domingo, 16 de fevereiro de 2025

A Grande Pragmática

Ontem, como parte de um ritual, passei pela livraria Ler, em Campo de Ourique, casa a que volto sempre que venho a Lisboa e tenho algum tempo disponível. Imagino que seja uma faceta levemente romântica que me inclina, no caso dos livros, para o comércio local. Pelo menos, em parte. É agradável saber a quem se compra os livros. E a verdade é que, embora não se note pelas aparências, um mesmo livro comprado numa pequena e séria livraria não tem o mesmo conteúdo do que se for comprado numa grande cadeia multinacional ou mesmo nacional. As letras e as palavras parecem as mesmas, mas não são. Significam de maneira diferente, pois a significação não é apenas um assunto de semântica, mas também de pragmática. A pragmática trata do contexto onde os actos de linguagem ocorrem. Preocupa-se com o modo como a significação emerge do uso da fala em situações concretas, com os seus contextos, intenções, normas sociais, inferências, etc. Esta é, porém, a pequena pragmática. A grande pragmática, que acabei de criar, inclui os discursos escritos, a forma como são trocados e os lugares onde os leitores não apenas os lêem, mas também onde os adquirem. Toda essa constelação de lugares influencia a significação das palavras que estão impressas. Daqui posso avançar para uma nova – e criativa, embora é possível que alguém antes de mim a tivesse criado – tese: qualquer livro – por exemplo, o romance Refúgio no Tempo, de Gueorgui Gospodinov, que comprei ontem – tem, pelo menos, tantas significações quantos os exemplares postos à venda. Disse pelo menos porque se alguém compra um livro e, depois de o ler, o vende, a nova transacção comercial implica a criação de um novo sentido, pois as condições grande pragmáticas, digamos assim, são diferentes. Esta descoberta serenou-me o espírito. Até ao dia de hoje, pensava que, quando comprava uma obra pela segunda vez, isso se devia a um problemático défice da minha memória — antecâmara, sabe-se lá, de que doença do foro neurológico. Hoje descobri que nunca comprei a mesma obra duas vezes. Apesar de as aparências indicarem que são a mesma, a verdade é que os contextos grande pragmáticos são diferentes. Logo, as obras são diferentes. Não apenas acrescentei mais uma criação à minha gesta e ao progresso da ciência, como também encontrei uma explicação sólida para aquilo que eu pensava ser uma fraqueza — uma patologia — da memória pessoal. O domingo está ganho.

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