sexta-feira, 31 de março de 2023

A morte do trema

Não estando em casa, o homem dos CTT – ou seria uma mulher? – deixou dois postais para ir levantar duas encomendas ao posto de correio, que, por acaso, não é um posto de correio, mas uma grande superfície que vende jornais, livros, material de escritório, brinquedos, tabaco e oferece, desde que pagos, serviços de reprografia, onde se inclui a impressão de fotografias. Também oferece serviços de correio, o que para mim é um sinal de que este é o melhor dos mundos possíveis, pois vou de casa lá a pé, em dois ou três minutos. Hoje decidi ir levantar as encomendas, aproveitando a saga para me banquetear com um salgado que apesar de saber bem, há-de fazer mal. As encomendas eram, como não podia deixar de ser, livros. Talvez inclinado pelas leituras de Jon Fosse – agora, vou a meio de Trilogia –, de Karl Ove Knausgård e, acima de todos, de Knut Hamsun, comprei, num alfarrabista, a trilogia da nobel norueguesa, ou dano-norueguesa, Sigrid Undset, Cristina Lavransdatter, que é como quem diz Kristin filha de Lavrans. A edição portuguesa não será propriamente uma tradução do norueguês, mas uma versão feita de uma língua dominada pela tradutora Maria Franco, imagino. A outra encomenda era constituída por um livro editado pelo jornal Público, na sua Biblioteca da Censura. Os livros reproduzem a edição censurada e contêm o fac-simile do despacho do censor, no caso um capitão. O romance, datado de 1948, é de um autor que desconhecia por completo, Orlando Gonçalves, e tem por título, o romance e não o autor, Tormenta. As considerações para proibir o livro são fastidiosamente ideológicas, embora, desconfio, também corporativos, pois o capitão não terá gostado de umas referências aos militares. No entanto, o texto começa em modo de crítica literária, embora hesitante: Este livro, tentando ser um romance, nem sequer isso atingiu, embora quanto à sua qualificação literária eu nada tenha com isso. Estamos perante um censor militar que, imagino, teria gostado de ser um crítico, mas o curso da Academia Militar, caso ele tenha frequentado algum, não fora suficiente para ter alguma coisa que ver com a qualificação literária de uma obra, embora lhe fornecesse faculdades para a vigilância textual e uma técnica hermenêutica para a descoberta da subversão e da imoralidade. Seria, note-se, um censor dedicado e trabalhador. Como tudo está registado, ou não estivéssemos em Portugal, o livro foi-lhe distribuído para leitura a 12/10/1948 e o despacho exarado a 15/10/1948. A Direcção dos Serviços de Censura apôs-lhe o respectivo carimbo vermelho onde se podia ler em capitulares: POÏBIDO. Fiquei a olhar para o trema e como ele poderia ainda ter utilidade na nossa língua, não para declinar o que é PROÏBIDO, mas tornar as palavras mais belas. O trema, infeliz sinal gráfico, teve uma história triste em Portugal, no século XX. Ele que existia pomposo, foi substituído em 1911, por recomendação de Gonçalves Viana, por acento grave. Em 1920, houve uma recidiva estética e o trema voltou garboso. Porém, em 1945, os dois pontos que decoravam certas vogais foram objecto de supressão legal nas palavras portuguesas e nas aportuguesadas, o que mostra que a própria censura se estava nas tintas para a lei. Foi a morte do trema.

quinta-feira, 30 de março de 2023

Citações

Talvez ninguém leia Somerset Maugham, eu não o faço, embora tenha alguns livros dele. Há muito tempo, contudo, li O Fio da Navalha, que me deixou bastante impressionado, mas perdi o rasto a esse livro publicado pela gloriosa editora Edições Livros do Brasil. Mais tarde, tornei a comprar a obra, numa edição da ASA. Não voltei a ler o romance e não sei já o que me terá impressionado nesse tempo tão longínquo. Talvez fosse excessivamente impressionável, embora não seja essa imagem que cultivei de mim. Peguei, há instantes, em Mrs. Craddock, que nunca li, e abri a obra ao acaso, como muitas vezes faço. Li, na página 227, início do capítulo XXV, o seguinte: Se os deuses, que espalham a inteligência nos lugares mais inesperados – é encontrada, às vezes, sob a mitra de um bispo e, de milénio a milénio, na cabeça de um rei –, houvessem concedido a Edward Craddock um pouco desse precioso artigo, talvez ele fosse um grande homem, além de ser um homem bom. Imagino que seja de equacionar uma visita ao universo de Maugham. Talvez os deuses tenham sido tão avaros comigo quanto com Edward Craddock, e seja, como ele, um pequeno homem, embora, duvido que de mim se possa dizer que sou um homem bom. O que me entristece, reconheço, mas nem a bondade nem a maldade fazem parte do meu lote, daquilo que me calhou. Enfim, do mal o menos, a aurea mediocritas é melhor que nada. Leio mais uma passagem: Enquanto isso, Edward, alheio ao que estava sucedendo, assemelhava-se a um louco que, num hospício, exercesse poder monárquico sobre um reino imaginário. Não se dava conta da maneira desdenhosa como Bertha (a mulher) o tratava; notava, isso sim, que ela já não era tão exigente, e isso tornava-o feliz como nunca. Quer dizer: o casamento só se tornou plenamente satisfatório para Edward quando Bertha começou a perder a estima por ele, assunto que certamente interessaria a um filósofo irónico, disposto a tirar conclusões de fundo moral. Por hoje, chega de citações.

quarta-feira, 29 de março de 2023

Uma feira moribunda

Por aqui, há uma feira criada no século XVI, mas que está moribunda há décadas. Arrasta-se de lugar para lugar, sem que se vislumbre o que fazer com o acontecimento. É uma daquelas feiras com carrocéis, carros de choque, farturas, música estridente e poeira. Quando era pequeno e adolescente, ela estava mais viva. Teria poço da morte, por exemplo, o que parece uma contradição, mas não é, pois, como se sabe, onde há vida há morte. Uma feira que tinha um poço da morte estava bem mais viva do que aquela que não o tem. Não era, porém, o poço que me atraía ou a parafernália de máquinas voadoras, chocadoras, volteadoras, mas coisas bem mais simples, como bolas de serradura cobertas por papel de estanho, presas a um elástico, jogos de futebol miniatura, dentro de uma caixa redonda de metal, com um espelho no fundo, um vidro no cimo e dentro dela, desenhado num cartão, um campo de futebol, com duas pequenas balizas em metal e uma micro bola que se tentava fazer entrar na baliza. Também me fascinavam as inúmeras mesas de matraquilhos, onde havia uma pluralidade de equipas e não apenas as inevitáveis formações do Benfica e do Sporting. Havia muitas outras coisas inúteis, mas que ao serem compradas se tornavam úteis para quem as vendia. Hoje passei ao lado do recinto onde, neste ano, a velha feira suporta a sua agonia, e achei tudo aquilo triste, embora não faltasse poeira e música estridente. Se por cá estivessem os netos, haveria de os levar lá, mas por motivos egoístas, só para ver se ainda havia aquelas coisas que me fascinavam. Eles não estão cá e não tenho desculpa a dar a mim mesmo para me obrigar a enfrentar a poeira e comer uma fartura. Hélas.

terça-feira, 28 de março de 2023

Beber água

Em cima da secretária, tenho uma garrafa de vidro de meio litro quase cheia de água. Trouxe-a para ir bebericando enquanto estou sentado. O nível da água não desce há dias. Consta que se deve beber uma quantidade de água razoável – ouvi dizer entre litro e meio e dois litros – todos os dias. Reconheço que é um exercício difícil. Há dias li um comentário sobre a ideia de que beber água com gengibre ajuda emagrecer. Como de costume, o comentarista dizia que não há qualquer evidência de que isso seja verdade, mas se a pessoa, assim motivada, beber água, então algum benefício terá. Um comentário idêntico também já foi feito para outra receita para emagrecimento fácil, beber água com limão. Estas histórias dietéticas tornam manifestas duas coisas. Em primeiro lugar, o homem antes de ser um animal racional é um animal mitológico, cria mitos como quem bebe água, o que para mim não é fácil, mas também não tenho nenhuma criação de mitos. Em segundo lugar, o homem crê mais facilmente nos produtos da imaginação delirante do que nos factos. Imagino que a causa resida nos factos serem rebarbativos. Esta é uma palavra horrível e que significa, literalmente, que tem duas barbas. No sentido figurado, porém, significa rude. Os factos transportam consigo não uma dupla barba, mas uma rudeza difícil de suportar. Um facto que eu tenho dificuldade em suportar é o da necessidade de beber água. Acabei de tirar a rolha à garrafa e vou beber meia garrafa. É um objectivo para os próximos minutos. Uma aventura que daria uma epopeia.

segunda-feira, 27 de março de 2023

Uma desadequação culpada

Ainda Março não acabou e já há por aqui temperaturas estivais. Na verdade, esta afirmação é um exagero, pois temperaturas estivais, neste lugar abandonado pelo anjo dos climas temperados, são bem acima dos trinta graus, ali pela casa dos quarenta. Hoje, ao atravessar a estrada na avenida, talvez um efeito do sol, tive a sensação de que há em mim – em todos os seres humanos, por certo – uma desadequação à existência, a percepção de uma falta qualquer e inexplicável, que deixa um rasto de desconforto, também ele difuso. Esta experiência, imagino, terá levado à criação da ideia de pecado original. Uma vivência arcaica na história da espécie, na qual se manifestava uma desadequação qualquer que se reflectia num desconforto existencial e sem razão aparente, terá originado a ideia de uma falta metafísica que caiu sobre a humanidade. Uma explicação residiria em afirmar que essa experiência se funda na nossa finitude e esta se manifesta como culpabilidade. Não por acaso, um certo filósofo francês escreveu uma obra com esse título, Finitude et Culpabilité. Finitude e mortalidade não são a mesma coisa. A finitude é muito mais devastadora do que a mortalidade. Esta é apenas uma das dimensões daquela. Não somos finitos apenas porque morreremos, mas porque muitas são as limitações com que o nosso desejo se confronta, esse desejo que é infinito, seja qual for o objecto que ele deseje. Ocorre-me, neste momento, que estou sem assunto digno de escrita. A única aventura que tive foi ir às compras, mas nem aí encontrei tema para epopeia e muito menos para tragédia. Um drama, a falta de motivos narrativos e a subida das temperaturas. Reconheço que estão a tornar-se cansativos os topoi da ausência de motivo e da subida das temperaturas, mas para além da hipérbole também a iteração faz parte dos utensílios deste narrador.

domingo, 26 de março de 2023

Um génio mordaz

Está consumada a mudança da hora para horário de Verão. A partir daqui tenho o direito de me queixar da astenia da Primavera, que, afinal, não é provocada pela pobre estação do ano, mas pela alteração da hora. Bem, está assinalada a efeméride. O dia não me parece particularmente satisfeito. Vejo-o parcialmente ensolarado, visão que confirmo na aplicação meteorológica que a Microsoft, no exercício da sua ampla generosidade, me prodigaliza. Aquilo que vejo, está confirmado, é a verdade e não uma qualquer manipulação da minha mente por seres extraterrestres que a tomaram de assalto para produzirem estados mentais que eu tomo como se fossem verdadeiros. Esta história dos extraterrestres é uma actualização de última hora do Malin Génie, de Monsieur René Descartes. As traduções portuguesas optam por Génio Maligno. Contudo, Malin pode traduzir-se também por astucioso, o que daria Génio Astucioso. Ora, astucioso por astucioso, já temos o Ulisses. Outra possibilidade seria a de traduzir malin por mordaz. É a minha preferida. O Malin Génie cartesiano não passaria de um Génio Mordaz, um diabrete brincalhão que nos engana a toda a hora, apenas para gozar com a nossa cara. É evidente que Descartes é uma pessoa muito mais séria do que este narrador e não criou o Malin Génie como exercício satírico. Ele levava a Filosofia a sério, talvez se risse pouco, mas não lhe conheço a biografia, embora possa adiantar alguns mexericos sempre úteis. Julgo que não se casou, estes homens tinham pouca inclinação para o matrimónio, mas foi pai de uma menina nascida do ventre de uma empregada doméstica, de uma serviçal, como li. O pobre morreu em Estocolmo, de pneumonia. Antes de ter ido para a Suécia, Descartes trabalhava na cama até ao meio-dia. Na Suécia, a rainha Cristina exigia-lhe aulas às 5 da manhã. Preferiu morrer. Podemos também pensar que a rainha Cristina era uma encarnação do Malin Génie. Esta é uma hipótese que nunca vi trabalhada, mas deveria merecer a atenção dos mais eruditos estudiosos do pensador francês. Como se prova, a mudança horária afecta não apenas o horário ou a forma física, mas a relação com a realidade.

sábado, 25 de março de 2023

Linha recta

Há um momento espantoso em que Hannah Arendt, ao referir-se aos gregos antigos, esse lugar que nunca se pode evitar, dá uma definição de um rigor inultrapassável da condição humana. Escreve: É isto a mortalidade: mover-se ao longo de uma linha recta num universo em que tudo o que se move o faz num sentido cíclico. Trata-se assim de uma questão de geometria. As coisas imortais movem-se circularmente, submetidas a um eterno retorno do mesmo. A vida dos homens, os únicos seres mortais ao cimo da Terra, desenrola-se em linha recta, a que une o nascimento à morte. As espécies animais, essas são imortais, pensavam os gregos, pois cada uma é um corpo único que se renova a cada nascimento. A espécie humana é uma inexistência, pois o facto de cada ser humano ser dotado da consciência da sua individualidade rompe a ideia de um corpo que se renova pelo nascimento. Pelo contrário, cada nascimento é um acontecimento singular. O corte do cordão umbilical é o momento em que o recém-nascido se torna indivíduo desligado da espécie, alguém que passa a ter não apenas uma vida, mas um destino. As espécies não humanas, vegetais ou animais, têm vida, que se realiza no ciclo do eterno retorno. Os seres humanos têm uma destinação, pois, ao ser-lhes cortado o cordão que os ligava à mãe, são expulsos do eterno retorno e colocados na estrada que os conduzirá à morte. A destinação não é propriamente a morte, mas a realização do caminho pela estrada que lhe é posta em frente ou, no caso dos mais talentosos, que inventam para chegar ao fim. Por falar em estrada, há um livro, belo e terrível com o nome A Estrada. É seu autor Cormac McCarthy. Li-o quando foi publicado em Portugal, mas duvido que me apeteça voltar a ele. Talvez me tenha tornado incapaz de suportar uma obra em que o terrível excede largamente a enorme beleza que o compõe. Não é claro, todavia, que um dia não mude de opinião e de sentimento, e que volte a essa obra. Na verdade, ela é uma alegoria poderosa daquilo que Hannah Arendt escreve sobre o mover-se em linha recta, por sinuosa que esta seja, o que nos recoloca dentro da geometria, de uma geometria especial, em que a recta é composta por numerosas curvas.

sexta-feira, 24 de março de 2023

Provérbios e máximas

Março marçagão, manhãs de Inverno e tardes de Verão. Sempre que estou em apuros, recorro à minha colecção de frases feitas, lugares-comuns, provérbios ao gosto popular. Enfim, apelo à sabedoria do senso comum. Esta não apenas é tranquilizadora, como é, na verdade, sábia, contrariamente a muitas outras sabedorias que nada têm de sábias. Saí de casa, hoje de manhã, e chovia. De tal maneira que tive de usar um guarda-chuva. Céu cinzento, paisagem urbana soturna, gente com um aspecto quase lúgubre. Há pouco, na rua, perante a inclemência do sol, tive de acomodar as vestes ao fulgor estival. O céu tornou-se azul cintilante, a paisagem urbana era um revérbero, as gentes pareciam irradiar energia e um contentamento inexplicável. Como justificar isto sem recorrer a um ditado? Impossível. Por outro lado, tenho provas inescapáveis da minha proverbial estupidez, para falar claro. Irritei-me com um browser que me permitia aceder à internet. Estava apostado em não querer fazer aquilo para que fora feito. Não estou com meias medidas e, num gesto radical e hiperbólico, destituído de cuidado e sensatez, longe da justa medida por aqui apregoada, desinstalo-o. Vitória, pensei na altura. Derrota, penso agora. Ao suprimi-lo para o tornar a instalar apaguei todos os meus marcadores, aqueles que me permitiam aceder sem trabalho a lugares por onde fazia turismo. Conforta-me a frase de Thomas Carlyle: Com estupidez e boa digestão o homem pode enfrentar muita coisa. Embora, não se aplique completamente a mim, pois nem sempre as digestões são boas. A outra condição, essa está assegurada, pois contra a estupidez os próprios deuses lutam em vão, como escreveu um dia Friedrich Schiller. Seja como for, noto em mim uma tendência evolutiva. Parece que estou a transitar dos provérbios ao gosto popular para máximas cultas criadas pelo génio daqueles infelizes a quem estupidez foi poupada e que se encontram, as máximas e não os infelizes, ao deus-dará pela internet.

quinta-feira, 23 de março de 2023

Ressurreição

No diálogo Fedro, Platão, através da personagem Sócrates, lança um violento ataque à escrita. Este exercício hiperbólico, ao qual são dadas razões filosóficas, pedagógicas e conviviais, não evitou que Platão tenha construído uma obra escrita também ela hiperbólica. O artefacto hipérbole é usado para referir a dúvida cartesiana, ficando Platão adstrito ao ramo retórico da alegoria e do mito. E se toda a obra platónica não fosse mais do que um exercício hiperbólico? Faria sentido. A hipérbole é um dispositivo da família do microscópio, serve para aumentar a realidade e é nesse processo de a exagerar que talvez ela se deixe vislumbrar. A ideia platónica de que a escrita é um registo morto não resiste, todavia, ao choque com a existência de pautas musicais. Também estas são constituídas por símbolos e compõem um todo que parece morto, mas quem as sabe ler encontra nelas a vida ou, melhor, encontra nelas múltiplas vidas. Também o texto escrito está submetido à ressurreição através da leitura. Toda a vez que se lê um texto este tem o seu domingo de Páscoa. Talvez faltasse a Platão o conceito de ressurreição para perceber a natureza da escrita, mas, por certo, alguma coisa nele lhe sussurrava para que escrevesse sem parar, pois os seus textos, apesar de residirem em mausoléus, acabariam, a cada leitura, por libertar-se da morte e ressuscitar na consciência do leitor. O diálogo vivo entre pessoas vivas, que seria superior à escrita, é agora substituído pelo exercício taumatúrgico do leitor, que opera o milagre da ressurreição daquilo que jaz morto, mas não apodrece.

quarta-feira, 22 de março de 2023

Uma questão de QI

As fases da vida. Uma sabedoria popular alimenta a crença numa vida repartida por fases, uma espécie de etapas de um Tour que liga o nascimento à morte. Cada uma dessas fases terá as suas características e exigirá um modo específico de existência, com os respectivos deveres e direitos. Como não me apetece arguir, aceito a descrição e faço – pelo menos, por hoje – minha essa crença. Interrogo-me, então, que etapa é esta em que estou. Sento-me aqui e adormeço, cabeça tombada para a frente, queixo encostado ao peito. Tudo isto para acordar com uma dor no pescoço e uma sensação de inutilidade. Que direitos e deveres me caberão nesta fase? Antes de adormecer, estava a dar uma vista de olhos por um livro. Lia o seguinte: Mas tens olhado para a tua volta com olhos de ver, nestes últimos tempos? Creio que saberás até que ponto é burra uma pessoa com um QI de cem. / Western encarou-o com ar desconfiado. Acho que sim, disse. / Pois bem, metade das pessoas são mais burras do que isso. Onde é que achas que tudo isto vai parar? / Não faço ideia. Eis uma boa resposta: não faço ideia. É a resposta que encontrar para múltiplas perguntas que me faço, entre elas a da razão por que, nesta etapa do Tour existencial, adormeço sentado defronte do computador. A incapacidade de encontrar resposta talvez resida no meu QI. A média do QI português é de 95. Sendo eu um português médio, devo partilhar a média do QI que cabe aos portugueses. Como assinalou Sheddan, aquele que dialoga com Western, um QI de 100 é já um sinal acentuado de burrice, quanto não fará um de 95. É humilhante, mas basta passar a fronteira para o QI subir 2 pontos. Se foi para isto que o primeiro Rei andou por aí a espadeirar, melhor fora que estivesse quieto. Seja como for, a situação aqui ao lado também não é muito famosa. Segundo vi, o topo do QI foi monopolizado pelos asiáticos. O que me deixou intrigado foi Israel. Tem menos 1 ponto de QI médio do que nós. Será que o QI também acompanha as fases da vida? Bem, não quero saber, contento-me com a pertença a um povo com um QI médio de 95, contento-me por reflectir com precisão essa pertença. Todas as idiotices que escrevo estão justificadas. Coitado, com um QI de 95, muito já faz ele.

terça-feira, 21 de março de 2023

On s'habitue

A Primavera consolida-se. Nas ruas, há já uma quantidade considerável de gente vestida como se fosse Verão e não são turistas vindos da Escandinávia. Não sei, no entanto, se são portugueses encalorados ou apenas crentes em que as vestes atraiam um tempo que com elas se coadune. Se tivesse de votar por uma das duas opções, votaria na segunda. Somos um povo que ainda não abandonou o pensamento mágico. Outrora, isso parecer-me-ia motivo de preocupação. Hoje, não. Não é que ache essa nossa característica uma vantagem competitiva na relação com o mundo, habituei-me, apenas. Estou como o senhor Brel: on oublie rien de rien / on s’habitue c’est tout. Há, contudo, um equívoco nestes versos. Durante grande parte da vida parece que nada se esquece, mas, a partir de certa altura, tudo se esquece, a própria natureza se encarrega de abrir o caminho para a amnésia, até ela ser total. O chilrear dos pássaros – talvez fosse melhor escrever o pipilar das aves – tem-se intensificado, o que confirma que a nova estação vai de vento em popa, desliza pelo lago do tempo com ventos favoráveis. Nunca me faltam provas de que em mim reside um mar de frases feitas e uma montanha de lugares comuns. Estão sempre ao alcance dos dedos. Escrevi acima portugueses encalorados. O Word não gosta da palavra encalorado. Sublinha-a a vermelho, como se fosse um árbitro a expulsar um pobre jogador indisciplinado. Desconfio que aceitaria portugueses calorentos, mas sinto repulsa pela expressão, não a escrevo. Não tanta como por aquilo que tenho diante de mim e espera a minha atenção. E de tanto dar atenção ao repulsivo on s’habitue c’est tout.

segunda-feira, 20 de março de 2023

Astenia

Caso me sinta cansado, já posso dizer que é a astenia da Primavera, mas, segundo fui informado, tenho de esperar pela mudança da hora. Sempre pensei que o cansaço se devia aos fluidos da estação, afinal é à manipulação do relógio. Até que a manipulação se concretize não tenho o direito de ostentar fadiga. Tudo isto para dizer que chegou a Primavera. Contudo, na rua, o meu corpo pensou que estava no Verão. Para apaziguar os espíritos oiço o libanês Rabih Abou-Khalil, um tocador de oud, um instrumento que se parece com o alaúde e cuja sonoridade quase que transporta o ouvinte para um transe contemplativo. Por vezes, gosto de deambular por músicas estranhas à tradição ocidental, como a árabe, a indiana e a japonesa. É a minha forma de viajar, eu que sou das poucas pessoas que conheço que não gosta de viajar. Falta-me a alma de viajante e digo-o com pena, mas cada um é o que é. O nomadismo é-me estranho, mesmo que seja um nomadismo temporário. Por vezes, obrigo-me, mas a coisa resume-se na palavra obrigação. Isto torna este narrador um ser estranho numa cultura que incensa a viagem. O meu ser, porém, acende velas à estância. Permanecer é uma aventura mais funda do que partir, pois é viajar onde se está. A Primavera mal começou e já não me está a fazer nada bem. Trouxe os pássaros com ela e reavivou a minha inclinação para a trivialidade. Diante de mim, tenho uma pilha de trivialidades que preciso de ler. O pior é a astenia.

domingo, 19 de março de 2023

Começos

Uma outra orquídea floriu, flores brancas. Neste momento, estão floridas duas brancas, uma amarela e uma fúcsia. Começo assim, pois não me ocorre nada mais. Também podia começar com o álbum de Jazz que se derrama na aparelhagem. Tem o título sugestivo Being There e é da autoria do pianista norueguês Tord Gustavsen, que é acompanhado por Harald Johnsen e Jarle Vespestad. O CD foi editado em 2006 pela inevitável etiqueta ECM. Outro começo possível seria falar da avenida, mas não se vislumbra nela vivalma, toda a gente recolhida. De tempos a tempos, passa um carro, vai sonolento, os vidros como revérberos. Descobri, há dias, que nela existe uma igreja de uma daquelas seitas neopentecostais que florescem como cogumelos num mundo que um velho conservador diria estar à deriva. Naquele lugar já houve um café ou um bar, não sei bem, pois nunca lá entrei. Pensava que era isso que ainda existia, mas reparei que havia qualquer coisa de inusitado. Apercebi-me, então, que era um lugar de culto. Havia uma assembleia. Uma mulher falava, uma outra, na assistência, estava de pé e tinha um braço no ar. Pensei, a princípio, que fosse uma sessão de esclarecimento político, mas é provável que esse tipo de reuniões já não aconteça há muito, coisa dos anos setenta do século passado. Ninguém precisa de se esclarecer, mas parece que há cada vez mais gente à procura de uma salvação. Duvido que seja a da alma que procuram, mas a do corpo. Isto, porém, é presunção minha. Não faço a mínima ideia do que vai na cabeça das pessoas. Nem na minha, quanto fará de gente que nunca vi. Se soubéssemos o que vai na nossa cabeça, se fôssemos completamente transparentes para nós próprios, será que nos suportaríamos? Também podia começar assim: Quem, se eu gritasse, me ouviria de entre as ordens / dos anjos? E mesmo que um deles, de repente, / me cingisse ao coração: eu desfaleceria da sua / existência mais forte. Pois o belo não é mais / do que o começo do terrível, que ainda mal suportamos, / e deslumbra-nos assim porque, imperturbado, / desdenha aniquilar-nos. Todo o anjo é terrível. Poderia começar assim, caso Rainer Maria Rilke não tivesse começado deste modo a primeira das elegias de Duíno. Para dizer a verdade, Rilke não começou assim. Quem assim começou foi Vasco Graça Moura, ao traduzir as ditas elegias. Então lembro-me das ordens angélicas e repito-as para mim: anjos, arcanjos, serafins, querubins, tronos, potestades e dominações. Falta qualquer coisa e tudo parece fora do lugar. Consulto um site denominado Aleteia e recebo a verdade sobre a hierarquia angélica. Na primeira, e mais elevada, estão os Serafins, os Querubins e os Tronos. Na segunda, intermédia, encontram-se as Dominações, Potestades e Virtudes. Por fim, na terceira e mais próxima dos homens, estão os Principados, os Arcanjos e os Anjos. Será que também esta hierarquia reflecte uma escala de beleza? Quanto mais longe dos homens, mais belos os anjos? Faz sentido, pois não suportamos, com os nossos olhos mortais, um excesso de beleza. Acabo o texto sem me decidir pelo começo.

sábado, 18 de março de 2023

Considerações lastimosas

Um céu azul onde navegam, como barcos de guerra, nuvens de cinza e cal. Parecem cordatas, mas se algum comando inquieto lhes fende a bonomia e o torpor, estão prontas para disparar os canhões de água. Retornei ao exercício da hipérbole. Talvez seja o efeito do Picetoprofeno com que pulverizei o pobre do calcanhar. O odor do produto entranha-se pelas narinas, sobe ao cérebro e deixa-o incapaz de se medir com a realidade. Na descrição da droga está escrito que entre os excipientes se encontra a essência de lavanda. Ainda bem, pois se não estivesse nem sei como seria possível suportar o aroma que se evola a cada pulverização e que persiste no pé, se agarra à meia e se cola ao septo nasal. Também é verdade que entre os tais excipientes se encontra a cânfora. Em tempos, constava que nas cantinas militares misturavam cânfora com o vinho que era dado aos soldados, para fazer baixar a libido. Ora, não é sem surpresa que leio que essa mesma cânfora é um potenciador do desejo sexual, pois estimula certas regiões cerebrais responsáveis pelas pulsões eróticas e, pasme-se, pode ser usada no tratamento da disfunção eréctil. Fiquei siderado por ver refutada uma ideia que eu juraria que tinha ouvido, pelo menos assim o pensava, e, mais do que isso, tinha crido nela. Não encontrei, na internet, indício que ligasse a cânfora, mesmo misturada com vinho, a uma diminuição do interesse pelo sexo. Será que inventei a história e passei a acreditar nela? Parece-me uma ideia demasiado rebuscada. Uma pessoa a pensar que a cânfora era um potenciador da hipolibidemia, um autêntico anafrodisíaco, e afinal não passa de um concorrente verde, apesar de ser branca, do comprimido azul. Descobri que outrora os monges punham raminhos de vitex agnus-castus nas roupas dos noviços, para que nestes se acalmassem os ardores, mas o vitex agnus-castus não é cânfora, mas liamba, e nunca ouvi dizer que na tropa se misturasse liamba ao vinho para esses fins pacificadores. Também consta que já no século XIX se duvidava da eficácia da medida, refiro-me à liamba na roupa dos noviços. Um narrador ocioso começa a falar no azul do céu e acaba a perorar sobre a concorrência ao Viagra e a fazer considerações sobre coisas que uma pessoa de bem não devia considerar. 

sexta-feira, 17 de março de 2023

A discórdia

Neste momento, o sol brilha, as paredes dos prédios resplandecem, as folhas das árvores, daquelas que as têm, cintilam e, em súbitas fulgurações, quase cegam o espectador. Há pouco, porém, tudo era diferente. Um fortíssimo aguaceiro abateu-se sobre a cidade e o céu era chumbo prestes a precipitar-se sobre a terra. Estas súbitas metamorfoses talvez possam interpretar-se como um conflito entre o Inverno que se recusa a morrer, agora o que o seu tempo estar a terminar, e a Primavera desejosa de nascer, mesmo que ainda não seja a sua hora. Uma estação quer procrastinar tanto quanto a outra se deseja prematura. A discórdia dos elementos é apenas uma prova de que Heraclito, o obscuro filósofo de Éfeso, teria alguma razão. Nunca deixa de me impressionar o número de trivialidades que me saem dos dedos, e se saem dos dedos é porque me ocupavam o cérebro. Imagino, agora, que escrever estes textos seja uma forma de me alivar das banalidades que navegam no mar insípido da minha alma. Como poderia ser de outro modo? Estou desde manhã bem cedo entregue a trivialidades. Agora, porém, oiço displicente uma sonata para piano de João Domingos Bomtempo. Bocejo, apesar da música. Raramente, as noites me são propícias. Da rua, chega-me o cantar de pássaros que não vejo. A música da natureza mistura-se com a produzida pelos seres humanos, mas não será esta ainda uma música da natureza? O tempo passa depressa. Desfilam sem parar as sonatas do compositor português, enquanto a tarde entra no crepúsculo anunciador das trevas nocturnas. Ainda oiço adolescentes na praceta, jogam com uma bola. Vejo-me há muitas décadas, também a jogar à bola na rua, num tempo em que entre mim e mim não tinha entrado o vírus da discórdia. Essa patologia que fez alguém dizer: Comigo me desavim, / Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. // Com dor da gente fugia, / Antes que esta assi crecesse: / Agora já fugiria / De mim, se de mim pudesse. / Que meio espero ou que fim / Do vão trabalho que sigo, / Pois que trago a mim comigo / Tamanho imigo de mim? Bastaria este poema para Sá de Miranda ter um lugar na história da literatura portuguesa. Vou entrar pelo fim-de-semana dentro.

quinta-feira, 16 de março de 2023

Alienação

Meticulosidade será a palavra que descreve duas experiências a que me entrego de momento. Em Jeanne Dielman, 23 Quai du Commerce, 1080 Bruxelles, um filme de 1975, a cineasta belga Chantal Ackerman faz um exercício meticuloso de descrição da vida de Jeanne Dielman (uma magnífica Delphine Seyrig), uma viúva relativamente jovem, com um filho adolescente, e que se entrega pelas manhãs às rotinas domésticas, um exercício escrupuloso, e de tarde se prostitui. O filme tem mais de três horas e estou a vê-lo em pequenos episódios, digamos assim. Ackerman coloca a câmara em cima da protagonista e raramente a tira, dá-nos uma visão da exterioridade daquela mulher, uma exterioridade mecânica, rígida, como se a bela Jeanne Dielman não tivesse vida interior, e tudo nela se resumisse aos gestos precisos e ordenados com que executa as tarefas do quotidiano. Na imutabilidade da rotina doméstica, a realizadora, usando a câmara à maneira de um voyeur insistente e obcecado, mostra a alienação da mulher em relação a si mesma, a sua perda nos rituais da domesticidade. Uma outra experiência da meticulosidade é a leitura do romance O Outro Nome – Septologia I-II, de Jon Fosse. Aqui, porém, a experiência é muito diferente. O narrador e personagem central do romance também é meticuloso, excessivamente meticuloso, na narração da sua corrente de consciência, mesmo aquilo que é dito pelo outros é filtrado pela corrente de consciência. São descrições levadas ao pormenor, com repetições, num exercício encantatório provocado pela minúcia da narração. Tudo no filme de Ackerman é exterioridade. Ao contrário, no romance de Fosse tudo é interioridade. São os pontos de vista narrativos que criam a experiência de alienação de Jeanne Dielman e a experiência de profunda consciência de si de Asle, o artista plástico, personagem de Fosse. Podemos imaginar o artista plástico filmado como foi filmada a jovem viúva. Por certo, a sensação com que ficaríamos era a de uma vida alienada, estranha a si mesma. Também não é difícil conceber Jeanne Dielman a narrar a sua história a partir da corrente de consciência. Por certo, desapareceria a sensação de alienação. Quando se fala em alienação, fala-se sempre de alienação dos outros, pois é plausível pensar que a alienação só existe a partir de um olhar exterior em relação às vidas que são catalogadas como alienadas. A alienação só existe no olhar dos outros.

quarta-feira, 15 de março de 2023

Vinganças

Talvez as coisas estejam a mudar. Duas experiências no campo da saúde em que fui atendido à hora marcada. Ontem, numa consulta com um médico de clínica geral, marcada para às 12:20, entrei para o consultório precisamente às 12:20. Esta foi uma consulta em que comecei por pedir desculpa ao médico por ali estar, devido a um erro do ortopedista da mesma clínica. Este ouviu as minhas queixas relativas ao calcanhar do pé esquerdo. Observou-me o calcanhar, receitou-me um anti-inflamatório para tomar durante cinco dias. Caso a dor não se evaporasse, que fizesse umas radiografias aos pés e tornozelos e uma ecografia às partes moles do pé. Claro que a inflamação não desinflamou e eu marquei os exames, falei com a assistente, decifrei os pedidos do médico e fiquei descansado. Só que, no dia seguinte, ao acordar e colocar o pé no chão fiquei com a sensação de que a ecografia tinha sido prescrita para o pé direito e o que me doía era o esquerdo. Fui ver as prescrições e confirmei. Na clínica arranjaram-me a consulta para que um clínico geral me prescrevesse o exame ao pé esquerdo, pois o ortopedista só lá estaria depois da data dos exames. Senti-me na obrigação de me desculpar perante o médico, pois acho que os médicos são mais do que prescritores de medicamentos e exames. Ele foi simpático e disse que eu não tinha culpa. Hoje fiz os exames, à hora marcada, e recebi a notícia de que tenho uma tendinite. Já estou arrependido de ter trocado a ecografia. Se a tivesse feito ao pé direito, não tinha nenhuma tendinite. Isto é o que dá uma pessoa armar-se em esperto. O destino vinga-se. Seja como for, o mundo parece estar a melhorar, embora eu esteja a piorar.

terça-feira, 14 de março de 2023

Excesso de luz

O telhado branco do pavilhão desportivo da escola aqui ao lado resplandece. Os raios solares, ao incidirem naquelas amplas superfícies, levemente inclinadas, causam uma fulguração intensa, apesar de branca, que os olhos dificilmente suportam. É o destino dos homens não suportarem uma luz excessiva. Se algum deles traz uma luz intensa, os outros não a suportarão e não o suportarão, e haverão de o amaldiçoar, pois nem os seus olhos, nem o seu pensamento, nem o seu coração foram feitos para esse excedente de luz que, apesar de insignificante, traz consigo uma diferenciação. É plausível pensar que a estranha história narrada por Platão e que ficou conhecida por Alegoria da Caverna não seja outra coisa senão uma reflexão sobre o quão insuportável é para a humanidade ter de conviver com alguém que é portador de luz. A Alegoria da Caverna é interpretada recorrentemente de modo filosófico, tanto epistemológico como metafísico, mas na verdade ela é um arquétipo sociológico, um modo de entender as relações sociais entre o comum e o incomum. Mesmo os mais ardentes defensores das diferenças sociais se tornam igualitaristas na hora em que percebem alguém que é mais dotado do que eles. Um acaso, coisa que sucede tantas vezes, levou-me a ver uma série de reproduções de esculturas de Antony Gormley, onde o corpo humano é o tema. Imagino que o escultor tenha pegado em cada um dos prisioneiros da caverna de Platão e o tenha submetido a uma diferenciação específica. Interrogo-me como se sentirão eles nesses corpos que no lugar de os assemelhar os diferenciam, como se pertencessem a espécies estranhas. Provavelmente, tremerão de medo perante o horror do que vêem. O telhado branco do pavilhão continua preso na sua cintilação branca, cai sobre os olhos como um punhal. O melhor será ir buscar os óculos escuros.

segunda-feira, 13 de março de 2023

Coisas esdrúxulas

Aproxima-se a hora em que terei de me levantar daqui, desta cadeira em que me sento, e tomar o caminho que me leva sempre à perplexidade. Vou constatar o que já sei, mas o facto de saber não elimina o ficar perplexo. Saber implica crer no que se sabe, mas há coisas que nós sabemos e que, no fundo, recusamos crer nelas. Esta recusa é uma revolta contra a ordem das coisas. É um revolta inútil, pois a ordem das coisas é indiferente às nossas rebeliões e às crenças que acalentamos ou que desprezamos. Ainda falta algum tempo para me levantar. O melhor seria não pensar, penso eu agora. A vida é feita de coisas esdrúxulas, apesar de muitas delas não serem acentuadas na antepenúltima sílaba. Por outro lado, não gosto da palavra esdrúxula, mas seria dificilmente aceitável afirmar: a vida tem coisas proparoxítonas. Ninguém compreenderia, embora fizesse mais sentido, devido à presença de oxítono, derivado do grego oxýtonos que significa com acento agudo, o que sublinharia a presença na vida daquilo que é agudo, perfurante, verrumante. A semana útil começa com estas meditações inúteis. A palavra verruma, ou será a palavra verrumante, aprendi-a num texto de António Sérgio, espero não estar enganado. Julgo que foi a única coisa que aprendi com ele. Não que ele não tenha muita coisa para me ensinar, mas nunca prestei grande atenção aos ensinamentos que nos seus livros se ocultam. Daqui a cinco minutos terei de estar a entrar para o carro, pô-lo a trabalhar e começar a deslizar pela rua, à procura de uma outra, e outra, e outra. A vida é isto, um passar de rua em rua, como as notas ou as moedas passam de mão em mão. O dinheiro electrónico é mais asseado.

domingo, 12 de março de 2023

Duas liberdades

Passei a manhã a fugir daquilo que tenho de fazer antes que este domingo se dê por finado. Qualquer pretexto me serviu e, quando não havia pretexto, inventava um ou dois, que logo me davam uma ocupação, a qual não era destituída de prazer. E isto traz-me à memória aquele poema de Fernando Pessoa que começa assim: Ai que prazer / Não cumprir um dever, /Ter um livro para ler / E não o fazer! / Ler é maçada, / Estudar é nada. / O sol doira / Sem literatura. Podemos imaginar que seja falso que o sol doire sem literatura, pois dizer que o sol doira já é literatura, uma narrativa minimalista, mas uma narrativa, e nós nunca saberemos se o sol continuará a doirar quando a literatura desaparecer. A verdade, contudo, é que o poema de Pessoa narra a essência da liberdade nesse não cumprir um dever. Coisa que contrariaria aquele filósofo nascido em Konigsberg e que via a essência da liberdade no cumprir do dever não por prazer, mas apenas por dever, por amor ao dever e por respeito à lei moral. Em mim, este infeliz narrador de uma gesta sem honra nem glória, sempre houve, desde o dia em que na inocência dos seis anos pisei o chão de uma escola, um conflito entre essas duas formas de conceber a liberdade. Nessa altura nem sabia que existia uma coisa chamada liberdade, pois até aquele dia era livre e, como no caso da saúde, ninguém precisa de saber o que é a liberdade quando é livre. Só os doentes querem saber o que é a doença, só os não-livres se preocupam com a liberdade. A partir daí, nem sei bem em que altura, descobri que estava dividido em dois, pois havia em mim duas liberdades que se combatiam com ferocidade. Aquela que insistia no ai que prazer não cumprir um dever, e a outra que me ordenava cumpri-lo por ser esse o meu dever e não por qualquer outra razão espúria que submetesse a minha razão a um qualquer imperativo hipotético. Talvez nada disto seja verdade, mas apenas uma manifestação de uma certa inclinação que há em mim para a hipérbole. Há quem se entregue à metáfora, ou à metonímia, ou à anáfora, ou à litotes. A mim coube-me a hipérbole. Por vezes, imagino-me capturado pela anáfora, e que todo o meu discurso contém, continuamente, a repetição de uma expressão, ai que prazer não cumprir um dever, ai que prazer ter um livro e não o ler, ai que prazer acordar para adormecer, ai que prazer parar para voltar a correr. De certa maneira, a anáfora, na sua ânsia de repetição, contém em si qualquer coisa de hiperbólico. Por isso, dar-me-á tanto prazer.