porto Editora grafa, de preferência a fúcsia) ou índigo sinto estar perante uma conspiração feminina, talvez com a finalidade de mostrar a natureza primária dos homens, sempre rudimentares nas distinções e cegos para os pormenores, sempre incapazes de um suplemento de imaginação. Esta discussão, porém, pertence a um campo minado e o melhor é mudar de assunto. Esqueçamos as cores das orquídeas. Esta segunda-feira desliza timorata pelo calendário, não querendo outra coisa senão chegar à meia-noite. É um dia sem ambição, mesmo o Sol que o ilumina é turvo, as pessoas nas ruas parecem cansadas, o cão que atravessa a praceta tem ares de ter sofrido um esgotamento. Uma moto passa semeando um ruído inútil pelas ruas, os pássaros meus vizinhos desaparecerem. Ao longe, dois corvos voam entre ciprestes, uma árvore que abunda, desordenada, por aqui. No telemóvel crepitam mensagens a que não responderei.

domingo, 2 de outubro de 2022

Tempo térmico

Uma pessoa vai de fim-de-semana e nem dá que Outubro já fez a sua entrada no carrocel do ano. Entra com ganas caloríferas, o que, como é habitual considerar nestes textos, não é coisa boa. É notória a minha limitação de assuntos e há dois que se tornaram triviais. O protesto contra o calor e a lamentação, mais ou menos em forma de elegia, pela passagem do tempo. Esta noite, não seria já bem noite, mas umas seis horas da manhã, enquanto estava envolvido pelo silêncio profundo do campo alentejano, o meu organismo, contra a minha vontade, decidiu acordar e entrar em modo de insónia. Aproveitei para ler mais umas páginas de um livro do físico Carlo Rovelli e aí vejo coisas que, apesar de não as entender, também não deixaram de me espantar. Ele escreve: Todas as vezes que se produz um fenómeno que atesta a passagem do tempo, há algum calor produzido. E calor é tirar as médias de muitas variáveis. Aqui, ele fez uma pausa, isto é, fechou o parágrafo e, de seguida, abriu outro. Faltava o melhor e o melhor era o seguinte: A ideia de tempo térmico é inverter essa observação. Ou seja: em vez de tentar entender por que o tempo produz dissipação em calor, perguntar-se por que a dissipação do calor produz o tempo. Confesso que entendi cada uma das palavras e mesmo todas as frases escritas. De resto, não entendi mais nada. Ainda por cima, ele fecha esse parágrafo para falar do génio de Boltzmann. Seja como for, fiquei siderado por essa conjugação entre calor e tempo, pela dissipação do calor produzir o tempo e ainda mais pela expressão tempo térmico a qual tem toda a aparência de uma metáfora, ainda por cima sublinhada por uma aliteração em ‘t’. A física é uma ciência maravilhosa, só é pena que dela não saiba nada. Não se pense que estive o tempo todo, devido à perda de calor do meu organismo, a pensar nisto. Depois de algumas páginas de Rovelli, lá adormeci por mais uma hora e só agora, chegado a casa e sentando-me no escritório, me lembrei dessa aventura, que talvez não passe de uma aventura onírica. Não haverá coisa mais fascinante do que o tempo térmico.

sexta-feira, 30 de setembro de 2022

Falar poeticamente

É possível que nunca tenha deixado de ser o hegeliano que em tempos supus ser e que mais tarde supus deixar de ser. Não porque me ache um narrador dialéctico, preocupado com a ciência da lógica – da lógica dialéctica, entenda-se – ou com a fenomenologia do espírito e o devir da história. Se continuo a ser um hegeliano é porque não consigo perder o hábito da oração da manhã, isto é, a leitura da imprensa. Serei um moderno, num tempo pós-moderno. Ora, estava eu a ler, no Público, os textos de hoje do António Guerreiro, quando deparo, na rubrica Livro de Recitações uma referência à expressão “carnificina climática” usada pelo secretário-geral da ONU. O que me chamou a atenção não foi o que disse Guterres, mas o comentário. Diz que é uma expressão muito católica, que vê por detrás do que se está a passar uma vontade de vingança. E acrescenta: Ora, a Terra, a nossa mãe Gaia, não tem nenhuma vontade de se vingar. E conclui: Estas projecções supersticiosas desviam-nos da razão científica… Imaginemos alguém que, encolerizado e cheio de ciúmes, mata um rival amoroso. Dizer que foi uma vingança – o resultado de uma vontade de vingança – por lhe disputar o objecto do desejo será supersticioso? Por certo, podemos fazer uma descrição absolutamente científica do comportamento do assassino. Explicar como as emoções agiram sobre o seu corpo e o seu cérebro, como isso desencadeou a acção que teve aquele resultado infeliz. É plausível que se possa fazer a descrição do acontecimento sem recorrer à expressão vontade de vingança, nem tão pouco aos pretensos móbiles da acção. Utilizar a expressão vontade de vingança é falar poeticamente, usar uma metáfora para descrever aquilo que poderia ser explicado pela neurofisiologia e pela mecânica, sem lhe acrescentar qualquer tonalidade moral. Contudo, este dizer poético do que aconteceu é muito mais eficaz do que a explicação científica do sucedido. Supor que há uma carnificina climática e que a Terra se está a vingar é falar poeticamente, usando o poder evocativo da poesia para dar a entender o que se está a passar, revelá-lo nas suas consequências. Acabo a semana útil e o mês de Setembro prolixamente. Deveria escrever menos e, de preferência, melhor, mas estou um pouco atordoado por ter descoberto que talvez ainda seja um hegeliano, embora não dialéctico, caso isso seja possível. Amanhã será outro mês.

quinta-feira, 29 de setembro de 2022

Outras vidas

Hoje chegaram-me dois livros comprados online em alfarrabistas. Tenho sempre imensa curiosidade para ver se dentro deles encontro vestígios de outras vidas, com a mesma curiosidade com que os astrónomos varrem os céus à procura de sinais de vida inteligente. Fui recompensado. Num deles, Raiz Funda, de Fernanda de Castro, existem várias mensagens. Apesar de não conter data, a obra é de 1951, publicada pela Bertrand. O alfarrabista escreveu a lápis 15€ - 1ª edição. Originalmente, o livro terá sido vendido na Livraria Balzac, na Rua D. Estefânia, em Lisboa. Fiz uma pesquisa na internet e não encontrei vestígios da livraria. Deve ter desaparecido há muito. Na terceira página, a do título, encontra-se manuscrito De: (assinatura ilegível). Mais abaixo Lisboa, 26-X-1985 / Largo da Princesa. É possível que o comprador ou compradora de 1985 fosse a primeira, que o livro tenha ficado em estante mais de três dezenas de anos. Também é possível que tenha sido uma segunda aquisição. Depois, o proprietário – ou descendentes – tê-lo-á revendido, já no tempo do Euro. Entre a publicação e a chegada à minha mão demorou mais de 70 anos. O outro livro é o romance Nunca Diremos Quem Sois, de Urbano Tavares Rodrigues, publicado em 2002, pela Europa-América. Não tem nada escrito nas suas páginas, mas dentro dele traz o duplicado de uma nota de compra da Cooperativa de Consumo dos Trabalhadores da Segurança Social de Lisboa. Segundo informação manuscrita o valor do livro era de 12,90€ e devia ser descontado de uma só vez no vencimento da funcionária, cujo nome consta de forma explícita. Não tem sinais de leitura. A lombada encontra-se em perfeito estado, o que não aconteceria nestes livros da Europa-América, caso tivessem sido lidos. Interessante seria descobrir as motivações que levaram os proprietários à compra daqueles livros. Porquê um romance de Fernanda de Castro? Porquê um de Urbano Tavares Rodrigues? Também não seria desinteressante conhecer os meus motivos, mas estes são-me ainda mais ocultos do que aqueles daquelas pessoas que desconheço. Hoje é quinta-feira e o dia caminha para o crepúsculo. O azul do céu está maculado de cinza e a luz do sol traz dentro dela toda a melancolia do Outono.

quarta-feira, 28 de setembro de 2022

No Olimpo dos escritores

Quase no início do seu último romance, Tudo é Princípio, – publicado postumamente – Fernanda de Castro escreve nem ela tinha desses feitios universais que ligam bem com toda a gente. Haverá alguém detentor de um feitio universal? Talvez a realidade seja outra. Haverá pessoas que têm um talento especial de se aproximar apenas daquelas a que se podem ligar sem fricção. A repetição dessas aproximações cria a ilusão de possuírem uma capacidade para se dar com toda a gente, mas o caso é outro. Possuem um faro excepcional para detectar imbróglios e afastar-se de quem lhes criaria problemas. Para lá disso, Fernanda de Castro foi uma figura central do mundo literário português no século passado. Como aconteceu com Joaquim Paço d’Arcos, os seus compromissos políticos acabaram por lançá-la na semiobscuridade. Não penso, porém, que o seu lugar – o de ambos, diga-se – na história da literatura nacional vá depender das suas opções políticas. O decisivo vai ser a qualidade literária. A espuma da política passará e o que fica é a obra. As posições políticas, por mais detestáveis que tenham sido – e foram-no –, de Knut Hamsun e de Louis-Ferdinand Céline não constituem razão suficiente para serem banidos do Olimpo dos escritores. Como se aprendeu com a mitologia grega, os deuses estão longe de serem moralmente inatacáveis. O que os mantém os escritores no Olimpo são as obras e não as ideias políticas. Hoje em dia há uma moda de censurar, se não mesmo de banir, as obras, e as grandes e decisivas não estão imunes ao vírus, que têm laivos de inadequação moral, e a política não deixa de ter contornos morais. Uma moda detestável, que não é diferente, na substância, de pôr os livros no índex ou de os submeter à censura, instituição que em Portugal chegou a ser denominada eufemisticamente como exame prévio. Seja qual for o lado da barricada em que os escritores portugueses estiveram entre 1926 e 1974, o decisivo é o que escreveram. Se não já hoje, amanhã, por certo.

terça-feira, 27 de setembro de 2022

Apoteose e queda

Não é raro acontecer dar por mim envolvido em pensamentos inúteis, muitas vezes construídos sobre a areia de analogias frouxas. Foi o que aconteceu há pouco. Em vez de pensar sobre os males que crescem como cogumelos neste mundo – por certo, o melhor dos mundos possíveis, visto não haver outro –, o espírito começou a especular sobre o caso em que o momento de grande apoteose é já o primeiro de uma queda que se vai tornando vertiginosa. A analogia sem tino estaria em comparar a subida até ao cume da montanha e a ideia de pessoa. Atingido o ponto mais elevado da montanha, resta a descida, a queda. A ideia de dignidade da pessoa foi o instante supremo de glorificação, o cume, do ser humano. Depois, a descida. Isto veio a propósito de um curto-circuito ocorrido na minha rede neuronal entre os senhores Immanuel Kant e Robert Musil. O primeiro assinala o momento apoteótico da afirmação da dignidade da pessoa, fundada no poder que os seres racionais têm de dar fins a si mesmos. O segundo, com o romance O Homem sem Qualidades, reconhece o avanço triunfal da impessoalidade. Kant é o cume, o momento apoteótico de uma aventura que começara no Renascimento. A partir dessa hora restou a descida que parece não ter parado. Por certo, não devia pensar nestas coisas. Não tenho solução para lhes dar, e toda a gente quer soluções para tudo e para nada. Estes pensamentos, por outro lado, revelam que tenho uma alma, caso existam almas, inclinada para a ociosidade. O que não será um bom indicador de carácter. O que vale, apesar de tudo, é eu ser um narrador, uma figura ficcional, a criação de um autor com o qual tenho divergência fundas e desavenças constantes. Ainda não compreendi as razões que o levam a pôr na minha cabeça este tipo de coisas, quando me podia destinar a contar a história da criança que chora no parque infantil ou a descrever a voz da mãe, não muito feminina, que tenta consolá-la. Eu sei que aquilo que é feminino e aquilo que é masculino se tornou objecto de disputa, mas estou proibido de tocar em assuntos que tenham a política de permeio. Deo gratias!

segunda-feira, 26 de setembro de 2022

Metáforas e palimpsestos

Pudesse eu começar este texto com uma metáfora, nem teria de ser bela ou reveladora de um mistério, e tudo deslizaria melhor nesta segunda-feira, que ressuma luz branca e entediada pelos poros dessa pele agreste que cobre o corpo dos dias. Imagino, por vezes, que não passo de uma metáfora, de algo que está no lugar de qualquer outra coisa, mas nunca consigo saber que coisa é essa. Já tentei a análise da corrente de consciência e a prática activa da reminiscência, mas tudo foi em vão. Ocorre-me que cada ser humano é um palimpsesto, que cada eu só é possível porque um eu anterior foi raspado, apagado, para que uma nova reutilização dos materiais desse origem a alguém que se achará pura individualidade, um ser inédito e inigualável. Esquecemos, ou não queremos saber, que não passamos de material reciclado. Quando era novo, li bastante Camus e algum Sartre mais nauseado. Hoje penso que eles foram a placenta através da qual, naqueles dias, um certo olhar desconfiado sobre o mundo se alimentou. Tinha o dia de hoje todo programado, mas bem cedo a desprogramação cravou as garras no meu dia e aquilo que era um cosmos idealizado tornou-se um pequeno caos. Imagino que alguém dirá que a vida é isso. Será.

domingo, 25 de setembro de 2022

Indecisão do mundo

Apenas uma escaramuças em torno da tabuada de multiplicar, o resumo da interacção matemática entre avó e neta. Parece que é um problema com a rapidez do cálculo mental. Acabei por imprimir as tabuadas, para sanar o conflito. Houve promessas de as decorar, embora eu tenho uma certa propensão para o cepticismo. Livres dos assuntos escolares, entregam-se, as duas – tanto a que sabe de cor as tabuadas de multiplicar, como a que não sabe e tem aspecto de não querer saber –, à realização da sua sina de adolescentes. Riem-se de coisas que não têm graça, mas que o apurado faro humorístico pós-infantil, na versão feminina, encontra sempre causa de escárnio e, não poucas vezes, de maldizer. Não tarda, vão-se embora. Está um domingo indeciso, não sabe se há-de correr para trás, para se entregar ao sábado, se se há-de deixar deslizar para segunda-feira. Também os carros que passam sorumbáticos na avenida sofrem do mesmo mal. Levam famílias que aspiram tanto à irresponsabilidade dos sábados, quanto à liberdade dos dias úteis, onde podem suspender por largas horas o convívio. Consolam-me, perante a indecisão do mundo, as palavras de Schopenhauer: Também toda a nossa existência, no conjunto e no detalhe, traz a marca da coacção: cada indivíduo é preguiçoso no fundo do coração e aspira ao repouso; mas é forçado a avançar, como o planeta em que habita, em que a força que o impele para diante impede-o de cair sobre o Sol. Somos forçados a avançar por uma força que não controlamos. Tomado como boa a analogia schopenhaueriana, avançamos para retornar ao mesmo sítio, que é aquilo que acontece à Terra. Não será bem ao mesmo sítio, pois o sistema solar também se deslocará com a galáxia a que pertence, mas ao mesmo sítio relativo. Talvez melhor fora que nos déssemos ao repouso, tal como ordena aquilo que habita no fundo do nosso coração, que é o sítio onde se encontra o melhor que há em nós, diz-se.

sábado, 24 de setembro de 2022

A força das coisas

Depois de uma longa conversa telefónica com um amigo, sentei-me e peguei numa colectânea de ensaios do poeta e Nobel da Literatura Czeslaw Milosz, publicada pela Cavalo de Ferro, com o título A Minha Intenção. Num dos ensaios, “Contra a Poesia Incompreensível”, em oposição à poesia fechada na subjectividade do poeta, o autor diz-nos que o poeta Zen aconselha-nos a conhecer um pinheiro observando um pinheiro, a conhecer o bambu observando o bambu. A questão que se me colocou, de imediato, foi se nós temos ainda força suficiente para suster o olhar diante de um pinheiro ou de um bambu. Duvido mesmo que tenhamos força para olhar de frente e sustentar esse olhar perante um artefacto tão trivial como um banco, um daqueles bancos de madeira, quase toscos, que havia pelas casas das aldeias. A força das coisas é de tal ordem que não conseguimos segurar o olhar diante delas. Como quando dois olhares de intensidades diferentes se chocam, um deles, o mais fraco, acaba por se inclinar para terra, também os nossos olhos são incapazes de enfrentar a oliveira, a roseira, as canas num canavial. Talvez isto não seja sequer uma questão ocidental, pois o poeta Zen para conseguir olhar o pinheiro ou o bambu necessitou de um longo e severo treino. A nossa incapacidade poética de olhar com demora as coisas dever-se-á à falta de treino, mas também ao modo como elas são consideradas no nosso mundo. A oliveira é observada pela sua potencialidade de dar azeitonas e azeite, a roseira pelas rosas que hão-de enfeitar as nossas casas ou serem um complemento de uma estratégia de sedução amorosa, as canas pelo potencial negativo de ocuparem um terreno útil. Pressente-se que na incapacidade de olhar as coisas no que elas são manifesta-se uma vergonha, sempre dissimulada, pelo modo como consideramos aquilo que nos rodeia, como se estivesse aí para nossa satisfação. Dito de outro modo, manifesta-se a má consciência. Afirmação que tem um corolário questionável. Toda essa poesia que se centra na peculiaridade do próprio poeta, travestida de subjectividade poética, seria uma poesia da má consciência. Retomando o ensaio de Milosz, leio uma citação de W. A. Auden sobre aquilo que a poesia pode fazer. Depois de elencar várias dessas coisas, o poeta conclui deve, sempre que possível, louvar as coisas porque são e porque acontecem. Teremos perdido à arte do louvor. Restou-nos a inveja e a técnica da adulação.  

sexta-feira, 23 de setembro de 2022

Da vaidade

O parque infantil, agora que a tarde começa a declinar, encheu-se de gritos. Por vezes, ouvem-se vozes de adultos ou o ladrar de um cão. A vida passa indiferente à chegada do Outono. Nem as árvores dão mostras de estarem a sofrer uma metamorfose que as amarelecerá inexoravelmente, não sem antes as elevar ao esplendor e à glória, quando adquirirem os tons acobreados com que hão-de seduzir os transeuntes. As árvores também sofrem de vaidade, mas isto é apenas uma mera conjectura à espera de refutação. Será que a vaidade, numa árvore, é pecado? Para analisar este ponderoso tema, haveria que seguir o conselho de Tomás de Aquino, dado no De malo. Segundo o doutor da Igreja, há que examinar em primeiro lugar o que é a glória e, depois, a vaidade. Só no fim deste caminho se pode decidir se a última é ou não pecado. Deixemos essa espinhosa análise de lado e concentremo-nos nas filhas da vaidade – ou, no caso das árvores, nos seus frutos – a desobediência, a jactância, a hipocrisia, a contenda, a pertinácia, a discórdia e a presunção de novidades. De todos estes rebentos, o que me atormenta mais é a presunção de novidades. Não basta que alguém seja presunçoso, ainda por cima faz-se de novas e não há, para um narrador exausto, coisa pior que as novidades. Imagino que os frutos das árvores sejam o resultado da sua vaidade, na modalidade de presunção de novidades. Isto é tolerável num vegetal, mas num ser humano é cansativo. Não há pior fauna do que a daqueles que se presumem inovadores, pois não inovam coisa nenhuma e presumem em excesso. Acho que me perdi no caminho. Queria escrever sobre outro assunto, mas esqueci-me qual era. Estou à espera das minhas netas, ao menos haverá animação.

quinta-feira, 22 de setembro de 2022

O meu cérebro

Despeço-me da casa do Verão. Como sempre, não terei saudades dos seus dias. Amanhã chegará o Outono, onde tudo será mais belo e mais cordato, assim o desejo ou assim o espero. Entre o desejo e a esperança há uma grande diferença. No primeiro, ressoa a necessidade. É uma emanação da fisiologia. Na segunda, há uma confiança de a ordem do mundo se conformar com uma certa razoabilidade. Não é relevante saber se essa ordem do mundo deriva de um criador divino ou se é inerente à própria natureza. Na esperança, ressoa sempre a razão ou, melhor, a crença de que Deus ou a natureza, conforme as inclinações de cada um, sejam intrinsecamente razoáveis. O problema de tudo isto é que muitas vezes contaminamos a esperança com os nossos desejos e somos nós que introduzimos a desrazão no mundo e naquilo que esperamos. Outra dificuldade será não tanto que Deus ou a natureza sejam irrazoáveis, mas que a sua razão seja de tal modo complexa que não compreendamos os seus decretos e os pensemos irracionais. Ontem escrevi aqui Boris Vien e um leitor atento lembrou, e muito bem, que o nome é Vian e não Vien. O nosso cérebro prega-nos belas partidas. Não se trata tanto de uma ratoeira estendida pela homofonia, pelo menos é isso que parece a um português, mas o simples facto de Boris Vian não ser um autor a que tenha dado atenção. Fui procurar nas estantes e dele só encontrei Outono em Pequim, que sendo cá de casa não é meu. E o que terei lido desse autor francês? Nada, disso tenho a certeza. Ao citar o título Espuma dos dias, o cérebro vingou-se, estendeu-me uma armadilha e fez-me trocar o nome. Pode parecer que estou a operar uma distinção entre mim, o narrador sem narrativa, e o meu cérebro, acusando este pela falha ocorrida. É provável que assim seja. Na pilha de livros que tenho aqui ao lado para ler, há um, do filósofo alemão Markus Gabriel, que tem por título I am Not a Brain: Philosophy of Mind for the 21st Century. Se ele não é um cérebro, eu também não o sou. Aquele que recebi na lotaria genética tem propriedades que me aborrecem. Por exemplo, é demasiado lento quando tenho pressa em raciocinar ou apreender alguma coisa, demasiado rápido quando preciso de descansar e ele produz ideias atoleimadas a grande velocidade. Por outro lado, está sempre a pregar-me partidas, como a do Vien. Vivo no terror de ser por ele enganado em coisas mais gravosas que essa. Já reparei que tem imenso prazer em trocar-me os dedos quando estes batem no teclado ou, então, em fundir duas palavras numa só. Uma outra característica é ser prolixo. Apesar de tudo há coisas que nos unem. Nem ele nem eu gostamos do Verão e ambos somos cultores dos tempos de Outono, não o de Pequim, mas o de cá, quando não faz calor. Não podemos ser inimigos em tudo.

quarta-feira, 21 de setembro de 2022

Tagarelice

Mantenho o velho hábito de todos os dias passar com os olhos pela imprensa. Ao fim destas décadas todas de prática, o que tenho a dizer? Aquilo que toda a gente sabe. A imprensa trata da espuma dos dias, para usar, sem atender aos direitos autorais, o título de uma obra de Boris Vien. Ora, naquilo que vem na babugem há coisas que, apesar de se apresentarem com grande inflamação, acabarão por passar e não mais serão lembradas. Outras, porém, sendo discretas, quase não notadas, poderão ser um sinal da mudança no espírito do mundo, embora só sejam reconhecidas como tal muito depois. Em resumo, manter-se informado significa dar atenção ao que tem importância nula e não perceber aquilo que é um sintoma decisivo de uma nova realidade. Nem sempre é assim, mas quase. Esse interesse pelo jornal diário – agora nas novas versões da rede que nos liga a todos – não será mais do que a satisfação da necessidade de encontrar assunto para alimentar aquilo que os franceses denominam de bavardage. Precisamos de matéria para alimentar a nossa tagarelice quotidiana. Quando Hegel se lembrou de dizer que a leitura dos jornais é a oração matinal do homem moderno, não antecipou o que vinha aí. E aquilo que veio foi a queda na tagarelice. Um telejornal não é mais que um exercício de tagarelas. Uma prova do niilismo que se apoderou da nossa sociedade. Nem sei o que me deu para falar disto. O calor tem um efeito nefasto em mim, produz conexões neuronais que levam a este tipo de coisas. Amanhã será outro dia.

terça-feira, 20 de setembro de 2022

Duplas negações

Os piores profetas são os da meteorologia. Ainda ontem profetizaram para aqui três dias de chuva, a começar hoje. Perderam o contacto com o deus do clima ou não têm feito as devoções devidas a S. Pedro. Resultado? Falência completa das previsões. Está um calor de ananases, um sol radiante e chuva, nem vê-la. Quando era pequeno sempre me intrigou a atenção que os mais velhos, isto é, gente do tempo dos meus avós, dedicavam à audição do boletim meteorológico. Mal sabia eu que quando chegasse à idade deles lhes copiaria a inclinação. Também é verdade que aprendi há muito, não sei onde nem com quem, que quando não se tem assunto de conversa, se deve falar do tempo. É o que eu faço. Deve-se evitar expressões como está a escachar, é de rachar, mesmo está de ananases. Pelo menos, no tempo de Eça de Queirós, não seria o modo mais civilizado de falar do tempo, mas era o que ocorria a algumas das suas personagens. Há pouco li um interessante artigo sobre aquela ideia tonta de que a expressão não há nada é um erro. Esta ideia de erro terá nascido de interpretação da língua em termos lógicos. Teríamos aqui uma dupla negação, o que era equivalente a uma afirmação. O pobre do falante queria negar a existência, mas devido à sua inépcia linguística acabava por afirmá-la. O autor, pacientemente, explica por que isto é um disparate. Cheguei a conhecer pessoas cujo desejo intelectual era eliminar a equivocidade da língua, para que esta denotasse, de forma bacteriologicamente pura, a realidade. Isto significa apenas que muitas vezes conhecemos pessoas que não são recomendáveis. O que torna as línguas interessantes não é serem uma emanação directa da lógica, que não são, mas possuírem uma lógica própria feita de múltiplos e aparentes ilogicismos, tal como é feito o pensamento e a fala das pessoas que usam a língua. Agora, vou beber água, pois não há nada melhor do que matar a sede quando se está sequioso.

segunda-feira, 19 de setembro de 2022

Coração simples

Está um calor esponjoso. Choveu de manhã, um pouco, mas logo os trabalhadores que, no mundo supraterrestre, têm a missão de regar este pobre planeta entraram em greve, sem que um sindicato celeste tenha apresentado um pré-aviso. Uma greve selvagem. Agora, não se sabe por quanto tempo não cairá abundante água das imperecíveis fontes celestiais. Dizia que estava um calor esponjoso e não pegajoso, pois é um calor que nos absorve, que nos consome até às últimas fibras intersticiais. Entrei no reino da hipérbole, que é sempre uma forma de compensação da pequenez que sinto perante a inevitabilidade dos decretos da natureza. Poder-se-ia, talvez com não pouco proveito, discutir se a natureza possui ou não livre-arbítrio, se os seus decretos obedecem a leis imutáveis ou, pelo contrário, nascem de uma vontade livre que a habita. Haveria logo algum argumentador a dizer que a natureza é destituída de vontade, que ninguém provou que ela a tenha e que eu além de sofrer de inclinação hiperbólica, também sofro de alucinações. Em minha defesa, poderia argumentar que o facto de ninguém ter provado que a natureza possui uma vontade, isso não significa que ela não a tenha. Esse argumentador cairia na esparrela da falácia do argumentum ad ignorantiam. Depois, poderia continuar afirmando que o facto de as células de um ser vivo a certa altura descarrilarem e começarem a multiplicar-se sem medida pode ser um sintoma de a natureza possuir uma vontade própria. Aqui, porém, seria acusado de adepto mal disfarçado da teleologia, capaz de acreditar num provérbio antigo, talvez sumério, que diz que não é porque duas nuvens se aproximam que há o trovão, mas aproximam-se para que haja o trovão. É evidente que as explicações sobre raios e trovões são mais complexas do que deixa perceber o belo provérbio, mas eu hoje acordei com um coração simples e voltado para as coisas simples, e uma vez por outra não me importo de ser um advogado da mais maltratada das quatro causas do velho Aristóteles.

domingo, 18 de setembro de 2022

Evocações

Sobre as acácias da praceta cai uma luz inflamada, vestida de branco, como se fora uma noiva ansiosa pelo altar. Acolhem-na as folhas, tomadas pelo verde, ainda sem a mácula amarela que o Outono trará para anunciar o Inverno. Ninguém se aventura na rua, ninguém pára para conversar à sombra das árvores. Ao domingo, as pessoas almoçam mais tarde, ficam à mesa a conversar, enquanto bem café. Sair, só quando a temperatura baixar. Então, haverá criançada a gritar no parque infantil, enquanto os pais abrem a alma uns aos outros, não a alma verdadeira, mas aquela que eles imaginam ter. A não ser que a profecia da aplicação meteorológica que me guia os passos se cumpra e chova. Há dias, o mais verdadeiro seria dizer há noites, sonhei que tinha rebentado uma guerra por cá, uma guerra civil. Ora, nunca me lembro de sonhar, mas este sonho não se apagou, a imagem dos soldados a combater continua viva, bem como a minha preocupação com a protecção da família, dos netos em primeiro lugar. De onde terão vindo estas imagens tão límpidas, não faço ideia, mas a maior parte das coisas acontecem sem que saibamos as suas razões. Quando acordei, fiquei aliviado por um sonho não passar de um sonho, mesmo que a realidade não seja aquela que se deseja para o melhor dos mundos possíveis, aquele que traria a maior das felicidades para a humanidade. Embora, sobre esta se deva dizer aquilo que um poeta meu amigo escreveu: a humanidade verdade / seja dita só aparece / quando se evoca // (…)

sábado, 17 de setembro de 2022

Vulcões extintos

O meu primeiro contacto com ela, a escritora austríaca Ingeborg Bachmann, foi através de uma recolha de poemas a que foi dado o magnífico título de O Tempo Aprazado, nome de um dos livros da autora. Foi amor à primeira vista. Li tantas vezes aquela pequena edição bilingue, da responsabilidade de João Barrento e Judite Berkemeier, que as páginas se soltaram uma a uma. Ingeborg Bachmann nasceu em 1926 e morreu em 1973. Conheci-a bem depois de estar morta, mas não é possível uma pessoa não se apaixonar quando lê poemas que, mesmo depois de traduzidos, ainda ficam assim: Para onde quer que nos voltemos na tempestade de rosas, / a noite ilumina-se de espinhos, e o trovão / da folhagem, antes tão leve nos arbustos, / segue-nos agora de perto. // Onde quer que se apague o incêndio das rosas, / a chuva inunda-nos o rio. Oh, noite tão distante! / Mas uma folha que nos encontrou é levada pelas ondas / e segue-nos até à foz. Ou então a sonoridade alemã da primeira quadra do poema ‘Fall ab, Herz’: Fall ab, Herz, vom Baum der Zeit / fallt, ihr Blätter, aus den erkalteten Ästen / die einst die Sonne umarmt’ / fallt, wie Tränen fallen aus dem geweiteten Aug! Li todos estes poemas em alemão, sem compreender a generalidade das palavras, li-os a meia voz, tentando aproximar-me da sonoridade germânica, deixando-me envolver pela musicalidade que desse alemão, por certo mal pronunciado, se desprendia. Tudo isto era possível porque a poesia antes de ser sentido é som, música. A poesia é música que adquire sentido. Depois, há a beleza desse primeiro verso que em português fica assim: Desprende-te, coração, da árvore do tempo. Tudo isto vem a propósito de ter comprado, há pouco, Malina um romance de Ingeborg Bachmann, publicado em português, em Junho deste ano, pela Antígona. Esta editora, com o seu catálogo, entrou para o top três das minhas editoras preferidas. Além dela, estão a Cavalo de Ferro e a Relógio d’Água. Para acabar a minha diatribe, os três primeiros versos do poema ‘Canções de uma Ilha’: Tombam frutos de sombra das paredes, / o luar caia a casa, e o vento / que vem do mar traz cinzas de vulcões extintos. É o que todos somos, vulcões extintos.