sexta-feira, 31 de março de 2023

A morte do trema

Não estando em casa, o homem dos CTT – ou seria uma mulher? – deixou dois postais para ir levantar duas encomendas ao posto de correio, que, por acaso, não é um posto de correio, mas uma grande superfície que vende jornais, livros, material de escritório, brinquedos, tabaco e oferece, desde que pagos, serviços de reprografia, onde se inclui a impressão de fotografias. Também oferece serviços de correio, o que para mim é um sinal de que este é o melhor dos mundos possíveis, pois vou de casa lá a pé, em dois ou três minutos. Hoje decidi ir levantar as encomendas, aproveitando a saga para me banquetear com um salgado que apesar de saber bem, há-de fazer mal. As encomendas eram, como não podia deixar de ser, livros. Talvez inclinado pelas leituras de Jon Fosse – agora, vou a meio de Trilogia –, de Karl Ove Knausgård e, acima de todos, de Knut Hamsun, comprei, num alfarrabista, a trilogia da nobel norueguesa, ou dano-norueguesa, Sigrid Undset, Cristina Lavransdatter, que é como quem diz Kristin filha de Lavrans. A edição portuguesa não será propriamente uma tradução do norueguês, mas uma versão feita de uma língua dominada pela tradutora Maria Franco, imagino. A outra encomenda era constituída por um livro editado pelo jornal Público, na sua Biblioteca da Censura. Os livros reproduzem a edição censurada e contêm o fac-simile do despacho do censor, no caso um capitão. O romance, datado de 1948, é de um autor que desconhecia por completo, Orlando Gonçalves, e tem por título, o romance e não o autor, Tormenta. As considerações para proibir o livro são fastidiosamente ideológicas, embora, desconfio, também corporativos, pois o capitão não terá gostado de umas referências aos militares. No entanto, o texto começa em modo de crítica literária, embora hesitante: Este livro, tentando ser um romance, nem sequer isso atingiu, embora quanto à sua qualificação literária eu nada tenha com isso. Estamos perante um censor militar que, imagino, teria gostado de ser um crítico, mas o curso da Academia Militar, caso ele tenha frequentado algum, não fora suficiente para ter alguma coisa que ver com a qualificação literária de uma obra, embora lhe fornecesse faculdades para a vigilância textual e uma técnica hermenêutica para a descoberta da subversão e da imoralidade. Seria, note-se, um censor dedicado e trabalhador. Como tudo está registado, ou não estivéssemos em Portugal, o livro foi-lhe distribuído para leitura a 12/10/1948 e o despacho exarado a 15/10/1948. A Direcção dos Serviços de Censura apôs-lhe o respectivo carimbo vermelho onde se podia ler em capitulares: POÏBIDO. Fiquei a olhar para o trema e como ele poderia ainda ter utilidade na nossa língua, não para declinar o que é PROÏBIDO, mas tornar as palavras mais belas. O trema, infeliz sinal gráfico, teve uma história triste em Portugal, no século XX. Ele que existia pomposo, foi substituído em 1911, por recomendação de Gonçalves Viana, por acento grave. Em 1920, houve uma recidiva estética e o trema voltou garboso. Porém, em 1945, os dois pontos que decoravam certas vogais foram objecto de supressão legal nas palavras portuguesas e nas aportuguesadas, o que mostra que a própria censura se estava nas tintas para a lei. Foi a morte do trema.

7 comentários:

  1. Não sei se tenho muito apreço pelos senhores dos CTT (habitualmente entregam-me facturas com um sorriso). Os CTT da aldeia confinam com a mercearia que costuma vender biologias, como tomate-rosa e abacates da árvore (caríssimos). Eu costumo lá ir para pagar portagens (raramente). Sobre A Minha Luta, comecei a ler o 1, depois comprei o 2, e é como a Bíblia. Com Jon Fosse foi diferente: comecei por ter um livro e acabei a ler a Bíblia.

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    1. Imagino que os senhores dos CTT não entregam facturas, nem cartas, nem encomendas. Senhores não fazem coisas dessas. Digo eu. Os empregados fazem essas coisas, são simpáticos, por aqui. Os serviços dos CTT já foram piores. Não tenho razão de queixa e já não recebo facturas pelas suas mãos. É tudo via email, pois estou a preparar-me para ser moderno. Ainda hei-de chegar lá.

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    2. Quando digo senhores, não estou a despromover homens e mulheres, mas antes a elevá-los. Temos aqui um problema de linguagem (detesto que digam criada, como me ensinaram a dizer). Eu sou criada de mim própria, e disso me orgulho (embora deixe alguém desempregado). É claro que sei muito bem o que o carteiro (que não precisa de tocar duas vezes), me vem entregar. E retribuo-lhe o sorriso. Contrariamente a si (mas respeito) detesto ser moderna.

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    3. Senhor Peregrinatio, os meus aplausos por gerir tão bem a correspondência. Ver-nos-emos, um dia, na posta-restante.

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    4. O curioso de tudo isto é que desconhecidos falam com desconhecidos e irritam-se como se fossem conhecidos. Ora, prezada desconhecida, não sou gestor seja do que for, muito menos de correspondência, o que será uma virtude, como imagino que reconhecerá.

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  2. um dia inteiro de jardinagem
    o lírio no meu chapéu
    observa o chapim

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