sábado, 4 de março de 2023

O cine-pipoca e uma teoria do septo

Pela primeira vez, desde que começou a pandemia, fui ao cinema. Um filme inglês, Viver. Ao meu lado sentou-se uma rapariga – ou seria uma jovem mulher, imagino-a na casa dos vinte – que pertence a um mundo estranho, demasiado estranho. Passou o filme a comer pipocas. Ouvia-a mexer naquelas coisas e a mastigá-las. Por vezes, apertava o plástico de uma garrafa de água e este crepitava, tudo ao meu lado crepitava. Só ia a salas de cinema onde não se vendiam pipocas. Por norma, no Monumental, onde passava o cinema europeu. As salas do grupo Medeia fecharam todas. Fui às Amoreiras, onde o cine-pipoca parece ser dominante. Saído do filme, e com a desculpa de ter de comprar um livro para uma das netas, deixei-me cair em tentação. E a tentação traduziu-se em Professor Unrat ou o Fim de um Tirano, de Heinrich Mann, o irmão mais velho de Thomas Mann, O Outro Nome – Septologia I – II, de Jon Fosse, Autobiografia de uma Mulher Romântica, de Natália Nunes, e O Marinheiro Que Perdeu as Graças do Mar, de Yukio Mishima. Continuo a acumular livros. É uma patologia, ainda por cima leio mais em formato digital do que em papel. O Word está a ficar sofisticado. Sublinhou a verde a expressão ainda por cima. Fui ver o que ele queria. A mensagem dizia: Locução própria de linguagem informal. Pondere a utilização de uma expressão alternativa. Quem lhe terá dito que estes textos são formais? Não apenas são informais, como são informes, mas a sua falta de forma não chega à criatividade da tradutora do livro de Jon Fosse. Um ciclo de sete romances não recorre, para designação, em português, do conjunto, ao elemento de composição septo, mas hepta. Uma heptalogia, não uma septologia, que me lembrou de imediato uma teoria sobre o septo, talvez o nasal. Isto, porém, pode ser apenas mais um sinal de que o mundo mudou de tal maneira que sete e septo, que em latim significava parede, tapume, sejam da mesma família. Também é possível que o romance de Fosse seja uma teoria das paredes ou dos tapumes. Nunca se sabe.

31 comentários:

  1. Em Janeiro já tinha lido uma recensão do livro de Jon Fosse - O Outro Nome, Septologia I-II. Interessei-me logo pelo tema, e estou a preparar a leitura ouvindo entrevistas com o escritor e apresentações do livro no YouTube. Numa delas, Jon Fosse refere que o romance se divide, não em livros, mas em partes (daí os septos); logo, a definição de septology - conjunto de uma obra dividida em sete livros -, não seja aqui tão fidedigna como: conjunto de uma obra dividida por tabiques (esta é uma heresia). Em francês suponho que o título se mantém, Septologie. Uma outra coisa interessante, é que o escritor refere que este romance, contrariamente ao resto da sua obra, é escrito como uma *slow prose*, como se se estivesse a olhar pela janela. Uma escrita contemplativa também pelo lado de dentro, arrisco-me a dizer. E, na musicalidade, talvez seja semelhante a Thomas Bernhard (é outro risco meu). Há quem diga que já o leu em voz alta.

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    1. Julgo que não altera a questão. Talvez pudesse ficar como heptasepto. Em inglês surge como Septology (toda a obra, imagino). Os alemães traduziram o norueguês septologien por Heptalogie, o que me parece fazer sentido, sejam livros ou partes. A tradução automática dá septologia em Português. Quanto à comparação com Thomas Bernhard, não sei, não li Fosse, mas a musicalidade de Bernhard é pouco contemplativa. Por vezes, parece um martelo pneumático.

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    2. Tem alguma razão, mas não toda.
      O que é feito do toy piano de Cage; de Schönberg, de Xenakis, de Jorge Peixinho?

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    3. Não sei se tenho alguma. Li a primeira página do livro de Fosse, apenas para ver como era, e, de facto, há qualquer coisa que faz lembrar o estilo de Bernhard. Não detectei, porém, a violência que há no austríaco, a demolição que ele opera do convencionalismo dos austríacos. Não ligaria Bernhard à contemplação, mas à acção. De Bernhard não conheço o teatro, mas li parte substancial da narrativa, de que muito gosto. Um escritor que mais facilmente associaria a uma atitude contemplativa seria Sebald, de que também gosto bastante.

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    4. Não li, infelizmente, Extinção, mas li Betão, O Náufrago, Geada, e a Autobiografia (que justifica tudo). De todos os livros que li me perpassa uma sensibilidade infinita e contida, uma contemplação interior, e uma raiva surda pelas circunstâncias. Quando ouço a Aria de Bach, lembro-me do Náufrago, não me lembro de Glenn Gould.

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    5. Quanto a Sebald pouco sei. Mas até há pouco tempo não sabia fazer um bom risotto.

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  2. Septuagésima oitava página da septologia de Fosse, e é como se continuasse a ver um filme de Terrence Malick.

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    1. Nunca vi um filme de Terrence Malick, por um lado, e ainda não cheguei à página 78 do livro de Fosse, por outro. Vou ver se consigo fazer alguma coisa para descobrir Malick, mas, por certo, chegarei primeiro à página 78 de Fosse.

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    2. Tenho quatro filmes, vi o último no cinema e ofereci outro que o meu leitor se recusou a ler. Por ordem de preferência: Dias do Paraíso, A Essência do Amor, A Árvore da Vida, Cavaleiro de Copas.

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  3. Página 122 da septologia de Fosse: Asle está preocupado com Asle, e, mesmo com esforço, ruma à cidade, Bjørgvin, para poder visitar Asle, em Skutevika, onde fica o apartamento de Asle. Fica na dúvida se ele estará em casa, e, estando, se lhe abrirá a porta. Asle de facto não está em casa, foi para a Casa de Pasto, mas deixou Brage - o cão -, em casa. Asle toca à campainha de Asle e ninguém atende. Estranho é que o cão não ladre, penso eu, ao ler. Será que Fosse estava distraído quando escreveu isto, ou quer apenas que tenhamos a certeza de que Asle é Asle? Tal como Argos nunca ladraria a Ulisses, Brage nunca ladraria ao próprio dono.

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  4. Ao fim da página 193 da septologia, Asle fala na luz das suas pinturas, *luz que se torna visível na escuridão*, uma *escuridão luminosa*.
    Como nas pinturas de Pierre Soulages, penso eu.

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  5. Ainda não cheguei aí. Vou a 35 páginas de distância. Pergunto-me, muitas vezes, o que seria uma literatura que fosse equivalente na escrita àquilo que é feito na pintura não figurativa, como a de Soulages, de Klein, de Pollock.

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    1. Klein inventou o azul mais bonito que conheço. Talvez só a poesia (Joaquim Manuel Magalhães?) consiga pintar assim.
      Ontem cheguei ao fim da primeira parte e fiquei perplexa. Estava a cabecear de sono e a fazer um esforço enorme para terminar a última página. E o que estava eu a fazer? A ler o Pai-Nosso em latim e em português; a ler a Ave-Maria em latim e em português. Eu estava, pela mão de Fosse, a rezar. Depois apaguei a luz.

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    2. Não me entusiasma particularmente a poesia de Joaquim Manuel Magalhães, o que parece também acontecer com ele, que rasurou até ao apagamento parte substancial da obra. Quanto a estar a rezar pela mão de Fosse, talvez não seja pela mão de Fosse, mas de Asle, o narrador autodiegético (a expressão é desagradável). Talvez Fosse seja ateu.

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    3. Na poesia prefiro as naturezas-mortas. E quantas telas foram destruídas ou pintadas por cima, penso eu.
      Quanto a Jon Fosse sei que é católico convertido e tardio. Compreendo quando, a certa altura, escreve: aquela Bíblia que ali está em cima da mesa-de-cabeceira, que me irrita, está ali como que a observar-me, como se esperasse algo de mim, e além disso tem péssimo aspecto, uma capa com uma espécie de buquê de flores, é uma Bíblia totalmente indigna, e nunca percebi porque é que quase todos os hotéis hão-de ter uma Bíblia em cima da mesa-de-cabeceira (…), pág. 212

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  6. Os diálogos entre Asle e Åsleik: Vladimir e Estragon em 33 rotações.

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    1. Curiosamente, também Asle e Åsleik são, de algum modo, vagabundos. Talvez também eles esperem Godot, mas talvez isso só se saiba no fim da sétima parte. De certa maneira, as personagens com que me deparei ate agora todas parecem esperar alguma coisa.

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    2. Quando os comparei às personagens de Beckett foi mais pela platitude dos diálogos do que por considerá-los vagabundos; antes os acho seres vagueantes, a entreter o tempo. Porém, sim, esperando placidamente por Godot. Ou será por God. Sim, por Deus, que tarda em aparecer.
      Um pormenor: há cerca de uma hora senti um tremor de terra. Estava naquele momento a terminar o livro. Agora estou em condições para rectificar aquilo que aqui escrevi noutro comentário: Deus não existe, Deus é, como no Êxodo. Senti-lhe o rugido e fiquei a pensar. Depois fui responder a um inquérito do IPMA sobre sismos.

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    3. Esse vaguear entre trivialidades parece-me uma forma de vagabundagem, uma errância ociosa no diálogo. Por aqui não se sentiu qualquer tremor de terra, li que foi coisa mais a sul. Do rugido da terra só o ouvi no tremor de terra de 69, acho que foi esse o ano.

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  7. Enquanto espero pela próxima parte da septologia, resolvi ler O Monte dos Vendavais (também podia ter sido Moby Dick). Mas agora, sinto que a preparação para a segunda parte deve ser outra. Segundo li numa entrevista, Jon Fosse foi fortemente influenciado na sua escrita pela leitura exaustiva de Ser e Tempo, de Heidegger. Ora eu sei de Heidegger o que toda a gente sabe. Talvez deva começar por George Steiner sobre Heidegger, ou então tentar ler Serenidade, que consta entre os meus livros. Tenho vindo a pensar, por vários motivos, que O outro Nome, é, como em Pessoa, sempre o mesmo nome. Talvez Åsleik seja afinal um Chevalier de Pas.

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    1. Ainda não cheguei ao fim. Faltam-me umas 15 páginas. Quando leio qualquer coisa, sigo a lição de Paul Ricoeur. Leio como se o autor fosse desconhecido, sem qualquer recurso a aspectos biográficos. A obra basta-se a si mesmo, pois contém em si um mundo e é esse que há que desvendar. Quanto a Heidegger (que não me interessa particularmente), talvez se possa começar com os artigos da Stanford Encyclopedia of Philosophy (https://plato.stanford.edu/entries/heidegger/) e da Internet Encyclopedia of Philosophy (https://iep.utm.edu/heidegge/), embora estas duas excelentes enciclopédias online se situem numa outra tradição filosófica e isto de tradições filosóficas é quase como um Benfica - Sporting. Tanto quanto me lembro, Serenidade é um belo texto, escrito numa comemoração de Kreutzer, do músico. Uma reflexão sobre a técnica e a carência do pensamento.

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    2. Meu Deus, que canseira (parece que já começou a Primavera). Eu não sou assim tanto by the book, apenas curiosa. Só estou a achar graça à filosofia. Tal como à Sonata de Kreutzer de Tolstói; e de Beethoven (pela Isabelle Faust e Alexander Melnikov). Agradeço-lhe a lição de Paul Ricoeur, mas se não me intrigasse nunca tinha descoberto quem tinha causado a Picada Mortal.

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  8. Por uma pequena dúvida, mas bastante pertinente, fui averiguar sobre Kreutzer. E então descobri que existiram dois (quais Asler & Asler ou Dupond & Dupond) Kreutzer & Kreutzer: um Conradin (o de Heidegger), e um Rodolphe (o de Tolstói / Beethoven). E faz sentido: como poderia a Serenidade gerar-se a partir de uma tragédia? Ou é mesmo verdade que depois da tempestade vem a bonança.

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    1. Quando li Serenidade, não tive curiosidade acerca do festejado. Assumi que era o da sonata, mas afinal é falso. O da sonata é francês. Fiquei na altura com a sensação de que Heidegger forçara um bocado a nota para dizer o que disse naquele tipo de comemoração, mas precisava de voltar ao texto.

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  9. Entre a página 302 e 303, há uma receita excelente para brunch. Já experimentei fazer duas vezes, e é verdade, “a cebola dá um gostinho especial a tudo isto”.

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    1. Também notei essa passagem, mas não sou inclinado para a culinária, o que é muito pouco virtuoso, diga-se.

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    2. Espero que, um dia, não esturrique um ser, cebola ou bacon.

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  10. Voltar atrás talvez seja isto: comecei, um dia, a pintar uma cruz.
    Tinha esperança que fosse uma boa pintura. Mas, afinal, a minha cruz é que era a melhor pintura.

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  11. Passada a comoção, a edição, suponho que americana, tem um grafismo magnífico: as três capas lado a lado dos três livros, formam o desenho da cruz de Santo André, sendo que o segundo volume, *I is Another*, ocupa obviamente o centro da cruz, o que era matematicamente expectável. E era também que anteontem, quando fui ver Golpe de Sorte, nem a Fnac nem a Bertrand meridionais tinham um único livro de Jon Fosse.

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