quarta-feira, 18 de setembro de 2024

Commercium sexuale

O filósofo francês Luc Ferry destaca, como um dos acontecimentos capitais dos tempos modernos, aquele que marca uma clara diferenciação com outros tempos, a transição do casamento combinado para o casamento por amor. Esta ideia está conectada com uma outra sublinhada, agora por Gilles Lipovetsky, a da sagração da autenticidade. O casamento passou a ser uma expressão autêntica dos sentimentos das partes e não um mero arranjo contratual, para, citando o Kant da Doutrina do Direito, ordenar aquilo que o filósofo nascido em Konigsberg descreve com o requinte que se segue: Com efeito o uso natural que um sexo faz dos órgãos sexuais do outro é um gozo, pelo qual cada parte se entrega à outra. Isto foi escrito no § 25 Do Direito Doméstico. Não menos interessante é o começo do § 24: A comunidade sexual (commercium sexuale) é o uso recíproco que um homem pode fazer dos órgãos e faculdades sexuais de uma outra pessoa (usus membrorum et facultatum sexualium alterius). Estamos perante transacções comerciais, nas quais o casamento confere um direito – mas um direito recíproco – aos usos dos órgãos sexuais da outra parte. Não admira que Kant nunca tenha casado, se era assim que ele via a sexualidade e o casamento. Parece óbvio que o amor não fazia parte deste universo. O Eros submetia-se a uma regulação jurídica. O casamento por amor, no âmbito da expressão de uma natureza autêntica, vai libertar o Eros. A desregulação deste tem uma consequência agora conhecida por todos, o divórcio. O Eros esfria rapidamente, o amor dissolve-se no quotidiano, o casamento acaba e lá se vai, acompanhado por um alívio, o direito de usar os órgãos e faculdades sexuais da outra parte, os quais, na verdade, se tornaram soporíferos.

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