quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

Complacência

O ano está a chegar ao fim. Não faltarão retrospectivas do que passou e profecias para o que há-de vir. Há muito que imagino ser mais acertado fazer profecias sobre o que se passou e retrospectivas do que ainda não aconteceu. É possível que o resultado fosse o mesmo. A Terra prossegue a sua vida, rodando sobre si e girando em torno do Sol, com olímpica indiferença. Que os homens montem, a partir da sua actividade, calendários, será um problema que não a afecta. Durante algum tempo tirei fotografias. Evitava nelas a presença humana. Talvez fossem, penso-o agora, uma forma de reverência ao planeta que nos acolhe e dá vida. Se alguém achar que isso se deve à misantropia terei de considerar o assunto. Duvido, contudo, que a espécie humana gere em mim um sentimento tão forte. Complacência, sim, mas não ódio. A complacência começa comigo e estende-se ao próximo, mesmo que este esteja muito afastado. Na literatura, a complacência tem má fama. A condescendência é vista como uma falta de carácter, tornando o herói vicioso. Ora, no acto de ser complacente existe benevolência e esta, caso fosse universal, não tornaria a vida pior. Ontem levei as minhas netas ao mosteiro de Alcobaça. Enquanto deambulava por ali, ia pensando que o mosteiro está morto. Existe conservação e restauro, mas aquilo para o qual foi erguido desapareceu. Tornou-se um cadáver que não se corrompe, mas não deixa de ser um cadáver, como o são os corpos de Pedro e Inês, ali sepultados. A ânsia que sentimos de preservação do passado em forma de património é uma negação da realidade, uma recusa em perceber que é o espírito que vivifica e, quando este se retira, o monumento, por belo que seja, é apenas um despojo sem vida preso à terra.

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