quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

A grande substituição

Talvez exista progresso no mundo. Por aqui, há muito tempo, existia uma taberna famosa, frequentada pela classe média local, que se concentrava numa área apertada da vila, com os seus negócios, consultórios e outros interesses. Hoje, há, para o mesmo tipo de pessoas, mas num outro lado mais aberto da agora cidade, um bar de tapas, onde o vinho é seleccionado, a ementa está de acordo com os tempos modernos e o tipo de estabelecimento. Havia múltiplas padarias, que foram fechando devoradas pela boca informe das grandes superfícies. Abriu, porém, há uns tempos já, uma padaria muito diferente das antigas, que se preocupa com a qualidade e a diferenciação. Já falei dela por aqui. Havia uma casa, um ícone do comércio local, propriedade de dois irmãos, que fazia chaves e consertava chapéus de chuva. Fechou, pois os irmãos envelheceram e acabaram por morrer. Agora há uma casa, também de dois jovens irmãos, que não conserta chapéus de chuva, mas faz chaves, programa comandos, trata de fechos centrais de automóveis ou de portões de garagem que se movem devido à electrónica. Eis a grande substituição. As novas gerações tomam o lugar das mais velhas, cujos filhos nunca estiveram interessados nos negócios dos pais. A vida tende a reproduzir-se e por isso a persistir. Será isso o progresso, uma grande substituição.

terça-feira, 13 de fevereiro de 2024

Uma bonomia condescendente

Só agora, já passam das seis da tarde, é que me lembrei que é Dia de Carnaval. Na rua, não avistei qualquer movimento carnavalesco. Antigamente, sempre apareciam uns mascarados espontâneos que espraiavam a sua tristeza pelas ruas. Agora, cada um transporta a tristeza como pode, poupando os outros às suas figuras. Um avanço civilizacional, penso. É plausível pensar que o Carnaval seja uma reminiscência de festividades dionisíacas. Contudo, ao perder o carácter sagrado, o Carnaval alienou a sua natureza mais funda e tornou-se num divertissement profano e superficial, um exercício de comércio turístico. Por aqui, o dia tinha cara de Quarta-feira de Cinzas. Talvez esta tenha sido antecipada. Troquei a folia pelo trabalho, o que poderá ser visto como uma forma de penitência quaresmal, mas talvez a verdade seja outra, a minha incapacidade para ser um verdadeiro folião. Há pessoas que têm um dom, diria mesmo uma vocação para foliar, outras há, pobre delas, a quem o fado não concedeu essa inclinação e não sentem qualquer impulso para a exibição de uma alegria espaventosa. Talvez prefiram alegrias mais secretas, ocultas do público. Desprezam a gargalhada, preferem um sorriso. Impedem-se o escárnio e o maldizer e cultivam a ironia. Para estas, não há Carnaval, pois, há, muito descobriram que a vida quotidiana é um Carnaval, que olham de longe não sem condescendente bonomia.

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

A natureza recalcitrante

David M. Estlund abre o capítulo seis do seu livro Utopophobia – on the limits (if any) of Political Philosophy com uma citação de outro filósofo, Thomas Nagel, retira do de Equality and Parciality. A citação diz Assim um inicialmente atractivo ideal moral é bloqueado pela recalcitrante natureza humana. Este ideal moral tinha uma expressão política. Deixemo-la, todavia, de lado. O problema não é daquele ideal moral em particular. Existe sempre um conflito entre qualquer ideal moral e a natureza recalcitrante dos seres humanos. Aliás, só existem ideais morais porque a nossa natureza é aquilo que é, recalcitra sempre que vê os seus desejos limitados. Por vezes, ela é tão ardilosa que tenta mostrar como ideal moral o que é imoral. Nietzsche, na sua diatribe contra a moral platónico-cristã tentou convencer os leitores, e alguns terá conseguido persuadir, de que ela era a expressão da imoralidade, de uma moral de escravos para enlear nas suas artimanhas os senhores. Aqui o ardil estará do lado de Nietzsche, que talvez imaginasse pertencer a uma casta superior e que não estaria submetido aos imperativos morais do homem comum. Que tenha enlouquecido parece ser um argumento poderoso contra o seu pensamento, mas talvez este seja um pensamento de um escravo incapaz de perceber o super-homem e uma moral que está para lá do bem e do mal.

domingo, 11 de fevereiro de 2024

Coroas de canela e amêndoa

Acabei de comer duas fatias da coroa de canela e amêndoa. Podia – e deveria – ser frugal, mas a tentação foi forte e achei que o melhor seria consumar a tentação em vez de a evitar. O resultado parece convincente. Agora, não me apetece mais nenhuma fatia.  A padaria que um casal novo decidiu abrir nesta terra onde levo a minha obscura existência de narrador em busca de narrativa é um centro de tentações. Tanto pelo pão como pela pastelaria. Vê-se que tudo é pensado, que nada resulta de um hábito instalado, que, numa coisa tão prosaica como fazer pão, há uma grande vontade de inovação, sem que se encha a boca com palavras como inovação, empreendedorismo e outros mantras com que os portugueses disfarçam a sua falta de criatividade e a sua incapacidade para empreender seja o que for. O resultado é um discreto, mas efectivo, fomento da gula, com a desfaçatez de tornar um trivial pão de trigo num objecto propiciador de pecados mortais. Não estou a afirmar que tudo aquilo resulta de um pacto com o tinhoso, mas imagino que seja uma feliz exploração de alguma abertura que tenha havido no reino dos céus. Coloquei o problema, ainda há pouco, ao padre Lodo, na nossa conversa dominical. A resposta que me deu foi que quando fosse a Lisboa não me esquecesse de lhe levar um pão de trigo, outro de centeio e duas coroas de canela e amêndoa. Não compreendo, disse-lhe. É um excesso para uma pessoa e não me parece que seja suficiente para aqueles que partilham a residência da Companhia. Não se preocupe, respondeu, conheço bem as pessoas, as frugais, as moderadas e as que pouco se freiam. A encomenda está adequada à natureza dos residentes. Bem, respondi, não tenho nada que ver com o assunto, mas não queria ser o causador, ainda que involuntário, da perdição de ninguém. O pão, respondeu o meu amigo, é o Corpo de Cristo, e esse não perde ninguém. E as coroas de canela, perguntei. Não me parece que sejam coroas de espinhos, acrescentei. Do outro lado, apenas se ouviu um riso, e a conversa mudou para assuntos políticos, dos quais não me é permitido aqui falar.

sábado, 10 de fevereiro de 2024

Poupem-me as evidências

Seremos, de facto, um povo com QI baixo. Nos momentos em que vejo televisão, e são poucos, concentro-me num certo canal desportivo europeu. Não é que dê atenção aos desportos que por lá se exibem. Presumo que sejam aqueles que os canais comercias não querem. Dou alguma atenção ao snooker e ao ciclismo. Aos outros deixo-os ficar por ali, sem que lhes dê a mínima atenção. Infelizmente, os dois desportos que gosto mais de ver, o râguebi e o hóquei no gelo, foram comprados pelos canais comerciais. Ora, havia uma coisa que me agradava bastante no canal em causa. A qualidade da publicidade. Anúncios internacionais, muito poucos, e muito bem feitos, inteligentes e esteticamente apurados. Descobri agora que a política de publicidade da estação terá mudado e são passados anúncios portugueses. Também são, felizmente, poucos. Cada vez que vejo um sinto-me insultado. Parece que a publicidade dirigida aos portugueses é feita a pensar em mentecaptos que precisam de se babar com um engraçadismo soez. São anúncios dirigidos ao grande público, mas é preciso descer tão baixo na escala estética e moral? Se os publicitários assim organizam as campanhas publicitárias, então é porque quanto mais idiota for a publicidade mais consegue ela vender. Desconfio que a minha atenção, já reduzida ao mínimo, ao canal desportivo vai desaparecer por completo. Se nós portugueses temos assim um QI tão baixo, prefiro que me poupem às evidências.

sexta-feira, 9 de fevereiro de 2024

Palavras e imagens

Estes dias têm sido mais ocupados do que deviam. Por vezes, a necessidade acumula as suas forças num determinado ponto do meu caminho e, quando menos espero, caio na emboscada e não tenho outro remédio senão submeter-me a ela. Isto não é verdade, mas fica sempre bem uma diatribe, ainda que pequena, contra a terrível necessidade. Submetido a ela, não tenho tido tempo para dar atenção à Electra que me chegou há dias. Há uma entrevista com uma escritora, professora e crítica norte-americana, Svetlana Alpers. Para título da entrevista foi escolhida uma frase da entrevistada Suspeito das palavras e das imagens. Como só mais logo irei ler a entrevista, não sei as razões da sua suspeita. Será que ela não suspeita dos sons não linguísticos? E os sabores e odores serão confiáveis ou também eles são suspeitos? As impressões tácteis, em que categoria cabem? Talvez ela responda, talvez não. Desconfio mais das imagens do que das palavras. As imagens possuem uma intenção secreta, a de nos seduzir ou de nos repugnar. Elas jogam com a sua aparência para nos cativar, no sentido estrito de ficarmos cativos da aparência. As palavras para o fazer têm de formar coligações, estabelecer pactos, fazer acordos, celebrar convenções. Portanto, ao contrário da imagem, em que cada uma se basta a si para nos raptar da terra do bom senso, as palavras necessitam de um trabalho aturado, o que nos dá algum tempo para erguer o escudo contra o feitiço. Agora, volto para a terra do bem senso para dar atenção à necessidade que por mim chama.

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2024

Um acto de civilização

Tenho uma relação difícil com os carros. Em primeiro lugar, conduzir aborrece-me, embora o faça sem problemas, mesmo em grandes viagens. É uma seca. Há gente da minha geração que ainda fala na adrenalina de conduzir. Talvez porque tome há muito beta-bloqueantes para descer a adrenalina e com ela a tensão arterial, conduzir não entra no grupo das coisas capazes de me fazer subir a adrenalina que tenho de baixar continuamente. Outra coisa difícil na minha relação com os carros é cuidar deles. Faço os mínimos. Hoje, olhei para um pneu e vi-o em baixo e achei melhor passar por uma casa que trata de pneus. Resultado, mudaram-me os quatro e ainda me recomendaram ir a Fátima agradecer por nenhum deles ter rebentado. Não fiquei particularmente preocupado com o meu descuido, porque só utilizo aquele carro para as voltas por aqui, onde raramente chego aos 50 km/h. O resultado da aventura é que o carro parece outro, mais leve e maleável. Se vivesse numa grande cidade, acho que dispensaria o carro de vez. Transportes públicos, um táxi ou um uber, e para viajar alugaria um carro. Tinha enormes vantagens. Acabavam problemas de estacionamento, não precisava de seguro, nem de oficina, nem de combustível, nem de pneus. E não precisava de lhe dar atenção. Não ter carro parece-me, neste momento, um acto de civilização. Isso, porém, não pode acontecer numa pequena cidade de província, uma cidade que se fosse elevada a vila teria uma enorme promoção. Aqui não há lugar para ideias civilizadas.

quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Em busca de uma iluminação

Não fora este ano ser bissexto e, no fim do dia, teríamos completado o primeiro quarto do mês. Assim teremos de esperar seis horas para comemorar a efeméride. Nos anos não bissextos, o mês de Fevereiro é o mais perfeito dos meses. Contém precisamente quatro semanas. Os outros meses alargam-se para lá do limite razoável. Uns dois dias, outros três. Nem sempre Fevereiro se contém, mas isso só acontece de quatro em quatro anos. O desejo de expansão vai crescendo, crescendo, até que se transforma num dia a mais. Esta minha explicação de Fevereiro, nos anos bissextos, conter mais um dia parece-me muito mais interessante – e por isso mais verdadeira – do que a explicação rotineira baseada na necessidade de manter o calendário anual coerente com a translação da Terra. Em vez da coerência o desejo, e onde entra o desejo tudo se torna mais palpitante. E as pessoas gostam daquilo que as faz palpitar. Tenho estado a ver um documentário sobre o escritor de ficção científica Isaac Azimov. A personagem parece-me interessante, mas nunca fui um leitor desse tipo de literatura. A razão talvez resida na minha falta de imaginação, no facto de não conseguir transportar-me para mundos fora da Terra ou mesmo dentro da Terra que, cada vez que tentei ler e ainda li algumas obras, sempre me pareceram terrenos, demasiado terrenos, embora enxertados de umas estranhezas que teriam a função de mostrar que se estava num outro mundo. Talvez esteja a ser injusto, mas o gosto não é uma questão moral e, por isso, não gostar de ficção científica não justo nem injusto. Vou meditar nas minhas razões para não gostar de ficção científica ou nos mistérios do calendário. Talvez tenha uma iluminação.

terça-feira, 6 de fevereiro de 2024

Mitologias

Pensei que se tinha perdido no caminho entre Inglaterra e esta casa onde me recolho, mas era um pensamento precipitado. Chegou hoje, para minha surpresa, pois o site continua a dar informações contraditórias, o livro da filósofa Mary Midgley, com o título The Myths We Live By. Quase no início, ela escreve Mitos não são mentiras, nem histórias isoladas. São padrões imaginativos, redes de símbolos poderosos que sugerem caminhos particulares de interpretação do mundo. Isto reconduziu-me ao Iluminismo, aos séculos XVII e XVIII, e à tentativa desesperada dos homens se emanciparem dos mitos. A isso chamou-se o triunfo da razão. Esse triunfo, porém, nunca deixou de ser uma fantasia, pois o triunfo da razão é ele próprio um mito que enquadra a interpretação do mundo. Imagino, não poucas vezes, que a razão não é mais do que uma imaginação coagulada, despida da sua fluidez, onde os mitos secaram, como secam as frutas expostas ao sol. Perdem a humidade. Eu, por exemplo, expando-me numa mitologia pessoal onde surjo como um narrador sem narrativa, um herói sem aventuras, um pensador sem pensamento. Perante estas autodescrições, pergunto-me se elas serão, enquanto figuras de retórica, oxímoros ou paradoxos. Imagino que no interior de cada mito exista um núcleo contraditório e é a partir desse núcleo tenso que emergem as redes simbólicas. Contudo, isto não é pensamento que se tenha a esta hora em que a tarde declina e com ela a luz e a minha vontade de escrever.

segunda-feira, 5 de fevereiro de 2024

Atenções

Um dia útil, o primeiro da semana, em que chego ao fim da tarde com uma desmedida sensação de inutilidade, apesar de ter estado ocupado o dia inteiro. Talvez seja por causa disso, pensei. A grande aventura foi passar pelo hipermercado. Das coisas que comprei, uma delas deixou-me desolado. Nozes. Sou um consumidor regular deste fruto seco. Fui abastecer-me, mas parece que tinham seleccionado para venda apenas uma versão mini, tão baixo é o calibre. Não havia outras, acabei por comprá-las. Só falta saber – mais logo, saberei – se além de mínimas também são secas. Comprei outras coisas, como kiwis, tomate cereja e rúcula. É possível que devesse comprar outras, mas terei esquecido quais, talvez por falta de atenção. Na Electra, do Inverno 2023/24, leio A chave para o estrondoso sucesso das redes sociais reside na abertura do negócio aos clientes finais. Os rendimentos são contabilizados em moeda de amigos, seguidores, gostos e tudo o resto. O texto é de Georg Franck e faz parte de um artigo com o título As várias faces da economia da atenção. Este sucesso é o sucesso do vácuo. Pois o que, na verdade está em jogo, não é a atenção, a aprendizagem de estar plenamente presente perante aquilo que se apresenta, mas o chamar a atenção, o desenvolvimento de um narcisismo que se aproxima do solipsismo à medida que crescem as amizades, os seguidores e se somam os likes. Agora, a noite anuncia-se e vou entregar a minha atenção à contemplação do crepúsculo.

domingo, 4 de fevereiro de 2024

Uma escultura

De onde me encontro posso ver uma escultura em bronze, datada de 1956/57, de Lagoa Henriques, uma figura feminina com bicicleta. Está num conhecido complexo habitacional de Lisboa, importante na história da arquitectura moderna portuguesa. A figura feminina, penso ao contemplá-la na sua nudez, obedece a um padrão de beleza que, entretanto, caiu em desuso. Isto mostra, entretive-me a pensar, que o desejo tem uma forte dimensão social. Aquilo que é desejável eroticamente obedece aos padrões impostos pela moda, o que significa que a pulsão natural é envolvida por uma capa de carácter cultural. Ora, é esta capa que permite não apenas a diferenciação do que é desejável ao longo do tempo, como uma diferenciação social entre os que desejam segundo os modelos mais sofisticados e os que desejam segundo modelos mais simples e arcaicos. Esta diferenciação trazida pelas dinâmicas culturais não se instala sobre uma igualdade natural, pois igualdade na natureza parece ser um bem escasso, como se pode constatar pelo facto de todos os seres humanos terem impressões digitais diferentes, mas substitui essas diferenças dadas por diferenças criadas socialmente, as quais podem acentuar as hierarquias naturais, mas podem também subvertê-las. Olhando para a escultura de Lagoa Henriques, volta a questão da natureza de um valor como a beleza. A diferenciação no tempo – e também no espaço geográfico – do que se considera belo é um argumento a favor do relativismo cultural. Contudo, talvez seja possível compatibilizar a ideia de que a beleza é um valor objectivo e universal com este relativismo cultural. Para os domingos, dias sagrados de descanso, a melhorar solução de compatibilidade teria uma tonalidade platónica. Existe a priori uma ideia de beleza, a da verdadeira beleza, uma ideia objectiva e universal. As ideias relativas provenientes da cultura são interpretações limitadas e variáveis dessa ideia, a qual é apenas entrevista como uma sombra. Amanhã, poderia encontrar outra explicação, mas por hoje esta basta. Tenho de ir almoçar com as netas.

sábado, 3 de fevereiro de 2024

Uma derrota

Sem uma aventura para adicionar à gesta gloriosa em que transformei o meu quotidiano, resta-me narrar uma desventura. Dirigi-me a uma farmácia, longe de casa, para comprar um certo medicamento. Receita electrónica no bolso, isto é, no telemóvel, passada em meados de Dezembro. Das seis unidades receitadas, tinha adquirido apenas duas. Restavam-me quatro. Quando mostro a prescrição, recebo a informação de que todas as unidades tinham sido dispensadas, não me restava nenhuma. Fiquei perplexo, quero dizer, fiquei com cara de parvo, sem saber o que dizer, perante alguém que nunca me vira. Só comprei duas embalagens, aliás, nem vendem mais, disse, como se apresentasse um argumento decisivo para que me vendessem o medicamento. A funcionária – talvez fosse a dona da farmácia, sabe-se lá com quem se fala numa farmácia desconhecida – para me consolar, disse não se preocupe, pois eu também não tenho essa versão do medicamento. Respirei fundo. Estar ali o medicamento e não o poder levar era muito pior do que não haver medicamento. Chegado a casa, fui investigar a aplicação e lá percebi que na farmácia que frequento devem ter cometido um erro. Venderam-me duas embalagens e consideraram que me tinham dispensado as seis. O meu problema com esta desventura não é a falta do medicamento, mas não saber em que página da minha epopeia ela cabe. Um herói que se preze não tem apenas vitórias. As derrotas, desde que não contumazes, testam a sua resiliência, a sua capacidade de ultrapassar os momentos amargos. Um momento amaríssimo é aquele em que se utiliza a palavra resiliência e eu acabei de o fazer.

sexta-feira, 2 de fevereiro de 2024

Da euforia à apatia

O mundo anda inflamado, ouvi. Como a conversa não era comigo, assenti, mas apenas mentalmente, sem deixar transparecer concordância ou, tão pouco, ter escutado a afirmação. Depois, o pensamento, o meu, apresentou a si mesmo a natureza da inflamação, o calor deste Inverno. Parece ainda não ter sido descoberto um anti-inflamatório eficaz para estas perturbações, pensei. Sexta-feira, o dia desliza insensato para o seu fim e eu acompanho-o, sou arrastado pela voracidade que se apoderou do calendário. Há pouco subi e desci uma certa artéria da capital. Fi-lo propositadamente devagar, tentando enganar o tempo e esperando que ele diminuísse a sua marcha. Manteve-se impávido, ignorando-me, ignorando a minha estratégia, fazendo finca-pé na fidelidade que tem às dimensões das suas divisões, recusando-se a que um segundo dure mais que um segundo. Esta recusa, arrasta todas as outras. Como se vê, a fidelidade nem sempre é uma virtude. Por falar em fidelidade, disse o padre Lodo, com quem almocei e contara a minha artimanha, li que o mundo está a renunciar ao sexo, que se passou da euforia da libertação sexual à apatia da libertação do sexo. No meu país, a Itália, prosseguiu vivaz, os estudos mostram que um milhão e seiscentos mil jovens, entre os 18 e 35 anos, nunca tiveram qualquer relação sexual e que um terço dos jovens até aos 25 anos apenas teve sexo virtual. Há 220 mil casais estáveis, nas mesmas idades, que são sexualmente abstinentes. Isto é um problema, exclamou. Olhei-o divertido. Parece que a revolução sexual dos anos sessenta foi muito mais eficiente em gerar o desprezo pelo sexo do que a prédica de dois mil anos da Igreja, respondi. Olhou-me compadecido da minha inclinação para a heresia. A Igreja, disse, nunca desprezou o sexo, apenas quis fazer dele uma coisa rara e, por isso, valiosa, ripostou. Tão valiosa que deve estar encerrada na esfera das coisas sagradas, concluiu. Sim, sim, disse eu, mas também admitia excepções para os membros do clero. Esses estavam livres da sacralidade do sexo e abstinência era coisa para os outros. Franziu o sobrolho, pegou na garrafa de vinho e ao ler o rótulo, exclamou que o sexo não é tudo na vida e que até na região de Lisboa se encontram óptimos vinhos. Coisa com que concordei sem vontade de proferir nova heresia.

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Subir para baixo

Começou Fevereiro. Quando, ao levantar-me, constatei o facto, surgiu-me uma inquietante dúvida no espírito. Se Janeiro tem o seu nome em honra do deus Janus, o deus bifronte, e Março honra Marte, o deus da guerra, a que deus, caso seja algum, honrará Fevereiro, esse mês amputado de dias. Pensei que talvez fosse uma divindade que tivesse sofrido alguma excisão. Por exemplo, poderia ser um deus a que tivessem excisado um dente, um dedo. Investiguei e descobri que Fevereiro vem do latim Februarius, nome inspirado em Fébruo, o deus da morte na mitologia etrusca ou na sabina, não se tem a certeza. Eis uma descoberta tétrica, mas logo se percebe a razão. Fevereiro, isto é, Februarius, era o 12.º mês, e último, do calendário lunissolar romano extinto em 46 a.C. O ano morria em Fevereiro, por isso é absolutamente racional a escolha do deus da morte como inspirador da denominação do mês. Resta, todavia, uma discussão a fazer em torno de Fevereiro. Passar de último mês do ano para segundo, conforme os calendários juliano e gregoriano, foi promoção ou despromoção? Apesar de a transição de 12.º para 2.º não lhe ter retirado o estatuto de mês amputado de dias, há uma notória despromoção funcional. Agora, Fevereiro liga Janeiro a Março, dois meros meses. Antes, porém, ligava um ano ao outro. Era um mês terminal que anunciava um novo ano, uma nova vida, um novo mundo. Eis um exemplo que todos devemos ter em atenção. Quantas vezes subir numa hierarquia não passa de uma despromoção? Muitos são aqueles que sobem para baixo.

quarta-feira, 31 de janeiro de 2024

Liberalismo climático

Janeiro despede-se em clima primaveril. Trata-se de uma vitória assinalável do liberalismo climático. Depois de tanta insistência por parte dos defensores do clima livre, S. Pedro decidiu acabar com a regulação meteorológica, a qual já sofria de algumas deficiências. Entregue a si mesmo, o clima aposta em trazer a Primavera ou mesmo o Verão em pleno Inverno, ou prolongar Verões até ao começo do Inverno. Dizem os liberais climáticos que o clima desregulado atende melhor aos desejos do mercado, e aquilo que o mercado gosta é de calor, tempo estival, dias propícios para ir para a praia. Eis uma explicação que ultrapassa em rigor analítico as que são dadas pela ciência sobre as alterações climáticas de origem antropogénica. De facto, e aqui os cientistas geofísicos têm razão, o clima está a mudar devido ao homem, não, porém, à sua acção produtora de dióxido de carbono, mas ao seu desejo – um desejo insensato, sublinho – de praia, de torrar ao sol, de mergulhar nas águas do oceano, de se enfarinhar na areia. Por isso, este Janeiro do qual nos despedimos, foi o que foi. Uma resposta do clima à procura no mercado.

terça-feira, 30 de janeiro de 2024

Um dia glorioso

Alguém, um desocupado, por certo, está a perfurar uma parede. Ao mesmo tempo perfura-me o sossego, a paciência e a atenção. Todas as máquinas deveriam ter um processo de absorção das ondas sonoras que, ao trabalhar, produzem em abundância. Acumulavam as ondas sonoras e transformavam-nas, posteriormente, em água, o que ajudaria a combater, não com pouca eficácia, a seca. Como se vê, bem tento contribuir para melhorar o mundo, mas ninguém parece interessado nas magníficas ideias que me ocorrem. Só nesta jornada a verrumar paredes, se poderia produzir uma meia dúzia de metros cúbicos de água. Levantei-me relativamente tarde, pois, ao acordar, tive uma súbita iluminação. O melhor é pegar no telemóvel e ir validar as facturas na aplicação. Não tarda é tempo de IRS. Falta menos de um mês para acabar o prazo e, antes que me esqueça, resolvo já o assunto, enfrentando o dragão do fisco com a lança acerada da prontidão. É verdade que segui aquele conselho lido num dos livros da escola primária. Não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. Não guardei. Tinha mais de quatrocentas facturas para classificar e validar, coisa que fiz no conforto da cama. Esta foi a minha aventura do dia, uma peça fundamental na gesta que me conduzirá à glória e espalhará a minha fama num horizonte tão amplo quanto aquele que o meu irmão de aventuras, o fidalgo D. Quixote, alcançou na sua vida heróica. O dia está ganho, uma ideia genial capaz de salvar o planeta e um combate com o dragão fiscal são aventuras mais que suficientes para um dia só. Contudo, há dias assim, tenho ainda de enfrentar a víbora da burocracia. Chegaram-me uns papéis para ler e dar o meu assentimento. Se utilizei uma lança para derrotar o dragão do fisco, terei agora de usar uma espada para cortar a cabeça da víbora da burocracia. Um dia glorioso.

segunda-feira, 29 de janeiro de 2024

Viandâncias

Hoje comecei o dia demasiado cedo. Ainda por cima a noite foi mal dormida, com tempo para pensar em adormecer e tempo em que, o pensamento derrotado, me entreguei à leitura, não sem antes ir tomar um comprimido para acalmar uma certa dor que teimava pairar num dos joelhos. Há dores que durante o dia não damos por elas, tão pequenas e insignificantes são. As mesmas, na sua insignificância, durante a noite, tornam-se um adversário poderoso de quem quer dormir. Não há maneira de chegar a um tratado de paz, que permita compatibilizar a vocação da dor para doer e o desejo do paciente em conviver com bonomia com essa inclinação que habita qualquer dor. Entregue à leitura, sob o efeito químico do colírio seleccionado, dei conta de a dor se ir afastando, não com pressa, mas com um passo aceitável. Quando ela se retirou por completo, pus a leitura de lado e adormeci. Sono de pouca dura, pois o alarme logo tocou e tive de me levantar. Um compromisso aguardava-me e eu não gosto de fazer esperar os compromissos. Cheguei a tempo, isto é, ainda antes da hora marcada. Depois do compromisso, fui caminhar para me esquecer do que tinha estado a tratar. Estava a meio da manhã e o sol tentava romper as nuvens, o que conseguiu a certa altura. Na viandância, não encontrei ninguém conhecido, mas agora inventei uma palavra. Os dicionários não registam viandância, mas o que fará um viandante se não a viandância? Se um peregrino faz peregrinações, um viandante só pode fazer viandâncias. Faço imensas viandâncias sem sair do mesmo lugar. Ponho-me a viandar, mas nunca saio de onde estou. Acontece também que, muitas vezes, farto-me de viandar para chegar ao sítio onde estava, aquilo que no jogo do monopólio se chama ir para a casa da partida. Bem, não sei se era nesse, se era no jogo da glória, ou noutro qualquer.

domingo, 28 de janeiro de 2024

Cinza de domingo

Domingo de cinza. Uma luz difusa atravessa o muro de nuvens e abre-se, esbranquiçada e plangente, sobre a cidade. Um tempo em que ressoa no fundo do coração um Stabat Mater dolorosa iuxta crucem lacrimosa dum pendebat Filius. Tudo isto para dizer que apesar de se estar longe da Quaresma, o domingo parece uma sexta-feira de Paixão. De manhã, fui caminhar, com esperança de me poder reconciliar, daqui a uns tempos, com a balança. Neste momento, entre mim e ela não há conflito real, pois ela recusa a devolver-me o peso. Preciso de mudar-lhe a pilha, mas, acto falhado, tenho-me esquecido de a comprar. Olho para a pilha e vejo um disco achatado. O pior é que há inúmeras versões destes discos achatados e só uma delas se adapta à minha inimiga de estimação. Não faço ideia qual é e ainda não me dei ao trabalho de remover a gasta para a levar ao sítio onde se vende aquele tipo de coisas. Enquanto caminhava, ia meditando na diferença dos hábitos de hoje e os de há cinquenta anos. Naqueles dias, os domingos eram coisa séria. Hoje, porém, são leves e desportivos. Antigamente, as pessoas iam à missa preocupadas com a alma. Hoje, caminham, correm, fazem desporto, preocupadas com o corpo. Se alguém argumentar que as dores de alma são piores que as do corpo, ninguém acreditará. Rendemo-nos ao império do visível. Os corpos vêem-se, as almas não. Olho pela janela e parece que o tempo se suspendeu. A realidade imobilizou-se e imóvel persiste diante dos meus olhos. Nem o vento abana a ramagem das árvores, nem pessoas passam na praceta, nem carros rasgam a avenida. Procuro os corvos que costumam voar, ao longe, saltando entre árvores, mas também eles se imobilizaram. Toda a cidade entrou no domingo e parece não querer sair dele. Oiço, agora, um carro, mas não o vendo sou forçado a admitir que talvez não seja um carro, mas apenas uma turbulência sonora que imita o barulho de um carro para me iludir.

sábado, 27 de janeiro de 2024

Vulgaridades

O meu desejo é de dormir uma boa sesta. Falta-me, porém, uma desculpa aceitável. Por exemplo, ter dormido mal durante a noite. Esta noite, talvez para contrariar a priori o meu desejo deste momento, dormi bem, sem interregnos para adiantar leituras. O drama humano, talvez a tragédia, é a necessidade de encontrar desculpas – chamamos-lhes, muitas vezes, justificações – para fazer certas coisas. Sem desculpas, há acções que não têm qualquer direito à realização, mas uma boa desculpa torna-as legítimas. No que escrevi, há um equívoco. Não se trata de um drama, muito menos de uma tragédia. Serve-lhe bem um título de Balzac, a comédia humana. A comédia retrata as acções – e também as paixões – dos homens vulgares, enquanto a tragédia mima as acções dos homens nobres. A mim apenas cabe a comédia. A comédia não é aquilo que faz rir, embora os dicionários se tenham convertido a essa acepção, mas o que permite ver a vulgaridade que há nos seres vulgares. A minha vulgaridade está, neste momento, toda ela na propensão para dormir, para deixar cair o queixo sobre o peito e ressonar, enquanto um fio de baba se escapa da boca. A descrição é nojenta, mas não se pode esperar da vulgaridade de uma pessoa vulgar outra coisa. O nojo habita naquilo que é comum. Ora, não sendo da estirpe de um Édipo, filho de Laio, nem de Agamémnon, filho de Atreu, só me cabe a vulgaridade das coisas que acontecem aos mortais desprovidos de laços sanguíneos com os deuses. Tenho a vantagem de não matar o pai e casar com a mãe ou, espero, de não ser assinado pela mulher e o amante desta, destinos que os deuses concederam como uma graça ao filho de Laio e ao filho de Atreu. Os deuses são caprichosos. Talvez por isso foram substituídos por um Deus único que, ao olhar para a justiça, não faz acepção de pessoa e não distingue aqueles que merecem uma tragédia e aqueles cuja vida não passa de uma comédia. Agora, vou dormir a sesta.

sexta-feira, 26 de janeiro de 2024

Sem porquê

Anoiteceu. Os dias estão a crescer há mais de um mês, mas ainda são pequenos. A natureza progride lentamente, oiço-me pensar. Depois, rio-me. Não, a natureza não progride. Nela não há progresso nem retrocesso. Há apenas o acontecer, mas esse acontecer não significa nada a não ser o próprio acto de acontecer. Progresso e retrocesso só podem existir onde existe um sentido. É este que permite a existência de objectivos e finalidades, os quais são os marcos miliários, pelos quais se medem avanços e recuos. Ora, naquilo que apenas acontece não há avanços nem recuos. Pensar nisso, pensar que a generalidade das coisas apenas acontece, conduz a uma vertigem da nossa consciência, a qual se recusa a conceber que tudo pode ser destituído de sentido, incluindo ela e aquele em que ela vive. Um certo filósofo alemão do século passado, cuja fama não foi comprometida pelas ínvias opções que fez a certa altura da vida, alicerçou a sua glória na tese de que toda a história da filosofia é a história do esquecimento do ser, do esquecimento da pergunta pelo ser. Podemos pensar que esse ser esquecido não é outra coisa senão o puro acontecer sem qualquer significado senão acontecer. Será destituído de sentido fazer perguntas sobre aquilo que não tem sentido. Este texto é prova de que estou a entrar nos dias de ócio. Só a perspectiva da ociosidade me poderia levar a escrever coisa tão ociosa, tão destituída de sentido. Tivesse este narrador talento e teria escrito a apenas uma frase, aquela que Angelus Silesius, para sua eterna glória, escreveu, a rosa é sem porquê.