sábado, 20 de setembro de 2025

O último refúgio

Graças à ignominiosa inteligência artificial, traduzi do alemão as primeiras seis cartas de Rilke sobre política. Como desconfiava, a maior parte delas tem alusões muito genéricas sobre povos e costumes, que só com muita boa vontade se podem denominar cartas sobre política. Contudo, uma carta a Bodo Wildberg, datada de 7 de Março de 1896, tem um conteúdo efectivamente político. Trata da oposição entre as concepções de Rilke e de um certo Thiel: Thiel desenvolve a sua opinião estritamente germano-patriótica, em oposição ao meu «delírio cosmopolita» [Weltdusel], e parece-me que a história das nossas concepções da vida é a das duas rectas paralelas que se intersectam no infinito! O conflito entre o nacionalismo e uma visão cosmopolítica. Sabemos – embora se esteja em maré de esquecimento, se não mesmo de negação – que a opinião germano-patriótica conduziu a duas guerras mundiais. O mais surpreendente, porém, é a filiação do poeta na perspectiva de um autor tão pouco dado à poesia. O grande pensador cosmopolita é Kant. Hoje vivemos, mais uma vez – talvez como comédia, mas que pode desembocar em tragédia –, a exaltação das opiniões patrióticas e uma caça às bruxas cosmopolitas. Pergunto-me por que razão o resultado haverá de ser diferente daquele que se obteve no século XX. Poder-se-ia dizer que, apesar de pouco inclinados à política, os poetas têm sensibilidade para certos perigos. Seria o caso de Rilke. Estaria, porém, a mentir. Nem é verdade que os poetas sejam pouco inclinados à política – há de tudo –, como muitos deles não deixarão de louvar o espírito patriótico, o barulho das botas cardadas, o fogo dos combates e a dor das mortes inúteis. Nunca esqueço as palavras atribuídas ao Dr. Johnson – Samuel Johnson: o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Consta que não as terá escrito, mas tê-las-á dito perante testemunhas.

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