quinta-feira, 28 de janeiro de 2021

Nada de literalidades

Depois de quase uma semana sem sair de casa, há pouco pus-me na rua e caminhei durante meia-hora. Não foi muito. Se continuar a não andar, acabarei por me esquecer de como se anda, pensei.  A avenida não estava despovoada como acontecia no primeiro confinamento, mas também não estava fervilhante como nos dias normais. Era uma espécie de limbo habitado por almas inocentes, mas que não foram mergulhadas a tempo na água lustral. Devia evitar analogias, não vá alguém levar as minhas palavras a sério. Ainda há pouco, numa daquelas videoconferências que se tornaram a realidade que existe, tive de esclarecer que as minhas palavras eram uma ironia. Eu estava a significar o contrário do que estava a dizer. Talvez as pessoas sejam habitadas por uma ânsia de literalidade. Pão, pão; queijo, queijo. Faz-se disto a expressão do bom carácter, de quem diz o que tem a dizer, com todas as letras, não lhes vá faltar alguma. Nada de eufemismos, ironias. Abula-se a retórica. O pior é que a própria realidade é retórica, como me disse hoje de manhã ao telefone o padre Lodo. Há muito que não conversávamos. Estou cansado da pandemia, disse-me. Estou cansado destes exercícios de estilo com que a realidade nos envolve, continuou. Depois, lembrando-se da sua condição de sacerdote, acrescentou há que ter paciência e decifrar com humildade os sinais com que Deus decide marcar o nosso caminho. Tentei perguntar-lhe se ele achava então que o vírus era castigo divino, mas ele não me deixou formular a questão e disse já sei, já sei, mas não vou entrar em discussões teológicas a esta hora da manhã. Nada de interpretações literais. A letra mata, o espírito vivifica, disse e riu-se com a sua gargalhada exuberante de italiano. A tarde avança decidida para o seu encontro com a noite e eu tenho de voltar para os meus afazeres, literalmente.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Efeitos colaterais

Quando me sentei para tomar o pequeno-almoço, dirigi, como o faço sempre, o olhar para a rua. Os olhos procuram de imediato duas colunas de fumo que, numa aldeia ao longe, se erguem aos céus ou, caso esteja vento, correm paralelas à terra. Imagino que são dois fornos onde se há-de cozer pão e ali haverá gente preocupada com a temperatura, se o pão não sai queimado, se já estará na hora para o retirar do forno e o pôr à venda. Imagino, mas não sei o que são, não sei de onde vem aquele fumo. Imagino, e isso é tudo. Hoje, porém, senti uma imediata irritação. Eu queria procurar as colunas de fumo, mas os olhos pareciam cravados num enorme letreiro em forma hambúrguer. Desviava-os e eles logo voltavam para lá. Fiquei a calcular quantos anos o bosque da escola ao lado levaria a cobrir aquela visão. Os cedros estão a crescer a um ritmo promissor, já os pinheiros parecem mais lentos. Ontem a minha neta mais nova fez dez anos. Não a vi, a não ser via WhatsApp. É a primeira vez que não estou presencialmente nos seus anos. Não tarda e será o dia de aniversário da minha filha e também ela estará longe, como se todos aqueles que me são próximos se tivessem exilado num país inacessível e estivessem proibidos de entrar na pátria. Terá de ser assim, eu sei, mas custa-me saber do meu neto, agora a meia dúzia de quilómetros de distância, e não poder brincar com ele, que já começou a falar, cheio daquela graça que só existe quando se tem dois anos. Não sei o que me deu para tamanha patetice. Não há contabilista que adoce as contas da pandemia.

terça-feira, 26 de janeiro de 2021

Da cobiça e da entrega

Confinado, fui à varanda do escritório desconfinar. Na praceta, em baixo, um cão, um Basset, levava à trela a dona, vestida de preto, com ténis brancos. Iam devagar, ele farejava a relva e ela, arrastada, olhava o horizonte. Não faço ideia se era um Basset, mas passa a ser. O dia está cinzento, o ambiente anda tenso, as pessoas levam-se a si e às suas convicções demasiado a sério. A realidade, todavia, não deixa de conter muitas ironias. Aliás, ela é um manto onde a tragédia e a comédia se entrelaçam sem parar. Olho para mim e não posso deixar de me rir. Talvez porque seja velho e tenha perdido a vergonha. Se observo as minhas crenças com um pouco mais de cuidado, então tenho motivo para belas gargalhadas. Não porque as crenças dos outros sejam mais dignas do que as minhas, não o são, mas porque todas elas são humanas, demasiado humanas, marcadas pelo ferrão da finitude. Eu sei que todos queremos possuir a verdade, mas esta é uma mulher virtuosa, como só as havia noutros tempo – o que me irá acontecer por ter escrito isto? - e deixa-se cobiçar por todos, mas não se entrega a ninguém. Se cada um se risse de si e daquilo em que acredita, talvez o mundo fosse um sítio mais aprazível. Ainda há pouco estive a falar com uns estorninhos que andam por aqui. Para dizer a verdade, não percebi nada do que eles disseram, mas entendemo-nos perfeitamente. Gosto mais de falar com eles do que com os pombos. O Basset há muito que foi engolido pela esquina do prédio e eu vou fazer aquilo que me espera. 

segunda-feira, 25 de janeiro de 2021

Uma bola de obsidiana negra

O dia passou sem eu dar por ele. Constou-me que esteve chuvoso, mas isso foi um vago rumor, cujo fundamento nem procurei averiguar. Tudo o que fiz foi insignificante. Quero dizer, foi de nula importância e de ainda menor significado. Acabei de ler um romance, onde personagens obsessivas caminham na vida sonâmbulas. Quando fechei o livro, pensei que muita gente vive mergulhada em obsessões. Procuro as minhas, mas sou cego e talvez sonâmbulo. No friso das orquídeas, começam a abrir-se os botões. Quanto tempo demorará a beleza, pergunto-me. Sem perceber a razão, na mente formou-se a palavra obsidiana e logo uma certa decepção se abriu no espírito. Quem me dera ter-me entregado a longas taxionomias de rochas, árvores e pássaros. Saber-lhes os nomes, as cores. Agora é tarde. Estão-me vedadas a mineralogia, a botânica e a ornitologia. Em tudo isso há mais sabedoria do que nas vãs teorias com que entretenho a passagem por este mundo. Vejo uma belíssima esfera de obsidiana negra, talvez do tamanho de uma bola de andebol. Nela se pode espelhar o mundo. Está à venda por dez euros. Ou a oferta é muita ou a procura é pouca, pensei. Depois, ri-me com esta consideração económica e cheguei ao fim do que tinha para dizer. Nada, claro. 

domingo, 24 de janeiro de 2021

Domingo de eleição

Fui à varanda do escritório. De lá poderia ver a mesa onde votei, não fosse o caso de os pavilhões gimnodesportivos terem paredes. A rua, uma perpendicular à Sá Carneiro, por norma sem movimento, está concorrida. Não há aglomerações, pois as pessoas, espontaneamente, decidiram distribuir, ao longo do dia, o momento de votar. Estes rituais cívicos são interessantes e corroboram a ideia de que a vida necessita de uma certa ritualização. Isso parece engrandecê-la e dar-lhe sentido. Olho para a janela e vejo um casal que vem de votar. Ela leva um filho pela mão, ele empurra um carrinho de bebé. O dia está tristonho, mas tem evitado a queda de água. As pessoas caminham cautelosas e, apesar do que se passa, deixam transparecer o orgulho de terem ido às urnas. Oiço o arrulhar dos pombos, o ladrar de um cão. Da minha janela avisto, não sem surpresa, o letreiro, por certo luminoso, de uma multinacional dos hambúrgueres, a qual acabou de se instalar mesmo em frente de uma outra multinacional do mesmo ramo. A isto chamam concorrência. Aumentou a liberdade de as pessoas se empanturrarem de hambúrgueres. Podem ir comer um num estabelecimento, saem a correr e vão comer outro, no da frente. A sua felicidade há-de, assim que a pandemia o permitir, expandir-se e de tão felizes os corpos hão-de também entrar em expansão. Um dia, um franciscano que foi meu professor, contou que estivera um ano nos Estados Unidos e que lá as Igrejas tinham sempre diferentes tipos de vinho para a consagração. Era uma forma de assegurar a liberdade de escolha, acrescentou não sem ironia. O pior, pensei, é se o padre é muito indeciso e tem de as experimentar todas e várias vezes. O que seria ainda uma escolha livre.

sábado, 23 de janeiro de 2021

A cor da podridão

Quando, depois de almoço, assomei à varanda do escritório, pensei que Deus era, além do Grande Arquitecto, o Grande Lavrador. Tinha ligado a rega por aspersão e, das nuvens cinza pálida que O velavam ao nosso olhar, enviava uma chuva finíssima regar, não sem extremo cuidado, o mundo, preocupado com as suas culturas, muito dadas ao míldio e à botrytis cirenea. Que elas, tão propensas à murchidão e à morte prematura, não murchassem e as coisas não se tornassem mais dramáticas do que são. Foi este, juro-o, o pensamento que perpassou na divina mente.  Se me perguntarem, espero que não o façam, o que é a botrytis cirenea, eu responderei que é a podridão cinzenta. Todos sabemos que cada coisa apodrece na sua própria cor. Umas apodrecem em vermelho, outras em amarelo. Há as que apodrecem em negro e outras, as mais ousadas, fazem-no em branco. Apesar de ser sábado, passei a manhã em meditação conjunta, embora à distância, sobre a vexata quaestio da moralidade, ou ausência dela, do aborto. Não me perguntem a que conclusões cheguei, pois recuso-me a partilhar o que aflorou à minha mente, que não é divina. Ainda hei-de meditar sobre a eutanásia e, pasme-se, sobre a moralidade da pornografia. Aquilo para que uma pessoa está guardada. No entanto, posso informar, estas meditações não conduzem os meditantes ao nirvana, nem a experiências místicas e ajudam, a quem a elas se entrega, a ficar com mais dúvidas do que aquelas que tinha, se é que as tinha. Uma coisa, talvez a única, vale a pena meditar. Se as alfaces podem apodrecer com botrytis cirenea, qual a cor em que pode apodrecer quem se entrega a pornografia?

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Uma nova página na odisseia

Tendo almoçado, fui à varanda do escritório desconfinar e fumar um cigarro. Não se pense que sou um fumador. Não sou. Por vezes, fumo um cigarro – na verdade fumo entre 1/4 e 1/3 de cigarro – e passo dias, semanas, meses sem tocar no tabaco. Enquanto o fumo subia aos céus em volutas, nestas ocasiões o fumo sobe sempre em volutas, ia vendo como o país confinado andava pela rua. Avistei dois anjos e meti conversa com eles. Responderam-me que não fosse idiota, que não eram anjos, mas pombos. Que não tornasse a dirigir-lhes palavra, pois não voltariam a responder-me. Encolhi os ombros resignado. Animou-me a visão do que se passava do outro lado da avenida.  Uma gata no telhado daquilo que já foi um banco e agora é uma dependência vazia. Uma gata? Como é que sabes? Um dia contaram-me, e eu acreditei, que os gatos não têm mais de duas cores. Ora, aquele bicho tinha pelagem branca, preta e amarela. Portanto, tricolor. Logo, uma gata. Caminhou com cuidado e deitou-se a apanhar uma réstia de sol. Na calçada, havia quem passeasse cães invisíveis, enquanto na estrada os carros passavam, vagarosos, uns a seguir aos outros. Voltei para dentro e sentei-me a escrever mais este capítulo que há-de fazer de mim um Ulisses dos tempos modernos, um herói que vai à varanda e logo volta para dentro para perguntar qualquer coisa à Penélope, que lhe há-de dizer que fumar cigarros, no plural, não faz parte da qualquer odisseia digna desse nome. A mania dos pormenores. Uma das minhas netas está em isolamento profiláctico, pois um colega testou positivo à COVID-19. As sextas-feiras são sempre dias exaltantes.

quinta-feira, 21 de janeiro de 2021

Sobre os milagres

Cheguei à noite de hoje cansado e parece-me que já não sei que hoje é quinta-feira. O dia esteve feio, chuvoso, desabrido, como aquelas pessoas que vivem descontentes com tudo e com todos. Constou-me que os portugueses se têm de recolher, uns mais que outros, mas a vida é sempre assim. Tem nela um princípio de desigualdade que se entretém a diferenciar a realidade. A uns faz formigas, a outros dá-lhes o ceptro do leão. Talvez a vida, por andar desocupada e cultivar o ócio, se divirta com estas distribuições de poderes e disposições. Confesso que não faço ideia do que estou a falar. Há pessoas que não acreditam em milagres, mas fazem mal. Eu fui miraculado ainda hoje. Nem sei como consegui fazer, num tão curto espaço de tempo, uma daquelas tarefas que por vezes se têm de fazer e que demoram, demoram, demoram. Quando a acabei, pensei que tinha sido um milagre. Como eu não sou santo milagreiro nem dos outros, tenho de concluir que não fui que fiz aquilo que fiz. É muito triste uma pessoa pôr-se a escrever e não ter nada para dizer. Está na hora de jantar.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2021

Sem GPS

Um dia feio este vigésimo do primeiro mês do ano da graça de 2021. Neste momento, a chuva entrega-se à torrencialidade, como se fosse alguém dado a uma loquacidade imparável. Estas comparações são exercícios de quem lhe falta talento para uma boa metáfora. Ainda por cima nem são assim tão verdade. A chuva já abrandou, mas a feiura do dia mantém-se. Consta que a beleza é uma coisa passageira, o mesmo já não acontece com a feiura. É, como os diamantes, eterna. Esta comparação, recebo a notificação do homúnculo interior, é uma coisa dispensável. Que trivialidade. Bem sei, respondo-lhe, mas cultivo a trivialidade e faço do banal a casa onde habito. Os dias não têm estado simpáticos e as pessoas estão a perder-se um pouco na compreensão do que se está a passar. Também eu ando perdido, mas isso não é de agora. É a minha própria natureza. Perco-me com facilidade. Consigo inclusive perder-me no sítio onde vivo há tanto tempo. Chego a pensar que o melhor, mesmo para as viagens mais habituais, seria andar sempre com o gps ligado, embora isso seria presumir que me saberia orientar por ele. Quando chove de forma abrupta, recordo-me do pobre do Noé a andar por aí à deriva, encafuado numa arca com aquela bicharada toda. Então, temo que venha outro dilúvio, outra arca e outro Noé, mas nessa altura não estarei cá para fazer o relato fidedigno. Há coisas que me esperam.

terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Nos recantos da existência

Os dias devoram-se uns aos outros, presos a um canibalismo ancestral e azedo. Dois terços de Janeiro já quase cumpridos e o pequeno mundo onde levo a minha pequena vida não deixou de ser um pequeno mundo onde levo uma pequena vida. Pareceu-me, ao observar de longe, que há mais recolhimento, mas talvez seja tudo por culpa do Sol e da depressão Gaetan, que estará a bater à porta, com as facécias habituais de todas as depressões. Ainda há quem vá por aí, corajoso, a dar o peito às balas, para depois contar, não sem vanglória, que sim, que vírus como este até os come ao pequeno-almoço, que é aquela expressão litúrgica que usam todos os corajosos do país que possui o QI médio mais baixo da Europa Ocidental. Basta ir comprar caramelos a Badajoz e logo se convive com uma população com um QI superior três ou quatro pontos. É o azar da geografia. Não devia escrever estas coisas, pois podem julgar que não contribuo para o nível da coisa. Claro que contribuo. Não me coube o dom da inteligência e lá tenho de arrastar a minha estupidez natural pelos recantos da existência. Na rua, há uma estranha luminosidade, esbranquiçada, como se nós estivéssemos no Inverno e o país sob o ataque de uma pandemia. Tudo falsificações da realidade, o Inverno é uma convenção demasiado humano, e a pandemia, um exercício distraído da natureza. Isto da pandemia ouvi-o há pouco e registei-o no livro imaginário onde guardo grandes frases para citar, caso se apresente a oportunidade. Quem não produz grandes frases, ao menos que cite as dos outros. Não tarda terei de ir alimentar espíritos, embora os espíritos não se alimentem, pois não têm corpo. Há que ocupar o tempo.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2021

As coisas são como são, ou não

A calamidade entranhou-se nos tecidos adiposos do país. Habituámo-nos a ela como nos habituamos a tudo. Está diante dos olhos, mas não a conseguimos ver. O hábito torna as coisas invisíveis. Foi o que me ocorreu ao olhar para os sites noticiosos. Também eu me tornei invisível para mim mesmo, de tão habituado que estou a ter de viver comigo. Talvez fosse isso que levou H. G. Wells a criar a personagem do homem invisível, apesar da motivação aparente ser de natureza científica. Nunca se sabe o que os artistas pensam e aquilo que lhes vai na cabeça quando criam as suas obras, inventam personagens e enredos. Na Sá Carneiro, os carros passam, passam, passam, enquanto avós mascaradas levam pela mão netos sem máscara, caminhando vagarosamente, tomadas pelo frio do entardecer, conformadas com o novo tempo. O crepúsculo galopa pela planície do dia, mas hoje não haverá fogo-de-artifício, nem horizontes de resplendor avermelhado, nem nada na paisagem fará lembrar o grande astro a mergulhar nas águas frias do oceano. Se ao menos houvesse por aqui uma tabacaria, e o Esteves estivesse à porta, então a vida pareceria normal. Assim, transeuntes visíveis passeiam cães invisíveis e as coisas são como são, ou são como parecem, ou não são uma nem outra coisa. As segundas-feiras nunca são fáceis, tornei a confirmar.

domingo, 17 de janeiro de 2021

Um Sol pouco cooperante

O Sol decidiu não cooperar com o confinamento. Agora que era preciso que se resguardasse e desse à palidez, decidiu tornar-se um belo sol de Inverno, quente, mas não excessivo, afável, sorridente, disponível para acolher sob o seu manto todos aqueles que não têm disposição para estar em casa. Os ditames da natureza e as necessidades dos humanos raramente se acordam sem atrito. Os cafés estão fechados, as pessoas parecem cautelosas, mas o Sol sorri provocante. O domingo corre manso, certo que chegará ao fim. É como um daqueles velhos rios que nunca se apressam para chegar à foz. Comecei a ler um romance de um autor que nunca lera, Hermann Ungar. A obra tem por título Os Mutilados. Foi publicada em 1923 e tem um universo não menos fechado do que os desenhados por Franz Kafka. Aliás, ambos partilham a condição de serem judeus checoslovacos e de escreverem em alemão. Enquanto ia lendo o livro, terei chegado a ¼, pensava que a mutilação será a condição da humanidade moderna. Todos os seres humanos terão sido amputados, não de uma perna ou de um braço, mas de qualquer coisa mais essencial, embora não saiba bem do quê. Não quero dizer que antes era melhor. Não era, tinha os seus próprios males. Oiço lá em baixo uma bola a bater, um pai e um filho dão chutos, entre exclamações e incentivos. Não aparentam qualquer mutilação, mas por certo ela estará dentro de cada um, tornando-os homens modernos. Das arcaicas colunas da aparelhagem, vem o som de um álbum de Bugge Wesseltoft, Everybody Loves Angels. Levanto-me e vou à janela. Eles lá estão nos telhados, os anjos. Disfarçados de pombos, olham com atenção para a cidade. Preocupa-os a inconsciência dos homens. Por vezes, juntam-se, conferenciam e partem em missão. A certa altura, bem o vi, tiram o disfarce e voam como só os anjos sabem voar.

sábado, 16 de janeiro de 2021

Efeitos do estupor

O facto de ser sábado tem-me trazido, nos últimos tempos, uma novidade, cada vez menos nova, saliente-se. Acordo com estupor e nem os rituais que se seguem fazem com que deixe de estar estuporado durante longo tempo. Sento-me, paralisado, e fico a olhar para nenhures. Isto trouxe-me à lembrança os velhos da aldeia onde nasci que se sentavam ao sol no largo da Igreja e ficavam ali, presos no estupor, a cismar, como quem acerta contas com a vida. Esses velhos já não cismarão há muito, pois quando o faziam eu era criança e agora sou quase tão velho quanto eles o eram. Terá chegado a minha vez de cismar. Apesar desses velhos serem exímios cismadores, não há como os gatos para o fazer. Ficam de olhos semicerrados, imóveis, talvez com pena de não serem esfinges egípcias, enquanto o tempo passa e eles meditam. Alguns, posso assegurar, atingem então o nirvana reservado aos felinos e transformam-se em budas. Nada disso, porém, acontecia com os velhos da minha aldeia. Nunca se tornaram budas. O que será também o meu destino, pois nasci na sua aldeia e talvez sejamos das mesmas famílias, nem que seja lá muito atrás. Ainda não espreitei a Sá Carneiro para descortinar a intensidade com que os meus conterrâneos estão a confinar. Julgo que terei de ir fazer compras, mas o que me apetece mesmo é ficar o dia a olhar para lado nenhum, como se fosse uma esfinge ou um gato, a cismar sobre o mundo e a vida, ou sobre coisa nenhuma que ainda é o melhor que há para cismar. Tudo isto por causa do estupor.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Boinas bascas e soluções hidroalcoólicas

De manhã, lembrei-me de várias coisas sobre as quais viria aqui escrever. O problema reside na quantidade, pois com o passar das horas esqueci-me de quase todas elas. Sobram-me duas. Talvez toda a gente tenha tido a experiência da estranheza que sinto quando, de repente, se vê uma pessoa, que sempre se viu com máscara, sem ela. Há um desconforto, pois aquele rosto não condiz com a expectativa que se tem dele. O que me surpreendeu há dias foi, porém, outra coisa. Pessoas que se conhecem muito antes da pandemia e que se passaram a ver sempre de máscara, se a tiram acontece a mesma sensação. Aquele rosto, tão bem conhecido, tornou-se incongruente, alguma coisa não bate certo. Uma outra coisa de não menor importância está ligada à solução hidroalcoólica que comprei. Cada vez que a uso, desprende-se dela um odor a aguardente de figo, coisa que em tempos foi um dos bens mais banais que havia por estes sítios, onde não faltavam destilarias, umas mais legais, outras nem por isso e havia histórias de candonga, apreensão de alambiques, como se se estivesse nos Estados Unidos, no tempo da lei seca. São estas coisas que me ocupam o espírito. Na escola aqui ao lado, vejo passar, solitária, uma professora. Vai carregada de máscara e de pasta e leva-se resignada até ao portão por onde se há-de escapulir para entrar num carro. Na avenida, um homem de idade arrasta-se, o passo descompassado, as pernas bambas, o corpo pesado, os anos em cima dos ombros e uma boina basca na cabeça. Talvez a vida seja isto, máscaras que se ajustam ao rosto e o ocupam, álcool a cheirar a aguardente, professoras resignadas levadas pela pasta que carregam e homens de boina basca a passear ao sol. Quando cheguei a casa pensei que iria almoçar ao bar da esquina, comer alguma coisa que me fizesse mal e me soubesse bem, mas o bar está confinado. Um dia destes compro uma boina basca e vou para Bilbau.

quinta-feira, 14 de janeiro de 2021

Descontinuações

O dia esteve agradável, mas agora o frio começa a afiar a sua lâmina de aço inoxidável, pronto para traçar pequenos golpes nos corpos incautos. O magnífico sol de Inverno declina, enquanto o país resvala para um confinamento em que não se confina por aí além, como acontece na generalidade das coisas que se fazem por cá. Fazem-se, mas nada de ser fanático e levar a vida a sério. Há tempo para tudo. Não sei o que me terá dado para falar do país. No parque infantil da praceta, fechado desde Março, há uma casota de onde sai um escorrega. Dois adolescentes decidiram abrigar-se ali das intempéries, apesar do céu estar limpo. As acácias exibem os ramos despidos, enquanto a relva da escola ao lado toma, com o entardecer, uma coloração verde cinza. O Word, onde escrevo, avisa-me que tem actualizações disponíveis, mas que necessito de fechar algumas aplicações. Mais tarde hei-de aplicar-me e fecho as aplicações. Também eu preciso de actualizar o meu software, mas o representante informou-me que o hardware é obsoleto e que as actualizações para ele foram descontinuadas. A palavra descontinuado começa a irritar-me e, não tarda, gerará em mim o mesmo sentimento de repugnância que a palavra resiliência. Janeiro está a chegar a meio e ainda não percebi o que foi feito aos votos de bom Ano Novo. Foram sequestrados? O mundo não é um lugar fácil.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2021

Um país confinado à nascença

Quando a luz começou a cair sobre a cidade, os carros estavam revestidos por uma carapaça de gelo, talvez um escudo contra um inimigo sem nome e sem rosto. Foi o que pensei ao olhar para a Sá Carneiro, ainda sem transeuntes, mas com carros a circular devagar, a tiritar de frio, enregelados no motor. Depois de me libertar do aparelho que me espiou o coração durante 24 horas, fui à frutaria, aqui mesmo ao lado, fazer um recado. Na verdade. Hesito se hei-de dizer na verdade ou em verdade, em verdade vos digo. Um dia destes tomarei uma decisão sobre o assunto. Na verdade, dizia, não passo de um moço de recados.  Para além do recado, achei por bem comprar umas clementinas. Talvez sejam marroquinas ou, mesmo, tangerinas. Não sou muito atento às classificações e depois não sei aquilo que como, pois não é a mesma coisa, presumo, comer uma tangerina, uma clementina ou uma marroquina. O melhor seria comer apenas laranjas, ao menos não havia dúvidas e evitaria que se fizessem interpretações capciosas do que escrevi. Enquanto esperava que me chamassem para me tirarem o aparelho e arrancarem os eléctrodos, vi na televisão que o país vai confinar mais uma vez. Esta conversa cansa. O país, desde que nasceu, está confinado entre o mar e Castela. O confinamento não é um acidente pandémico, mas a nossa natureza. Nascemos confinados e dessa condição não nos livramos, mesmo que comamos marroquinas e tangerinas, esses frutos que nasceram além-mar, não deixamos de ser o que somos. Não juro que o Holter, aquele aparelho que monitoriza um ECG dinâmico, não produza radiações que afectem senão o cérebro, pelo menos a mente.

terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Coisas do coração

Há um quarto de século que me andam a espiar o coração. Olham para ele através de um monitor, fazem umas medidas, ligam-me a umas máquinas e observam o traçado de umas linhas esotéricas. Abanam a cabeça, dizem pois, muito bem. Fazem relatórios e, por fim, exclamam está tudo bem. Não encontrámos nada. Está provado, penso, que não é no coração que estão o amor, o ódio, a indiferença. Durante 25 anos e nunca encontraram nada, nem um pequenino sentimento, é porque não há, naquele lugar inóspito, nada para encontrar. Isso reconfortou-me, pois já basta a google saber sempre por onde eu ando, seria escusado que uma máquina soubesse os meus estados de ânimo afectivos, caso os tenha. Há alturas em que me ligam a um pequeno dispositivo e ando com aquilo durante 24 horas. Consta que é para fazer registos. Também hoje, depois de me terem olhado para dentro do coração e de me terem ligado a uma máquina de fazer tracejados, me colocaram um aparelho desses. Tenho sempre a sensação de que me tornei um bombista suicida com aquela coisa pendurada no peito. Depois, a menina entregou-me uma folha de registos. Regista aqui, nesta folhinha, disse ela usando o diminutivo, e começou a enumerar. Regista isto e aquilo, refeições, tomada de medicamento, esforços físicos. Também os sinais que o coração, entretanto, se dignar dar. Pode fazer tudo, diz ela séria e sem segundas intenções, menos tomar banho, que é a coisa que faço mal me levanto. Agora ando com a folhinha atrás de mim, e isto é a gesta que me cabe. Enquanto Ulisses foi tomar Tróia, eu ando com uma maquineta pendurada ao pescoço para me espreitarem as linhas do coração durante um dia. Reparo que a folhinha também exige que registe emoções. Terão desconfiado de alguma coisa? Querem ver que é mesmo no coração que moram os sentimentos.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2021

Mudanças e permanências

O primeiro terço de Janeiro está arrumado. Passaram-se coisas extraordinárias no mundo, mas este continua aquilo que era. Um sítio onde se passam permanentemente coisas extraordinárias. Talvez o mundo tenha sido criado por Giuseppe Tomasi di Lampedusa que, numa sexta-feira de ócio, terá decidido trazê-lo à existência, para se distrair do spleen. Em tempos, uma frase retirada do seu célebre romance O Leopardo fascinou-me. Nessa altura não era difícil encontrar coisas fascinantes. Começo com a frase em italiano para dar ar de culto, mas a verdade é que a encontrei na internet, pois de italiano sei ainda menos do que de todo o resto. Se vogliamo che tutto rimanga come è, bisogna che tutto cambi. A tradução não é difícil. Se queremos que tudo permaneça como está, é necessário que tudo mude. Talvez nesses dias me interessasse por coisas que não devia. Com o passar dos anos – isto hoje está a tomar um tom miseravelmente confessional – cheguei a outra proposição: Se queremos que tudo mude, é necessário que tudo permaneça como está. Caso me interessasse por política, daria muito mais atenção à minha proposição do que à do Lampedusa. No entanto, o autor proibiu-me de tocar assuntos desses nestes textos. Como narrador obediente, obedeço. O dia esteve esplêndido. Frio e com um sol que se desfazia em cintilantes raios luminosos. Quando atravessei a cidade, os meus olhos não viam mais nada senão o revérbero solar. Mesmo nesta hora em que o crepúsculo se aproxima, a luz ainda está viva, avermelhando-se para poente. A noite será fria anunciam os sites meteorológicos. No friso das orquídeas, a branca está a preparar-se para florir.

domingo, 10 de janeiro de 2021

Dar feedback

Naquele sítio onde oficio liturgias várias para uma população de ateus, corre em abundância, por mímesis da linguagem da conferência episcopal ou do comité central, que cada um escolha o que mais lhe aprouver, um som e uns rabiscos que me querem fazer crer que são uma palavra. Trata-se de um estrangeirismo já devidamente dicionarizado, com amplas explicações. A palavra, se aquilo é uma palavra, é feedback. Sempre que a oiço apetece-me ser castelhano, coisa ainda pior do que ser espanhol. Agora é todo um ritual executado a partir de um evangelho, ou de uma resolução do comité central, para continuar a haver liberdade de escolha, cheia de feedbacks. Tenho de confessar que têm alguma razão, pois tudo aquilo não passa de um ruído sibilante produzido não por aparelhos de transmissão sonora, mas por mentes que perderam o sinal da realidade e se afundam no vazio cósmico. Dito de outra maneira, trabucada de náufragos. Não devia pensar nestas coisas ao domingo, ainda por cima este que já está submetido ao confinamento. Também a minha mente está confinada. Já não tenho idade para este tipo de pantominices, embora a pantomina se tenha tornado há muito a natureza da coisa, o que faz de mim um pantomineiro. Isto para dar feedback.

sábado, 9 de janeiro de 2021

Dia da criação

Há aquele poema de Vinicius de Moraes que tem por título Dia da Criação e rodopia todo ele em torno de sábado. Foi dele que me lembrei ao visitar a balança, porque hoje é sábado. Ela agradeceu e foi simpática dando-me menos seiscentos gramas do que na visita anterior. Porque hoje é sábado. Isso animou-me e, depois de cumprir todos os rituais que cabem a quem se levanta, fui à rua. Estava um frio cortante, mas o sol caía sobre o corpo, e ambos se entregavam a um jogo agradável. Cheguei à farmácia, tive de esperar apenas uns minutos na rua, para me abastecer daqueles correctivos que contribuem para que um conjunto de valores se mantenha dentro dos parâmetros normais. Claro que, se fizesse um controlo antidoping, era logo suspenso e proibido de competir. Retiravam-me, casos as tivesse, todas as vitórias. Depois, gozando o frio e o sol, dirigi-me para uma grande superfície, para levantar uns livros numa lavandaria. Também aí, à entrada da superfície, tive de esperar numa fila ao frio e ao sol, mas tudo deslizou rapidamente. Os livros, infelizmente, não visam o prazer de ler, mas são suporte para a tortura do trabalho. Eu fui educado na tradição católica e esta, como se sabe ou deveria saber, começa logo por informar que o trabalho é o resultado de um castigo imposto a Adão e Eva e respectivos descendentes. Depois, a palavra trabalho deriva do termo latino tripalĭu, um instrumento de tortura. Que haja gente viciada em trabalho é coisa que não me admira. Fazem-me lembrar os flagelantes que na Idade Média se entregavam à autoflagelação pública. Na verdade, como a Igreja terá suspeitado, aquilo deveria dar-lhes prazer e logo foi proibido e considerado pecaminoso. Livros para castigo e tortura foi o que fui levantar, eu que não sou dado a heresias e a flagelações. Porque hoje é sábado.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2021

Fazer resumos

Ulisses e Telémaco, foram estes nomes que ouvi. À minha neta, com os seus doze anos, foi-lhe dada a missão de resumir cada um dos capítulos da Odisseia, na versão para jovens de Frederico Lourenço. Discutia, em videoconferência, o assunto com a avó. Espreitei no computador, ela disse-me olá avô. Está quase, acrescentou, e ergueu os dedos em sinal de vitória. Temo que o feito não seja tanto o de passar a amar a literatura clássica, mas de ter despachado a provação e ver-se livre, para sempre, de tal odisseia. É um admirável mundo novo. Até eu me sinto como fazendo parte de um filme de ficção científica. Depois, fui à varanda do escritório. Estava um frio cintilante, matizado de prata e oiro, mas em poucos instantes tudo ficou mais baço, a luz esmoreceu, o frio arrefeceu e julguei que iria tiritar. Chegavam até mim os ruídos da saída das escolas. Junto a um carro, três homens trocavam impressões sobre limpa-pára-brisas. No passeio, uma mulher de chapéu e máscara apressava-se como se fugisse de um monstro. Se tiver um cão, oiço dizer à pobre resumidora de capítulos, hei-de pôr-lhe o nome de Argos. Não se perderá tudo, pensei. Ao longe, os vidros do hospital reverberam, enquanto cedros e pinheiros dançam uma valsa ao som da música do vento. Poderia ter evitado esta última frase. Acho que vou fazer um resumo, seja lá do que for.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2021

Depois das cinco

Passam das cinco da tarde. O sol ainda brilha com algum vigor. Notei, nos últimos tempos, que houve uma transformação nos dias da semana. Anteriormente, só os do fim-de-semana tinham encolhido, enquanto os da semana se dilatavam de tal maneira que era um cansaço atravessá-los. Agora, entraram em dieta e também eles minguam. Passam tão rapidamente, que temo o dia em que os próprios dias desapareçam. É da natureza humana nunca estar contente com nada. Se os dias da semana se dilatam, protesta-se. Se se amesquinham, protesta-se. Na avenida, um casal cansado atravessa lentamente o seu acasalamento. Já não protestam. Escondem a cara na respectiva máscara e marcham lado a lado como se estivessem apostados em seguir duas rectas paralelas. Nem dão pelo bando de adolescentes que por eles passam, com a efervescência do corpo e saltar-lhes da boca. Um cão, livre da trela do dono, pára e fica a olhar as cavalhadas, depois corre para o relvado, onde encontra a árvore certa para erguer a perna. Pais apressados vão buscar os filhos à escola primária, metem-nos rapidamente no carro e desaparecem. As tílias tiritam de frio, enquanto os dois jacarandás que avisto continuam envoltos num sobretudo verde outonal. Talvez este ano chova pouco, pensei. Há-de fazer falta a água. Não são poucas as coisas a precisarem de lavagem.

quarta-feira, 6 de janeiro de 2021

Há que ligar o scanner

Está consumado o Natal. Hoje é dia de Reis. Vejo-os ao longe, a descerem dos camelos que os trouxeram do Oriente, ajoelham perante o Menino e depositam com cuidado as suas oferendas. Amanhã, o presépio será desmanchado e, com os outros adereços natalícios, confinado numa arrecadação até que se inicie o próximo Advento. O dia nasceu festivo, mas tem-se toldado e agora um véu cinzento esconde o sol. Tenho mil tarefas pela frente. Olho-as com bonomia, pois um olhar menos agradável não as faria desaparecer e haveria de me tornar mais azedo. A isto chama-se aceitar o princípio de realidade, embora esteja convencido de que a própria realidade tem muitas dúvidas em aceitar-se. Não sei por onde começar, talvez por scannerizar um papel que, transubstanciado em pdf, hei-de enviar para um sítio que diz estar à espera dele, para se certificarem de que eu existo e que sou quem sou. Sorrio e digo-me que deve haver alguma fantasia literária em todo este mundo burocrático. Se nem eu tenho a certeza de ser quem sou e, ainda menos, se existo, como pode alguém ficar certo apenas porque lhe chega um arquivo digital que diz que sim, que fulano de tal existe e é quem é. Arquivos digitais qualquer um pode enviar, talvez até se possam enviar a eles mesmos, os arquivos. Tudo isto parece-me uma novela, e como sou o protagonista principal, uma novela de má qualidade. Os Reis Magos podiam ter chegado um pouco mais tarde. Afinal, o Menino ainda não tem idade para apreciar os presentes e as festas prolongavam-se mais um pouco. Há que ligar o scanner.

terça-feira, 5 de janeiro de 2021

Devaneios de Inverno

Levantei-me ainda o dia não tinha nascido. Quando a luz caiu sobre a Sá Carneiro, mostrou os carros estacionados cobertos por um duro escudo de gelo. Pouca gente se aventurava pelos passeios. O dia, depois, cresceu em luz e alguém terá dito hoje está um belo da de Inverno. Também eu seria capaz de o dizer. Gosto desses dias em que o corpo é rasgado pela espada do frio, mas o coração consola-se com aquele pequeno calor. Como uma criança, posso entregar-me a esse jogo de quente e frio, enquanto da boca saem baforadas como se estivesse a fumar. Os Invernos daqui não são dos mais suaves. Se o céu está limpo, as temperaturas descem até se tornarem cortantes, mas depois tudo se compensa com a cintilação de uma luz vibrante, na qual quase se pode discernir ondas e corpúsculos, mas isto não deve ser acreditado, pois é apenas a minha tendência para a hipérbole. Leio que se deve renunciar ao desejo de ser outra coisa diferente daquilo que se é. Medito longamente na frase, depois encolho os ombros e não sei o que hei-de fazer com ela. Nos campos da escola ao lado, rapazes jogam com bolas e não deixo de me espantar com o poder de atracção que uma bola exerce sobre o espírito. Engana-se quem pensar que a relação com uma bola é coisa do corpo. Os antigos gregos viam na esfericidade o sinal da perfeição. Alguém deu um pontapé numa das bolas, esta elevou-se bem alto e ao cair parecia uma lua a despenhar-se na crosta da terra.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Enigmas que me atormentam

Grandes enigmas existem no mundo e não há quem se disponha a desvendá-los, pensei, enquanto olhava para as mãos e me perguntava por que motivo as unhas dos meus polegares crescem mais depressa que as outras. Temo que um dia os dedos vítimas de discriminação se revoltem. Aprecio universos coordenados, coisas que se conjugam, a harmonia com que certos utensílios devem ser dispostos, e logo me haveria de calhar uns apêndices, pálidas imagens de antiquíssimas garras, pouco dados à isometria. No sítio onde, para pagar as contas, oficio uma liturgia que não encontra fiéis, estava um frio de cortar. A certa altura, vou para uma varanda e fico ali a apanhar sol, a ver se descongelava, para que a homilia me corresse bem e os participantes fingissem um apetite que sempre lhes falta. Agora que estou descongelado olho sobranceiro para a rua e imagino o frio que deve haver por ali. Eu não devia falar nestas coisas, pois as homilias caíram em desuso e os praticantes devem ser práticos e cada um produzir a sua própria homilia, para provarem que são autónomos. Estou por tudo, embora sinta uma grande saudade do tempo de Pitágoras, em que os discípulos do venerado mestre, antes de entrarem na congregação, passavam três a cinco anos a escutar lições de um mestre que não podiam ver. Vencida a provação, passavam de acusmáticos a matemáticos. Hoje, porém, são logo matemáticos, embora ainda que não tenham escutado seja o que for. Não sei se esta história é verdadeira, mas juro que não a inventei, que a li já não sei onde. E como vinha mesmo a calhar, lembrei-me dela. O Word está a irritar-me. Solícito, sublinha oficio, não vá eu querer escrever ofício. Se ao menos me explicasse por que razão as unhas dos polegares crescem mais depressas que as dos outros dedos, ainda me apaziguaria. Para primeira segunda-feira do ano, poderia ter sido pior.

domingo, 3 de janeiro de 2021

Psicologia da natureza

Sento-me e evito pensar em amanhã. Saí de casa para fazer umas compras. As esplanadas batidas de sol estavam cheias de mascarados, quase mascarados e não mascarados. As da 5 de Outubro, cobertas de sombras, dormiam vazias, sem que alguém se lembrasse de as acordar. Na avenida marginal, passeantes deslocavam-se lentamente. Os mais velhos com máscaras, ou mais novos nem por isso. Nas superfícies comerciais não há pluralismo relativamente ao uso de máscaras, o que para além de vantagens sanitárias terá outras. O dia já esteve mais luminoso. O sol terá perdido energia ou, para ser mais exacto, motivação para aquecer os pobres mortais. Os elementos da natureza também devem ser considerados na sua dimensão psicológica. Utilizar, para se lhes referir, palavras como motivação, resiliência, assertividade, e todo o conjunto de banalidades que caíram no discurso público. A lua cheia é muito assertiva, o mármore de Estremoz tem uma enorme resiliência e assim por aí fora. Só eu, que vivo num mundo de assertivos, não o sou. Nem isso, nem resiliente, nem motivado. Nem sequer inspirado. Bem tentei estabelecer um contrato com as musas. Eu cultuava-as, elas inspiravam-me. Riram-se na minha cara e voltaram-me as costas. Janeiro já vai no terceiro dia e é tudo o que há para dizer.

sábado, 2 de janeiro de 2021

Exercícios triviais

O sábado já começou a descer a encosta da tarde. Nunca deixo de me admirar como os dias sobem até ao pico do meio-dia e, lá chegados, não conseguem conter-se e toca a andar por aí abaixo, com o mesmo passo que os levou a subir a outra vertente do outeiro. Outeiro e não montanha, pois, na orografia do calendário, os dias não passam de montículos, uns enrugamentos sem importância. Na avenida, ainda há pessoas que deambulam ao sol, pais com filhos, gente que aproveita o bom tempo para caminhar, carros que precisam de exercitar as rodas e evitar o colesterol do excesso de gasolina, coisa que lhes poderia provocar um acidente vascular cerebral ou outro infortúnio semelhante, pois não há mecânico que, para prevenir tais azares, receite umas estatinas. Por falar em estatinas, essas deusas benfazejas de quem tem propensão para a gordura hemática, havia na Roma antiga, uma deusa nomeada Estatina, que era invocada quando as crianças davam os primeiros passos, talvez para que caminhassem no caminho recto ou com rectidão no caminho. Talvez não seja a mesma coisa. Se eu tornasse estes textos num diário, seria um registo da minha trivialidade. Raros são os dias em que tenho alguma coisa digna de ser contada. Sendo assim, nem grandes acções nem grandes palavras tenho para partilhar. Resta-me inventar uns disparates para passar o tempo, pois não passo de um pobre narrador, manipulado por um autor que se esconde e disfarça atrás de mim. Isso, porém, é um assunto da teoria literária e não vem para o caso. Está um belo sol de Inverno, e isso é o suficiente para desculpar qualquer idiotice.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

O ano começa volúvel

O ano começou sujeito ao império da volubilidade. Acordei relativamente tarde, abri a janela e recebi o cumprimento de um sol agradável e voluntarioso. Olhei o céu e descobri que a luz solar tinha aproveitado uma abertura nas nuvens para se entregar a exercícios de cintilação, uma operação circense para o dia de Ano Novo. Depois, as nuvens cansaram-se e uniram-se, formando um lençol cinzento, de múltiplos matizes. Uns mais claros, outros mais escuros. Agora, chove, mas também faz sol. Será que um ano que começa com tal instabilidade poderá ser bom? Dou uma vista de olhos pelos sites noticiosos e descubro notícias desagradáveis. Também é verdade que as coisas agradáveis raramente são notícia. Constou-me que não se pode andar pelas ruas depois das treze horas. Já falta pouco e também não tenho motivo para sair. Na Sá Carneiro, um casal caminha de mãos dadas, passa uma excursão de ciclistas, trocando chistes, e dois carros, em andamento lânguido, deixam um rasto de fumo ronronante. Não devias usar sinestesias, oiço-me dizer. Pois não, respondo, mas tenho uma vontade fraca e, ainda por cima, o odor dos raios de sol estimula-me a inclinação para a facilidade. Na minha secretária, um livro de poesia, outro de lógica e uma gramática disputam a atenção. Fecho os olhos e oiço Arve Henriksen com o Trio Medieval em St Birgitta Hymn – Rosa Rorans Bonitatem. Quero lá saber dos livros. No momento em que o defunto ano transitou para o que agora temos pela frente não me dei propósitos nem fiz pedidos. Já tenho idade suficiente para saber que qualquer ano se está nas tintas para desígnios e solicitações. A única coisa com que um ano, qualquer que ele seja, se preocupa é passar. Assim seja.

quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

Fiel à regularidade

Durante um ano, ainda por cima bissexto, dia após dia e sem uma única falha, escrevi um, e apenas um, texto destes. Nunca me imaginei tão fiel à regularidade e tão capaz de tal feito. Uma epopeia, digo para mim mesmo. Mais fácil teria sido ir a Tróia combater para devolver a Menelau, o lacedemónio, a mulher. Agora chove, mas quando saí de manhã, pareceu-me que o dia estava propício para o retorno de D. Sebastião. A chuva, porém, estragou tudo e ele já não volta. Há dias que sinto pena do pobre rei. Há tantos anos à espera de uma oportunidade para voltar, e sempre que se apresenta um nevoeiro dos antigos ele perde o avião e fica no seu exílio de ferrugem e latão, sabe-se lá por onde. Isto hoje está muito dado à monarquia. Um rei que perdeu a mulher e outro que se perdeu a ele. A cidade sob a névoa parecia outra, quase digna de um postal ilustrado, daqueles com decoração invernosa a preto, branco e cinza. Está na hora dos balanços e das expectativas, mas não estou com disposição para contabilidades ou projectos. O ano que termina foi o que foi, o que vai entrar será o que for. Nisto se resume a minha sabedoria, um conjunto de banalidades entrecortadas por lugares comuns. Por mim, abolia o calendário, mas como não me foi conferido poder para tanto, vou à varanda ver a chuva e fumar um cigarro.

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

Em busca do adjectivo perdido

Estou há duas hora à procura de uma palavra. Tive necessidade dela para compor uma qualificação, mas esquivou-se sempre, perdida no labirinto da minha memória. Há vestígios de pegadas e não me canso de seguir pistas, mas não consigo apanhar o maldito adjectivo com que haveria de qualificar um pobre substantivo. Consta que os substantivos partiram para exílio, condenados pelos óstracos preenchidos pelo punho de ferro dos gramáticos inovadores. Ainda na gramática de Celso Cunha e Lindley Cintra lhes era dedicado todo um capítulo. É verdade que a comprei há muito, num tempo em que ainda existia o jornal que se chamava O Jornal e havia livrarias que lhe pertenciam, num tempo em que um número de telefone da rede de Lisboa era composto apenas por seis algarismos, e os da província, onde a vida era mais simples e autêntica, por cinco. Se abrir uma gramática actual, não há substantivos, apenas nomes. Em contrapartida, O Jornal morreu há muito e os números de telefone chegaram aos nove dígitos. Um progresso. Um dia talvez partilhe uma meditação sobre o que se perdeu ao passar de substantivo para nome, mas hoje por hoje poupo o eventual leitor às coisas sem nexo que em mim são enxurrada. Além do mais, não me foi dada a vocação de gramático. Com esta conversa, a palavra continua em fuga e o substantivo parece impaciente, pergunta-me se demora muito a atribuição da qualificação, está com muita pressa. Respondo que há qualificações que podem demorar uma eternidade. A culpa é da burocracia do Estado, emperra tudo, sempre a levantar obstáculos às ideias maravilhosas e inovadoras dos cidadãos. Quando estes não as têm, como é o meu caso, a burocracia ataca a memória, esconde as palavras apropriadas, não hesita mesmo em fazer cair na ruína uma qualificação que haveria de determinar a felicidade senão de todos, pelo menos a do maior número, tudo de acordo com o princípio da utilidade. O problema é mesmo a burocracia, o labirinto processual kafkiano, o odor a naftalina que me vem à memória, o ranço da gramática que fala em substantivos, enquanto a outra, com odores de lavanda, fala em nomes contáveis e não contáveis, como se tudo não passasse de um negócio com contabilidade organizada. Se continuar a escrever, só paro em 2021, nem dou pela passagem de ano. Ah… encontrei o adjectivo.

terça-feira, 29 de dezembro de 2020

Uma dança rude

Acabei de fazer a primeira leitura do Poema à Duração, de Peter Handke. Depois, fechei o livro, extraí com cuidado da contracapa a etiqueta autocolante onde está o preço e a parafernália de informações que ali são encaixadas e colei-a no verso da capa. É um hábito inútil que adquiri há uns anos, uma espécie de habilidade manual que cultivo. Irrito-me se a operação corre mal e rasgo aquela peça informativa. Outras vezes, esqueço-me e a contracapa fica maculada com a prova de que um livro também é uma mercadoria. Não sei se era a isto que um certo autor do século XIX chamava fetichismo da mercadoria, mas bem podia ser. Bem, o melhor é afirmar desde já que sei que não era, antes que apareça alguém a querer discutir o conceito, que para mim não passa de um tropo literário para este texto. Não devias usar a palavra tropo, diz-me um dos homúnculos que habita a caverna da minha inconsciência. Mandei-o dormir e pus-me a contemplar o mundo lá de fora. As árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado já cresceram o suficiente para que as copas não me ocultem uma certa rotunda cheia de repuxos e umas figuras inomináveis vindas sabe-se lá de onde. Indiferentes ao desastre estético, os carros volteiam por ali e distribuem-se pelo mundo. Mais ao longe, as paredes do hospital que um dia foram brancas são agora um campo sujo, onde exércitos de fungos espalham véus de cinza escura. O sol sofre de raquitismo, mas as orquídeas estão quase todas carregadas de botões. Estão à espera que cheguem os Reis, para que as decorações de Natal sejam recolhidas e elas voltem para o friso de onde contemplam o universo. Depois de hoje, restam a Dezembro e ao ano dois dias. Virá então Janeiro e outro ano, mas nada disto é duração, apenas a dança rude do calendário.

segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

Mau humor matinal

Acordei cedo e levantei-me com péssimo humor, coisa que muito raramente acontece. Por norma, o humor matinal é mais de profunda ausência, de ainda estar num outro reino que não o da realidade, estado que o primeiro café liquida. Hoje, porém, não foi assim. Talvez tenha sonhado alguma coisa que, apesar de não saber o quê, me continua a irritar. Levantei-me e fui pôr o carro a tratar dos pneus. Daqui a duas horas estará pronto, informaram-me. Óptimo, respondi, e voltei para casa a pé, mas não se pense que tive de fazer uma grande caminhada. Talvez nem meio quilómetro. A manhã ameaça chuva e ainda levei com dois ou três pingos em cima, mas as nuvens, benévolas e divertidas com o meu humor, contiveram-se e permitiram-me chegar a casa sem percalços. Sentei-me no escritório, dei uma vista de olhos pelos sites noticiosos e confirmei o óbvio. O mundo ainda não acabou e continua a ser mundo, um sítio umas vezes péssimo para viver, outras o melhor dos mundos possíveis, e, na maioria dos casos, nem uma coisa nem outra. No Facebook alguém se queixa da burocracia a que está sujeito, dos relatórios a fazer e dessas coisas que a organização racional da empresa e do Estado modernos exigem, mas poupo os leitores a uma dissertação sobre Max Weber. Um raio de sol fende as nuvens, entra pela janela e ilumina-me as mãos e o teclado. Fico a olhar para o efeito de luz e sombra e sinto o mau humor a desfazer-se. Um segundo café e tudo entrará na velha ordem, onde serei uma pessoa benevolente e cheia de bonomia, digna da glória dos altares, não fora estar a mentir.

domingo, 27 de dezembro de 2020

A pequena pacatez

Tenho a vaga ideia de que quando acordei estava um domingo luminoso. A luz entrava pelas janelas como se fosse uma promessa de um mundo a vir, mas logo a intensidade da ilusão foi decrescendo, até que um véu de cinza cobriu a cidade encerrada na sua pequena pacatez. Da varanda voltada para a Sá Carneiro, não se avista qualquer transeunte, apenas carros vão passando com demora, distraídos, como se bocejassem melancolicamente durante um filme que não lhes interessasse. As minhas netas andam às voltas com os trabalhos de casa, que não são pouco. A mais nova sentou-se a meu lado e vamos discutindo uma história de papagaios, emigrantes e lavradores. No tempo em que frequentei a classe correspondente ao ano em que ela se encontra não me parece que os conhecimentos exigidos fossem tantos e tão complexos como agora. Eu sei que as pessoas que fizeram a escola nesses tempos soturnos, agora que o tempo edulcorou o passado, a acham uma coisa maravilhosa. O direito à ilusão também deverá estar inscrito na constituição e há que respeitá-lo. As noções de texto dramático que a pobre criança tem de saber excedem em muito aquilo que me terá sido exigido. Ela faz aquilo com bonomia, como quem diz que o que tem de ser tem muita força. Ensino-lhe a fazer um plano para escrever um texto, logo eu que nunca fui dado a planos, esboços e projectos. Olho para a rua e parece que a paisagem congelou, como se tempo tivesse deixado de existir e nada no mundo se movesse. Chaminés dos prédios vizinhos fumegam e na rua, suspeito, haverá cheiro a lareiras acesas. Oiço uma intimação para uma delas. Não quero ninguém de robe à mesa. Chegou a hora de almoço.

sábado, 26 de dezembro de 2020

Um náufrago à deriva

Estamos em pleno pós-Natal. Um sábado que não parece sábado antecede um domingo que há-de parecer outra coisa qualquer. Depois de um Natal todo ele passado em Lisboa, sem aquelas múltiplas viagens que a ausência de pandemia implica, um retorno à província, com netas atreladas. Tudo parecia bem, enquanto se consultava os sítios onde se poderia almoçar ao chegar. Pobres enganos. Acabada a escolha, um furo em plena A1, ainda antes das portagens de Alverca, deitou tudo a perder. Começou-se pelo exercício de despejar uma bagageira carregada como se se fosse mudar de casa. Os parafusos ainda saíram, mas a roda manteve-se firme no lugar, recusou-se a saltar de onde estava. A salvação veio de um carro da Brisa, onde alguém com um taco de madeira e um maço a ajudou a sair e, num gesto de gentileza suprema, colocou lá a outra. Estava colada, ouvi. Retomada a viagem, havia um sol brilhante e, no horizonte, uma lua esbranquiçada desenhava um crescente já bem visível. Sempre que a lua aparece durante o dia, tenho a sensação de estar num filme de ficção científica, num daqueles onde se salta de planeta em planeta com a maior das facilidades. Está um Inverno magnífico, com dias frios e uma luz intensa e vibrante. Na A1 havia pouco trânsito. Agora o sol desmaia-se lentamente, enquanto caminha em direcção àquele lugar a que chamam o sítio do sol posto. As raparigas são muito dramáticas. Uma leve dissensão motivada por um riso sardónico fora do lugar e logo temos direito a uma sessão bergmaniana de lágrimas e suspiros. A adolescência, com as suas borbulhas e humores volúveis, não é um lugar tranquilo para viver. No meu bloco-notas imaginário, escrevo: já tenho idade suficiente para ligar para o seguro e pedir para virem mudar o pneu. Era o que deveria ter feito, em vez de parecer um náufrago à deriva numa auto-estrada.

sexta-feira, 25 de dezembro de 2020

Dia de Natal

Há pouco ouvi os sinos a chamarem para a missa do meio-dia. Memória antigas chegaram até mim, recordação de um tempo em que a norma do dia de Natal impunha a missa e o almoço em família. Nunca me lembro de haver lá por casa qualquer inclinação pela missa do Galo. A celebração religiosa perdeu-se lá muito atrás. Uma outra memória, bem mais antiga que parece inventada, veio intrometer-se, e transporta-me para Lisboa, com a minha mãe a ir à missa na Basílica da Estrela e eu a ficar a brincar no jardim com o meu pai, que sempre conheci como descrente e nunca o vi em qualquer acto religioso. Isso foi há tantos, tantos anos, que esta memória apenas existe porque me terá sido contada e recontada. No telemóvel, uma fotografia do meu neto em frente de um enorme bombo, um presente de alguém não destituído de ironia. Os dias de Natal tinham um problema terrível. Os cafés estavam quase todos fechados. Era um suplício e um exercício de paciência encontrar, na província, algum aberto. Depois, tudo isso deixou de ser importante e há muito que se bebe em casa um café tão forte como na rua. Hoje o almoço será tardio, porque tudo nos dias de Natal se tornou tardio. Tanto quanto me lembro, nesta época, na televisão havia saltos de ski – recuso-me a escrever esqui – e, à tarde, um concerto de Natal proveniente da Eurovisão. Porventura, isto também será inventado. A televisão nesses dias era dada a grandes interlúdios musicais, acompanhados pela informação pedimos desculpa por esta interrupção, o programa segue dentro de momentos. Às vezes seguia, outras nem por isso. Qualquer prazer televisivo vivia sob a ameaça de se transformar num coitus interruptus, método contraceptivo então em voga e que tinha a vantagem de assegurar um razoável número de crias ao rebanho pátrio. Também havia o método da temperatura basal, que tinha o mesmo êxito, embora não se aplicasse à televisão.

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Dezasseis palavras por minuto

Olho para o telemóvel. Informa-me que são onze horas e onze minutos. Estes acasos fascinam-me. Contemplo os quatro uns perfilados, apenas interrompidos a meio por um sinal de dois pontos. Imagino, então, que o tempo se suspendia nessa hora, não porque o mundo acabasse, mas porque o tempo tinha sido abolido e aquela informação era já um sinal do passado, pronta para que arqueólogos a encontrassem e especulassem sobre o mundo em que havia tempo. Logo o devaneio foi quebrado, pois uma súbita metamorfose levou a que o um da direita se transformasse em dois e o tempo retomasse o seu império sobre mim e sobre o mundo. Lá fora, o sol brilha, embora haja momentos em que empalidece, como se recebesse uma notícia desagradável. A consoada já está a caminho montada no ginete desse tempo que não foi abolido. Será a mais estranha das consoadas que me será dado viver. Os rituais natalícios foram esventrados por outros rituais mais imperativos. O vírus não é destituído de estratégia. Aproxima-se sorrateiro, sem se mostrar. Começam a ouvir-se notícias de quem foi por ele apanhado e esse alguém está cada vez mais perto, até que o inimigo põe cerco e não deixa ninguém sair das muralhas acasteladas onde as gentes se agrupam para a resistência. Ainda não cheguei aí, mas é cada vez mais possível. O telemóvel interrompe-me. Uma mensagem informa-me que me será entregue uma encomenda até às 19 horas. Encolho os ombros e vejo que são quase onze e meia. Está na hora de acabar o escrito, não sem antes pensar se foi lento ou rápido o ritmo da escrita. Faço as contas, dezasseis palavras por minuto.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2020

Tempos de suspensão

Sinto sempre que nas festividades cristãs, o Natal e a Páscoa, há um excesso para o qual os homens não estão preparados. Não sabem lidar com elas, com a perturbação que introduzem no modo como entendem espontaneamente o mundo, o que os leva para a trivialidade. Apesar da minha condição, também nunca soube bem como viver esses momentos. Não são fáceis. O pior, hoje em dia, é este vírus e eu, como é visível, estou velho, demasiado velho. Não devia, mas talvez tenha medo. Isto foi o que me disse há pouco, quando me ligou para desejar um bom Natal, o padre Lodovico. Depois lamentou-se da não realização do encontro habitual do grupo que ocorre sempre num certo restaurante de Campo de Ourique entre o Natal e o Ano Novo. A vida sem esses encontros perde cor, e, acrescentou, vocês têm filhos e netos, eu só tenho a minha vocação. Não é pouco, mas. E deixou a conjunção suspensa. A vida tem mais mistérios do que aqueles que estamos preparados para admitir, pensei quando a chamada acabou e eu fui espreitar a Sá Carneiro, por onde pessoas e carros deslizam como num sonho. Um homem ainda novo, de máscara preta, caminha devagar. De um bolso tira o telemóvel e logo as costas se arqueiam, como se um peso inesperado lhe tivesse caído sobre os ombros. Ao longe, as torres do castelo olham com indiferença o que se passa na cidade. Ainda mais longe, os pequenos outeiros que me limitam a visão fundem-se com o céu triste do dia. O Natal está à porta. Faço uma lista de pessoas a quem devo ligar. Depois, enumero as velhas práticas da época que a virose descabelada me obrigou a suspender. Vou almoçar, antes que se faça tarde.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

Uma fartura

Uma fartura. Fui a uma grande superfície comercial para comprar um saco natalício para um presente de uma das netas. Cheguei lá, havia uma enorme fila para entrar no sítio onde se vendem essas coisas, local que também serve de estação dos CTT, tabacaria, reprografia, papelaria, livraria e sei lá mais o quê. Contemplei a fila, girei sobre os calcanhares e fui-me dali. Na rua, o negócio das farturas estava aberto. Nem hesitei. Tentado, deixei-me cair, sem querer saber de diálogos com a balança e outras frescuras que se organizam à volta do que se come e do que se bebe. Tenho o raio da saqueta para comprar, em resumo. Depois, veio a noite, a temperatura caiu um pouco e dirigi-me para casa. As ruas estão mais agitadas, as pessoas continuam apegadas aos rituais natalícios, quero dizer, comprar, comprar, comprar. Fazem bem, pode acontecer como aos pais do Menino Jesus que, em vez de marcarem antecipadamente o quarto pelo Booking, foram para Belém à sorte, confiados numa boa estrela. A estrela não era má, mas os quartos estavam todos ocupados. Se o caso fosse hoje, o Menino ainda era tirado aos pais, para os punir de não cuidarem do nascimento da criança, e entregue a uma instituição. Este segundo dia de Inverno esteve primaveril, com um sol simpático, que sorriu durante as horas em que esteve acordado. Talvez tenha guardado o mau humor para a noite.

segunda-feira, 21 de dezembro de 2020

A las cinco de la tarde

Hoje é o dia mais curto do ano, dia de solstício e, por inerência de funções, de começo do Inverno. Há pouco, temeroso de um rápido apagar de luz, fui à varanda do escritório contemplar o mundo envolvente, o céu cinzento e a aproximação do crepúsculo. Lá em baixo, o parque infantil jaz abandonado, os baloiços atados com fitas de plástico e uma proibição de frequência com nome de vírus. Uma sirene anuncia a aproximação das cinco da tarde, o que me traz à memória o poema de Lorca que começa precisamente A las cinco de la tarde. O poema tem por título La Cogida y la Muerte. Seria impensável em Portugal traduzir esse título como A Captura e a Morte. Isso, porém, aconteceu no Brasil. Não, não é uma captura, mas uma colhida, coisa que acontece nas praças de touros. Uma metáfora poderosa para o que sobrevém aos homens. Mais tarde ou mais cedo, todos acabam colhidos, por melhor que seja a faena a que se entreguem. Ao contrário do que se passa nas touradas, na vida o touro derrota sempre o toureiro e nem precisa que a filarmónica se entrega à euforia de um pasodoble. Numa tourada, o homem mata o touro, mas na verdade o que ele mata é a vida que o há-de matar a ele, num exercício que combina defesa preventiva e vingança antecipada. Se não vivesse na época em que vive, este narrador diria que uma tourada é um exercício de catarse. Porém, recusa-se a dizer tal coisa. Há crepúsculos fulgurantes, plenos de vermelhos, e há outros sombrios, como o de hoje. E eu que não queria falar nem de touros, nem de Lorca, nem de poesia, fui apanhado por tudo isso a las cinco de la tarde.

domingo, 20 de dezembro de 2020

Amanhã será outro dia

Dezembro galopa. Não tarda, terá deixado o Natal para trás e estará a bater à porta do Ano Novo. Não sei como ainda falamos em anos novos, a não ser por uma inclinação desmedida para nos iludirmos. Entre 31 de Dezembro e 1 de Janeiro, não haverá diferenças, nem novidades, nem inovações. Nada, a não ser estarmos um dia mais velhos, alguns mais velhos um dia e ressacados. Levantei-me cedo e estive a trabalhar durante toda a manhã. A tarde não vai ser diferente. Hoje não me chegam rumorejos da rua, talvez o silêncio seja um efeito de ser Domingo, ou do cinzento baço com que o céu se pintou, ou de o café da praceta estar fechado, ou de eu estar a ficar surdo. Há sempre tantas causas possíveis para aquilo que acontece, que nunca sei a verdadeira razão seja do que for. Ontem à noite brinquei com o meu neto. Vi desenhos animados e assisti a sessões de pintura no quadro branco que há no quarto das crianças. Já me trata por avô, isto é, por bô e, mal me vê, dá-me a mão e puxa-me para os sítios que quer visitar. Como é domingo, almoçarei tarde, para que uma velha tradição se cumpra. Amanhã será outro dia, a não ser que alguma coisa se passe no sistema solar, mas o melhor é não pensar nisso.

sábado, 19 de dezembro de 2020

Um vício deplorável

Um sábado desmaiado é o que nos cabe em sorte. Uma palidez de cinza cobre-o, enquanto oiço a libanesa Abeer Nehmeh a entoar cânticos sagrados maronitas, siríacos e bizantinos. Há muitos anos que sou sensível a tonalidades musicais que se afastam da tradição ocidental. Escutar essas músicas não é apenas um prazer estético exótico, uma espécie de revivescência do culto do orientalismo, mas fazer viagens a lugares onde turista algum poderá ir, ao espírito que se manifesta naquelas conjugações sonoras, que não precisam de tradução, mas antes de uma abertura do espírito ou do coração para que uma voz primordial fale através delas. Sob cada língua existe uma musicalidade e esta é, na sua particularidade e ao contrário das palavras, universal. Talvez a tradução entre línguas seja possível por causa da secreta musicalidade que a todas percorre. Hoje é sábado, como já fiz notar, e não deveria nesta manhã entregar-me a especulações sem nexo. Não resisto. Haverá coisas mais interessantes do que especulações sem nexo? Na praceta, uma rebarbadora entrega-se ao prazer de cortar azulejos e de me incomodar a audição da libanesa. É uma música infernal, pensei. Rebarbadoras, aspiradores, corta-relvas, toda a variada gama de instrumentos mecânicos são emanações das regiões inferiores, invenções de pequenos diabos desocupados, anjos caídos pertencentes às hierarquias mais baixas. Olho para a secretária, e o que lá vejo acumulado tira-me o ânimo. Logo, o meu neto vai estar cá, e isso salvará a anemia de sábado, o acumulado que vou desacumular e a rebarbativa música que me chega da rua. Devia escrever textos mais pequenos. A logorreia é um vício deplorável.

sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

A evolução das especies

Hoje é o décimo oitavo dia de Dezembro e o trecentésimo quinquagésimo terceiro dia do ano de 2020, segundo o calendário gregoriano que nos ajuda a lidar com esse animal escorregadio a que chamamos tempo. Como chapéus, também calendários há muitos. Servem todos eles para nos enraizar nessa coisa incompreensível que é o cosmos, dando-nos a ilusão de que sabemos a quantas andamos. A palavra deriva do latim calendarĭu, que significa registo e, também, livro de contas. Portanto, uma questão de contabilidade. Algum leitor incauto, ainda dira ah que rapaz tão culto, até sabe o que significa calendarĭu. Lamento a desilusão, ele apenas sabe consultar um dicionário. Seja como for, talvez saber consultar dicionários seja uma vantagem competitiva no processo evolutivo. Se analisarmos com cuidado nenhuma outra espécie humana – neandertais, denisovanos e outras – sabiam consultar dicionários. Resultado? Extinguiram-se. Tenhamos então esperança. Enquanto houver um ser humano que saiba consultar um dicionário, ainda que online, a espécie está segura e a extinção bem longe do horizonte. Neste momento já não consigo lembrar-me da razão porque comecei este texto como comecei. Talvez quisesse falar sobre a extinção das espécies, ou da noite que caiu há um bocado, ou de qualquer coisa que ignoro. Deixemos que a sexta-feira progrida lentamente e não se apressa a entregar-se nos braços do sábado. São dispensáveis cenas eróticas nestes textos.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Se sonhasse

Se eu sonhasse, sonharia que era um extraterrestre que me perdera neste planeta e que, para sobreviver, tinha de parecer humano e crer naquilo que os homens acreditam. Era um exercício difícil, pois há gente disposta a dar assentimento às coisas mais inverosímeis, parecendo haver uma indústria para produzir as maiores tolices e outra para adestrar os incréus na fé de crer nelas. Não faltam sacerdotes e sacerdotisas, apóstolos e apóstolas. O que me vale é que não sonho e, logo, não sou um extraterrestre. Por isso, por não ser um verdadeiro ET, posso comer chocolate ou fumar um cigarro. Hesito entre os dois e, passados instantes, escolho o chocolate e o cigarro. Os alunos do centro de línguas entregam-se a uma algazarra sem fim. Talvez seja um intervalo. A noite está a cair, enquanto o dia, envelhecido, se decompõe em finas partículas de poeira que o vento levará para longe da nossa memória. Alguém grita golo, e eu recordo-me de também ter gritado golo e apaziguo-me com o caravancerai que vai ali por baixo. Os meus dias passam com a finalidade de passarem e de me arrastarem com eles. Conformo-me. Tenho uma quantidade enorme de tolices para meditar. Talvez me conduzam ao nirvana.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Disposições cortantes

Tenho certa inclinação para comprar livros que ninguém, em perfeito juízo, se lembraria de comprar ou ler, mesmo que emprestados. Chegaram-me vários adquiridos num alfarrabista. Num romance, das Edições Ática, publicado em 1962, de uma autora que não terá deixado rasto na literatura nacional, há um registo manuscrito de posse do livro. Começa com o nome próprio, talvez um diminutivo, do proprietário ou da proprietária, ilegível, e depois os apelidos, um nome de família ligada à cidade de Leiria. Sim, fui investigar no Google. Na linha seguinte, diz apenas ano de 1966. Na terceira, surge Foi me oferecido pela. Na última, um nome de mulher, aliás, dois nomes, sem apelidos. O que interessa isto, perguntar-se-á. Nada, mas fiquei indeciso a que sexo atribuir a antiga propriedade da obra. É uma letra larga e, ao mesmo tempo, pontiaguda. Não há letra que não assente num único ponto, como se a intenção fosse cravá-las a todas nas linhas imaginárias. Fiquei com a impressão de que se trataria de uma pessoa com uma disposição cortante, talvez uma daquelas mulheres a que se associa a designação de víbora. Talvez esteja enganado, e o livro tenha sido oferecido à mais bondosa das pessoas. Nunca fui dado à grafologia. O romance nem começa particularmente mal: Há seres destinados a passarem como sombras pela vida, sem ocuparem lugar definido nem adquirirem vulto ou fisionomia que os distinga. Lido isto, logo senti uma estranha solidariedade com esses seres que passam pela existência sem que se tornem figuras. O pior, acudiu-me ao espírito, são aqueles que não apenas se tornam figuras, como chegam ao friso onde se amontoam os grandes figurões, cujo vulto e fisionomia todos conhecem, embora não haja quem não preferisse nunca lhes ter escutado o nome. A quarta-feira flui com lentidão, daqui a pouco terei direito a mais uma corveia, mas isso é o que acontece a quem não chega a ter vulto ou fisionomia que o distinga. O romance tem uma bela capa desenhada por Paulo-Guilherme e deve pesar mais de um quilograma. Nem tudo será mau ou pouco.

terça-feira, 15 de dezembro de 2020

Dobrar o cabo

Era meio-dia quando Dezembro dobrou o cabo e começou a inclinar-se para o fim que o espera. Chegado aí, virá Janeiro e um novo ano acolherá a embarcação onde nós, nautas sem destino, nos acotovelamos entre ilusões de regresso ao passado e esperanças que nunca deixam de fervilhar nas vísceras humanas. Pendem de uma tília da avenida algumas folhas amarelas. São tão poucas que quase me sinto tentado em contá-las, mas logo a atenção é requerida para outros acontecimentos, carros que se arrastam com vagares de gente desocupada, pessoas apressadas escondidas em máscaras, pequenos nadas com que ocupo o tempo. As orquídeas foram destronadas do seu friso pelos adereços de Natal, hibernam noutro lugar à espera que os Reis Magos cheguem a Belém, deixem os presentes e voltem para o Oriente, onde todos os anos os esperam. Então, voltará o friso das orquídeas, algumas já floridas e o tempo continuará a correr indiferente a dores e prazeres humanos, como sempre aconteceu e, presumo, sempre acontecerá.

segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

Sem agenda

Chove. Vejo as gotas de água dançar e, depois de uma hesitação, precipitarem-se para terra. Ao poisar, fazem pequenos lagos ou ribeiros incipientes. Pessoas passam abrigadas em guarda-chuvas, alguns com anúncios coloridos, outros mais sisudos. Há quem corra e entre num carro ou num café. Falta uma semana para que o Inverno chegue, mas ele já cá está há algum tempo. Faço uma lista de compras e outra de afazeres. Nem sei para que as faço, pois não tenho qualquer intenção de olhar para elas. Nunca tive uma agenda. Isto não é completamente verdade, mas as que tive nunca me serviram para nada. Até hoje não me fizeram falta. Vou a onde tenho de ir, faço o que tenho a fazer. Desconfio, porém, que não tarda e ser-me-ão de grande auxílio. Este ano, pela primeira-vez, esqueci o aniversário da minha sobrinha-neta. Passada uma semana, lembrei-me e achei o esquecimento um mau sinal. Apesar da chuva e das nuvens escuras, há momentos de reverberação, como acontece com certas lâmpadas que emitem um clarão intenso antes de se fundirem. Não tarda, e o dia funde-se. Nos sites noticiosos continua a contabilidade dos mortos. Os números são desagradáveis, mas ninguém quer saber. Os jornais começam a fazer a revista do ano, como se este fosse um ano que merecesse revista. Às segundas-feiras falta-me sempre assunto. Nos outros dias, também. Se dormisse uma sesta, ainda que tardia, tudo melhorava, mas não sou capaz.

domingo, 13 de dezembro de 2020

Ócio dominical

Quando há pouco olhei para a rua, o dia estava turvo, uma mancha de cinza húmida flutuava na atmosfera e caía lentamente no chão. Agora, porém, apesar do céu revestido por nuvens cinzentas, tudo se tornou definido como acontece quando se limpa os óculos sujos e embaciados. As cores tornaram-se mais vibrantes, os amarelos e castanhos das folhas mortas, os verdes daquelas que persistem por dentro da invernia, até os tons baços de muros e paredes ganharam uma nova vibração, um som mais musical. Das caves esconsas dos prédios saem automóveis para enfrentar as exigências de domingo, enquanto, sentado no escritório, bebo café e como uma fatia de bolo-rainha. E ao escrever isto, logo me maravilho com o progresso da igualdade entre géneros. Se não fosse excessivamente brejeiro e dado a más interpretações, diria que antigamente só o bolo do rei podia ser comido, agora também o da rainha se alcandorou ao êxtase da deglutição, mas para evitar mal-entendidos e interpretações falsas e ociosas afirmo que não escrevi o que acabaram de ler. Isto podia mesmo ocultar o mais importante. Assim como o arquitecto divino da costela do homem extraiu a mulher, também um pasteleiro humano de uma amêndoa torrada perdida no bolo-rei gerou o bolo-rainha. E em ambos os casos o segundo produto excedeu em larga medida a qualidade do primeiro. O que prova que Deus escolheu a melhor costela do homem, e o pasteleiro teve a sensatez de evitar criar o novo produto a partir da lamentável fava. Apesar da triste superficialidade do meu escrito, as cores continuam vibrantes, assim como a música que delas se desprende e inunda o universo até às esferas celestes. Como é belo o ócio dominical.

sábado, 12 de dezembro de 2020

A angústia progride

Atravessei há pouco parte da antiga vila, a zona a que por vezes, e talvez sem ironia, chamam histórica. Fico sempre sem saber se estou num filme distópico, uma pós-catástrofe, ou se num daqueles em que a desolação de certas zonas da América é trazida à luz por algum realizador arguto. Numa esplanada, havia pessoas sentadas, hirtas, umas de máscara e outras sem ela, mas todas olhavam para um sítio indefinido que parecia ter deixado de existir há muito. Prédios caídos, paredes por pintar, um comércio feito de ausências, uma tristeza sem fim, como se o futuro tivesse sido arrancado àqueles lugares e agora apenas existissem rugas e ruínas, memórias desfeitas, gente que se perdeu no caminho e ficou parada num tempo que não existe. Ocorreu-me que também eu não destoaria daquele cenário e acelerei o carro, afastei-me o mais depressa que a lei me permitiu. Depois, a tarde começou a enegrecer, a traçar as linhas que a haveriam de levar ao crepúsculo. Quando estacionei e saí, senti-me impelido a dar um pequeno passeio a pé, para me lavar por dentro, para dissolver o óleo rançoso que se acumulara. Agora a noite anuncia-se nos altifalantes de Dezembro, numa voz delida, numa pronúncia cansada. Enquanto escrevo, olho as acácias. Algumas folhas incertas resistem ao avanço da invernia, uma ambulância pára na urgência do hospital, assim a imagino a partir dos clarões azulados que rasgam a escuridão.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2020

Da virtude do fingimento

Ó noite benfazeja, mãe do repouso, madrasta da preocupação! Começar um texto assim, tão exclamativo, tão cheio de pathos, não lembra ao corcunda do demónio. A mim também não me lembrou, mas não encontrei um outro e mais decente começo. O dia, mais pequeno que o de ontem, esteve sorumbático. Chuvoso, flébil, plangente, lacrimoso. Infeliz (ainda não me cansei de adjectivar), envolto numa capa de sombra e cinza. Podia contar uma série de peripécias, mas são humanas, demasiado humanas, deixemo-las desfazerem-se com o passar das horas. Uma das coisas mais curiosas que me coube em sorte é a de me pôr a discutir assuntos que não me interessam para nada. Por vezes, consigo fingir por eles uma paixão que me falta em absoluto. Fingir paixões seria motivo de longa análise em sessões de terapia, caso fosse inclinado para ela e tivesse dinheiro suficiente para as múltiplas sessões semanais que me haveriam de recomendar para que o meu infeliz caso pudesse ser tratado. Já me imagino no divã a fazer associação livre e a contar sonhos que não tenho. Seja como for, não há qualidade social mais elevada do que o fingimento. É um exercício para não perturbar os outros, para evitar que transcorra da nossa mente perversa opiniões malévolas, enviesadas, e assim contribuir para a paz social. Uma das coisas que tenho reparado é que a sexta-feira é um dia propício para escrever as maiores idiotices da semana, mas é o que me ocorre.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Crítica de arte

Acabo de receber uma mensagem do antivírus do telemóvel. Não se trata de me informar de um ataque das forças maléficas, mas de um exercício de crítica de arte. É verdade, o meu antivírus tem uma função que faz crítica artística. Não raras vezes, invade-me o monitor e informa-me que certas fotografias são de má qualidade. Se não quero eliminá-las, pergunta. Desculpa-se, mas não passa de dissimulação, que é material que ocupa espaço e, como se sabe, nestas coisas o espaço é valioso. Na realidade, apenas pretende sublinhar que não nasci para fotógrafo e seria mais razoável desactivar a câmara. Ele não o diz, mas bem o percebo. O mundo virtual ganhou demasiado autonomia, penso, enquanto olho o negro da noite a sugar a cidade. Dezembro completou a primeira dezena de dias e também todas as suas promessas têm pouca realidade. Tenho algumas coisas para fazer, mas o corpo está inclinado para o sossego e adiá-las parece-me um bom conselho. Fecho os olhos, apoio a cabeça na mão e deixo o tempo fluir. Haverá de me fazer falta, mas se fosse lamentar tudo o que me fará falta, bem podia não fazer outra coisa na vida. Oiço uma pequena composição de Arvo Pärt com o nome de O Grito do Veado e medito que muitas são as maneiras como o universo lança gritos ao alto e que a Terra é lugar de uma grande gritaria. Não faltarão razões. Os dias estão estranhos é o quero dizer e agora calo-me.

quarta-feira, 9 de dezembro de 2020

Invernia

Uma pequena invernia caiu sobre esta quarta-feira. O frio desce sobre a cidade trazido pelo vento, pela chuva, pelo cansaço com que o Outono se arrasta para o sarcófago onde se depositam, ano após ano, as estações mortas. A realidade, depois de uns dias de ausência, veio bater-me à porta. Não com a mão estendida de quem pede esmola, mas com o dedo em riste de quem dá ordens severas. Cumpro-as para fingir que sou bem-comportado. Não há nada melhor do que um belo fingimento. Não por que haja alternativas ao fingimento, mas porque ele pode ser horrível. Há que salvaguardar as aparências. Um célebre teólogo alemão, cujo nome italiano omito, tem um texto chamado As Idades da Vida. Abri-o e folhei-o até chegar ao que seria a minha idade. Deveria estar na era do homem serenado, mas desconfio que, devido a uma inclinação para o serôdio, chegarei lá tarde, talvez demasiado tarde. Ainda há dias me propunha escrever o livro do sossego e agora nego-me a serenidade. Com dias como o de hoje tudo pode acontecer. Vou fazer o que tenho a fazer e esperar que ele passe.

terça-feira, 8 de dezembro de 2020

Da imaculada concepção

Um velho Mercedes preto ostenta-se com demora pela Sá Carneiro. As tílias, se o são, lutam em desespero contra o vento, pretendendo, sem êxito digno de crónica, segurar as folhas que restam aos ramos quase despidos. No céu a cinza das nuvens abre-se, uma ou outra vez, e deixa passar alguns raios de sol sem brilho, presos a um pudor de antiga virgem toldada de inocências. Oiço vozes na rua, gente que troca palavras para assustar o silêncio, tanto o temem, ou talvez seja eu que tenhas audições imaginárias. Nunca escreveria o que Peter Handke escreve no seu longo Poema à Duração: No sossego desses lagos / sei o que faço / e, sabendo o que faço, / fico a saber quem sou. Perfilho uma outra ideia. Quanto mais sei o que faço, menos sei quem sou. No sossego dos lagos, pediria a graça de esquecer o que faço e que sobre mim descesse um enorme silêncio. Falta-te fé na praxis, disse-me um dia o meu amigo Rogélio. Não o desmenti. Sisto IV, em 1477, decretou o dia de hoje como o da Festa da Imaculada Conceição, e Pio IX, em 1854, definiu a Imaculada Conceição como dogma dos católicos. Não imaginou ele que, um dia, ninguém sequer entendesse o que era um dogma, quanto mais uma concepção imaculada, embora todos fiquem gratos – continuo dado à hipérbole – pela dispensa dos negócios do mundo. Recebo, primeiro, um vídeo e, depois, uma foto. No primeiro, vejo o meu neto a pintar com aguarelas sobre uma folha de papel pautado. Na segunda, deparo-me com uma daquelas pinturas que só as crianças de dois anos sabem fazer, porque é imaculada a sua concepção. A da pintura e não a das crianças. Presumo.

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

Não ter mão no caminho

São múltiplas as traduções que se propõem para Jeremias, 10, 23, mas a de que mais gosto é a que diz e não está na mão do homem o seu caminho. A tradução de Frederico Lourenço, feita a partir do grego, aproxima-se e diz não é do ser humano o caminho dele. O versículo continua para dizer que não cabe ao homem estabelecer o seu próprio itinerário. Esta velha sabedoria acumulada pela experiência da decepção contraria radicalmente os desígnios do homem moderno, ciente de que não apenas faz caminhos como está convencido de que em sua mão reside o poder de os trilhar. Com toda esta conversa inútil e de aparência beata, quero apenas dizer que me sinto excluído da modernidade. Não sou construtor de caminhos, nem de estradas, nem de rotas marítimas ou aéreas, e não tenho sequer os meus próprios passos na mão ou mesmo no pé. Neste fim-de-semana que se prolonga, hoje é o segundo dia em que os meus pobres planos se revelaram enganadores, se furtaram ao meu desejo e à minha direcção. O que me vale, digo-o sem ironia, é que não conheço ninguém que não seja moderno e não tenha a sua vida nas próprias mãos. Por certo, haverá por aí outras aves perdidas, sombras que, como eu, se enganaram no tempo para nascer e em vez de terem aterrado na Idade Média vieram parar aos dias de hoje. Talvez não fosse nada disto o que queria escrever, mas as frases começam a sair e não há quem lhes ponha mão. Hoje o dia está dado a intermitências. Ora chove, ora faz sol. Tenho de me despachar, pois aquilo que eu não tinha programado chama por mim, como a mais urgente das coisas que há no mundo.

domingo, 6 de dezembro de 2020

O grande livro do sossego

Ontem, após as diligências da manhã, tive a ousadia de pensar numa tarde tranquila, onde me pudesse entregar aos meus devaneios, sem que o mundo e a realidade – raramente são a mesma coisa – me viessem bater à porta. Só uma mente capturada pela mais profunda estultícia, como acontece com aquela que recebi para me guiar na vida, se arroga a estes planos sobre o futuro, mesmo o a mais curto prazo. Este não quis saber dos meus pobres planos e entregou-me ao frenesim de um conjunto de actividades a que tive de me submeter e submeter outros, para desassossego do meu espírito. Contrariamente a certo poeta que, sob o véu da heteronímia, escreveu um livro do desassossego, o meu objectivo é escrever, caso a gramática e o léxico me ajudem, o livro do sossego, o grande livro do sossego. Há uma nobreza sem fim na quietude de espírito, digo-me ao olhar agora para a rua. Está um domingo esplêndido, feito de cinza e humidade. Nele o vento não bole e todos os ruídos da mecânica do mundo parecem suspensos. Depois surgem sob os olhos frases magníficas como a que Ernst Jünger escreveu no seu belo romance Sobre as Falésias de Mármore, referindo-se ao padre Lampros: Ele, que vivia como um sonhador por detrás dos muros de um convento, talvez fosse de todos nós o único a conhecer a plenitude da realidade. Isto explica todo o meu conflito com essa realidade. Como também não me foi dado o dom de sonhar, não tenho meios para conhecer o real. A manhã dominical progride, os crentes apressam-se para a Missa do meio-dia em S. Pedro e eu olho para a rua e vejo o Outono a desfigurar-se lentamente no grande palco do mundo. É uma pena.

sábado, 5 de dezembro de 2020

Uma obra da natureza

Os dias continuam volúveis. Anunciam-se cheios de sol, mas logo se deixam seduzir pelo canto flébil das nuvens, cobrindo-se de uma luz anémica. A meio da manhã, ainda o dia estava exuberante, tive de sair para dar umas voltas urgentes e resolver alguns assuntos. A cidade, vista de dentro do carro, parece bem mais anémica do que o dia, havendo nela uma tristeza e melancolia que anunciam os dias do abandono, a rasura estrita da memória. O castelo, porém, com a estátua do rei que deu o foral, permanece vibrante, enviando a sua luz feita de séculos sobre as inquietações de quem por aqui vive. Na avenida marginal, vi alguns patos, mas não parei para ir espreitar o rio, para lhe saber o caudal e a disposição com que corre para os braços de um outro, bem maior e mais poderoso. Em todo o lado se vêem hierarquias, pensei, talvez sejam uma obra da natureza, apesar da palavra designar literalmente a autoridade do sagrado. Se me desse a especulações teológicas, não seria desagradável meditar na sacralidade da natureza ou na natureza do sagrado, mas esse dom não calhou no lote que me foi destinado. De súbito, um raio de sol fendeu o paredão de nuvens e caiu sobre uma oliveira da escola ao lado. A árvore cintila, dançando entre a cinza e a prata, enquanto o vento lhe faz tremer os ramos. Ao longe, um veículo pesado de mercadorias cruza-se com uma ambulância que arremessa para os ares fulgurações de azul, indicando a pressa que tem para chegar ao destino. Sentado, vejo tudo isso e penso que já faltarão pouco dias para o Outono se despedir. Então, constato que todos os meus pensamentos são puros e inúteis, e isso alegra-me.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Verrumar a razão

As tardes de sexta-feira ganharam uma inclinação para a rapidez. Mal se desvia os olhos e a noite já tomou conta da cidade, esmagando-a entre a humidade da terra calcária e a capa de cobre do veludo da noite. Seria aconselhável evitar estes tropos, mas é possível que numa outra vida tenha gasto o tempo no cultivo da retórica. Nunca se sabe o que nos pode acontecer, diz-se, mas ainda menos se sabe o que nos pode ter acontecido. Nisto não há nenhuma adesão à possibilidade da reencarnação, mas ajuda a escrever o texto. Devia levantar-me da secretária e ir fechar as janelas da sala lá do fundo, mas ainda não ganhei coragem para enfrentar, por segundos, as iluminações de Natal da Sá Carneiro. Mergulho na ideia de um fim-de-semana prolongado, graças à estranha combinação entre uma pandemia viral e a imaculada concepção da Virgem. Isto prova que mesmo o mais afastado se pode tornar próximo. Se estes estranhos encontros têm o condão de alegrar o espírito, a colecção de dogmas que presidem à religião que esta pátria em tempos praticou é uma aguçada ferramenta para verrumar uma pobre razão habilitada apenas ao que não tem mistério nem contradição. Se alguém me acusar de ter escrito o que escrevi, desde já o desminto.

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Metamorfoses do dia

Estes dias de Outono lembram os belos dias ensolarados de Inverno. O sol, apesar de cintilante e vigoroso, traz à memória temperaturas baixas, o desejo de vestir roupas quentes e andar pelas ruas para desfrutar a luz. Isto escrevi-o ao meio-dia, mas, para provar que tudo está submetido ao império da metamorfose, o rosto do dia alterou-se radicalmente e ainda não são quatro da tarde. O sol está tão anémico que nem uma colher de óleo de fígado de bacalhau seria capaz de o revigorar. Atravessei a cidade várias vezes e não vi nada de notável. A culpa não é da cidade, mas dos meus olhos que se habituaram de tal maneira que até o mais excepcional, caso exista por aqui, passa incógnito no meio do que se tornou comum. Leio que um milhão de portugueses já deve ter tido contacto com o vírus. Através de email, enviaram-lhe um postal de Boas Festas, falaram por telemóvel? Pena que o vírus não seja dado à meditação melancólica e solitária, ao refúgio num eremitério. Nada pior do que vírus exuberantes, amantes da comunicação, sempre prontos a participar em festas e romarias. Uma carrinha comercial pára debaixo da acácia desfolhada, sai dela uma mulher vestida de verde seco e máscara branca, arrasta dois sacos de compras para a entrada de um prédio e desaparece. A carrinha faz então uma manobra, retoma a via e também desaparece na curva. E nestes acontecimentos está toda a sabedoria do mundo. Coisas e pessoas aparecem e desaparecem, e mesmo que deixem rasto, ele logo se há-de apagar.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2020

Presentes de Natal

É a hora em que se coloca o problema dos presentes de Natal, e um enorme tédio faz-me abrir a boca e bocejar. Depois destes anos de experiência, cheguei à conclusão de que a ideia de Baltazar, Belchior e Gaspar foi nefasta e estragou o espírito do acontecimento. Ficou tudo encadeado, literalmente preso por cadeias, com o ouro, o incenso e a mirra, que logo a alucinação se espalhou, com toda a gente a pensar que é o Menino Jesus e que os outros são Reis Magos. Trata-se do Natal e não do Carnaval. Ninguém percebe isso? Neste, as pessoas podem disfarçar-se à vontade, inclusive de Menino Jesus e de Reis Magos. Certamente, ninguém levaria a mal. Eu sei que a indústria e o comércio do Natal precisam de viver, mas o exercício, além de inútil, é cansativo, mesmo com o recurso ao comércio online. A escola aqui ao lado, depois de uns dias de interregno, voltou a funcionar, há alunos nos campos de jogos e ninguém ali parece preocupado com as compras de Natal. A grande notícia do dia é que a senhora directora-geral da saúde foi apanhada pelo vírus, embora eu esteja convencido que mais importante do que isso foi a Batalha de Austerlitz, que ocorreu há 215 anos. Uma coisa é certa, o vencedor da batalha não será contaminado pelo novo coronavírus. Nem pelo velho, assinale-se. Ficou imune.

terça-feira, 1 de dezembro de 2020

No último mês do ano

Como quem não quer a coisa, o ano entrou no seu último mês. Hoje é feriado. Comemora-se a hora em que se decidiu acabar com o domínio de um rei castelhano. O acontecimento já não comove ninguém. Dei uma vista de olhos pelas primeiras páginas dos jornais. Apenas o i aproveita a ocasião para ouvir o melancólico pretendente ao trono de Portugal, que lá se encontra retratado com um boné na cabeça, para nos lembrar que será um homem da lavoura, um daqueles portugueses saudavelmente ligados à terra. Ontem, o meu neto veio, com os pais, cá a casa, já a noite tinha caído. Quando entra na sala decorada para o Natal, com a árvore e os presépios, pára a meio, abre a boca e olha espantado e encantado para o que o rodeava, não sabendo para onde se dirigir, nem o que fazer, atónito que estava. Vai ter pela primeira vez consciência de que o Natal é um tempo diferente. Talvez fosse a essa atitude que os filósofos gregos atribuíam o nascimento da filosofia. Refiro-me ao abrir a boca e arregalar os olhos, como se a vida e o mundo contivessem uma oferta de prazer que transbordaria qualquer medida. Na praceta aqui em baixo, pais e filhos desfrutam o sol do feriado. Em nenhum lado, porém, pressinto a vontade de pegar num qualquer Miguel de Vasconcelos e defenestrá-lo. Isso tranquiliza-me. É um sintoma de que nos tornámos um pouco mais civilizados. O que se passou, quando o corpo do agente castelhano caiu na rua, não foi coisa bonita de se ver. É o que dizem. Nesse dia eu não estava em Lisboa.