sexta-feira, 28 de outubro de 2022

Os liquidâmbares

Os liquidâmbares da avenida estão esplendorosos. As folhas desdobram-se numa multidão de tons, e assim como o cisne entoa o mais belo canto antes de morrer, também as folhas dos liquidâmbares, antes de se arrojarem mortas por terra, oferecem aos olhos desprevenidos o melhor dos espectáculos. Se a vida tivesse ficado pelo patamar vegetal, medito muitas vezes, a Terra seria um belíssimo mundo. Há qualquer coisa de tenebroso na vida animal, na voracidade com que ela, incapaz de extrair directamente do solo alimento, se entrega à carnificina. Este espectáculo tenebroso terá originado as crenças maniqueístas e a hipótese deste mundo ter sido obra não do Deus misericordioso, mas de um deus malévolo, obstinado em fruir este espectáculo de sangue a correr pelas bocas nunca saciadas. Aqui, Eduína, pela primeira vez, interrompeu a conversa nessa noite. Tinha estado estranhamente silenciosa. Referiu que a hipótese de duplicação dos deuses era desnecessária, bastaria aceitar o deísmo como verdadeiro. Deus, na sua infinita omnipotência, teria criado o mundo, extraído do nada a matéria, dando-lhe algumas regularidades, apenas esboçadas, a que os homens chamam leis da natureza. Depois, entregou esse mundo com as suas toscas regularidades ao devir e decidiu não mais intervir no que nele acontecia. O esboço das regularidades eram possibilidades em aberto e o acaso poderia ter conduzido a mundos muito diferentes. Ao voltar as costas a esse mundo, Deus abdicou também de sobre ele fazer incidir a sua presciência. Não sei, todavia, acrescentou Eduína, se esse desconhecimento ostensivo será suficiente para lhe salvaguardar a inocência. Seja como for, prefiro, continuou, a versão de um Deus interventivo na criação, mesmo que não consiga nunca compreender as suas razões. Entra esta conversa e a notícia que tive da sua morte, soube que teria entrado num convento, embora julgo que nunca tenha chegado a professar. É mesmo possível que tenha acabado por o abandonar. Uma das coisas que ela amava, disso lembro-me bem, era os liquidâmbares nesta altura do ano.

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