terça-feira, 17 de janeiro de 2023

Liberdade

Num ensaio sobre um romance de Mauriac, Sartre defende que o essencial de uma obra romanesca está na liberdade. Não se refere, claro, nem à liberdade do autor, nem a um panfleto em defesa das liberdades políticas e sociais. Trata-se antes da liberdade das personagens. Que o seu devir na acção romanesca não esteja determinado por condições como a hereditariedade, a psicologia do indivíduo ou a sociedade. Seja, pelo contrário, a manifestação da capacidade humana de iniciar alguma coisa no mundo que a cadeia de nexos causais não seria capaz de prever. Isto assemelhará os seres humanos a Deus. Não porque sejam criadores do universo, mas porque são criadores da sua existência. Imagino que o problema sartriano não será literário, mas filosófico. Uma polémica com os deterministas, que negam que os homens façam escolhas genuínas, estando todas as suas acções determinadas por causas que eles não controlam e que, na verdade, desconhecem. Resta saber se a ideia de se ser senhor das suas próprias acções não será uma manifestação de um orgulho desmedido, uma pretensão que a realidade, se observada com cuidado, desmente. Se se pensar na tragédia grega, descobre-se que os heróis acabam sempre por ser punidos por essa pretensão de se libertarem de uma causalidade estrita. Ora, esta punição infligida pelo destino será uma prova, e não das menores, dessa mesma liberdade. Foi esta ideia de liberdade que me salvou nos verdes anos de uma submissão a certos cantos da sereia que anunciavam um futuro risonho pelo mero desenvolvimento das leis da História, como se esta fosse uma Física newtoniana aplicada ao devir dos homens. Imagino que aquela história de termos sido criados à imagem e semelhança de Deus se refira a isto, ao facto de podermos ser livres e conformarmos a nossa existência pelas escolhas que fazemos.

6 comentários:

  1. Só uma cabeça absolutamente livre pode criar personagens livres. Ora isso parece-me, no mínimo, deliciosamente utópico. Ao contrário, a literatura está cheia de ciladas, de perigos, de castigos. E de redenções enganosas. Agora ando a ler Geada, de um dos meus escritores preferidos, em que o protagonista, um pintor céptico e misantropo, conta toda a sua vida a um espião. O romance é uma espécie de decanter de um vinho muito antigo.

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  2. A ideia de Sartre é a de que a personagem esteja de tal modo montada de que nem ela nem o leitor saibam o que vai acontecer. A ideia parece ser que a arte do romancista está em criar enredos em que as acções não têm outras causas senão a decisão, a cada instante, da própria personagem. A personagem não seria assim o resultado da germinação de uma semente, onde ela estaria contida, mas far-se-ia a si mesma nas decisões que toma e nas acções que empreende. A ideia parece ser ilustrar a tese de que aquilo que somos resulta das escolhas que fazemos e não de uma determinação prévia contida no ADN ou no meio, ou nos dois. É uma tese terrível pois coloca-nos sem defesa, sem recurso a condicionamentos sociais e genéticos, perante a nossa responsabilidade por aquilo que somos.

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    1. É a robótica no seu melhor. Mas enganamo-nos quando nos pensamos protegidos pela genética ou pela sociedade. Na verdade estamos sempre sozinhos, tal e qual como as personagens do ensaio de Sartre. Ele só teve um relâmpago de realidade.

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  3. Não se trata de se estar protegido pela genética ou pela sociedade. Trata-se destas não servirem de alibi. Por estranho que possa parecer, a posição de Sartre é uma condenação da visão do marxismo e da psicanálise, onde o homem surge sobredeterminado por causas que não controla, as estruturas sociais ou a cena originária da relação edipiana. Há um slogan sartriano que diz 'estamos condenados a ser livres'. É uma afirmação radical dessa solidão, pois não há como partilhar a responsabilidade das nossas escolhas.

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    1. Concordo, e até posso colocar-me na posição de O Estrangeiro, por não ter chorado no início mais belo de um romance. Não conheço livro com solidão maior.

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  4. Como é que se põe uma pessoa das ciências a raciocinar como um filósofo?
    Desculpe-me se não o acompanho devidamente. E obrigada.

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