Um bom profeta é aquele que se inibe de profetizar sobre o futuro. Se já é difícil fazer profecias sobre o presente e o passado, mais difícil é fazê-las sobre aquilo que há-de vir. Ocorreu-me tudo isto ao ler um certo pensador que não se eximiu de descrever um quadro de possibilidades e de impossibilidades. Nem as possibilidades se realizaram, nem as impossibilidades deixaram de acontecer. Sobre o que acontecerá nos negócios humanos o mais indicado é manter um prudente silêncio. Ora, a prudência, apesar dos panegíricos feitos em sua honra ao longo dos séculos, nunca foi virtude que se cultivasse. No coração dos homens há uma inclinação para o excesso que os impele para o mar revolto, onde confundem a realidade com as paisagens fantasmagóricas do seu desejo. As acácias da praceta atingiram o ponto em que, nas suas folhas, o amarelo se sobrepõe ao verde, coexistindo ambos numa harmonia que tempo acabará por destruir. Como se vê, também este narrador tem alma de profeta, embora a profecia se funde na observação do carácter cíclico da natureza, o qual não assegura que a profecia se realize necessariamente. Penso muitas vezes que a segunda-feira não é dia propício para escrever, pois raramente me ocorre alguma coisa que valha a pena narrar. Passam das cinco da tarde e os cavalos da noite já galopam na planície. Não tarda, eles ocuparão a cidade que se defenderá das trevas com a luz lugubremente amarelada da iluminação pública. Nova profecia.
segunda-feira, 14 de novembro de 2022
domingo, 13 de novembro de 2022
Peroração sem sentido
Fizeram-me, hoje, notar que tenho um comportamento de velho. O caso é simples. Como tinha compras para fazer e ontem não as tinha feito, hoje levantei-me cedo e resolvi o assunto a horas bem razoáveis. Razoáveis para mim, não para outros, claro. Nestas coisas, o perspectivismo e o relativismo são aceitáveis. Noutras, nem pensar. Seria absurdo, por exemplo, aceitar que para uns a Terra pode ter uma configuração mais ou menos esférica e para outros ela ser plana, e que ambos os partidos estariam na verdade, que tudo dependeria da perspectiva. O melhor, porém, é não me meter por estes caminhos, pois são quase tão tortuosos quanto os caminhos da política, se não mais. Está um domingo deslavado de província. Uma luz solar anémica, uma tarde sem fulgor. Nas ruas, passam rumorosos automóveis, passam gentes entediadas, perdidas, sem saber o que fazer destas horas livres. A liberdade sempre foi um grande peso e as pessoas atrapalham-se com ela, trocam mãos e pés e acabam por sentir saudades das cadeias que as prendem à estrita necessidade. Tinha razão Sartre naquela ideia de o homem estar condenado a ser livre. Muitos sentem a liberdade como uma condenação. Reparo agora que o padre Settembrini não me ligou, como costuma fazer aos domingos de manhã. Terei de investigar as causas, pois tudo o que acontece e o que não acontece terá a sua causa. Umas coisas terão causa para acontecer e outras terão causa para não acontecer. Isto significa que existem muito mais causas do que coisas que acontecem. A luz desmaiada do dia está a levar-me por maus caminhos. Será mais sensato continuar a beber o chá de gengibre, sempre me ajudará na digestão dominical, em vez de me entregar a perorações sem sentido. Diga-se, em abono da verdade, que a legião de coisas sem sentido é muito maior que a das coisas com sentido. O telemóvel está a tocar. Não, não é o padre Lodo. É uma neta. O que me quererá ela?
sábado, 12 de novembro de 2022
Coisas de poesia
sexta-feira, 11 de novembro de 2022
Dilemas
Sou assaltado pelo reino do ruído. O cão não encontra outro lugar para ressonar a não ser no meu escritório O que vale é que amanhã retornará ao lar e eu à tranquilidade. Esta experiência veio confirmar a decisão de não ter animais domésticos. São muito engraçados na casa dos outros. Sei que não é muito popular esta posição, mas é aquela que me cabe. A humanidade é marcada, como se fizesse parte da sua essência, pelo pluralismo sobre todos os assuntos. O mesmo se passa relativamente aos animais domésticos. Há quem adore tê-los, quem não os suporte, quem apenas não os queira por casa, embora não tenha qualquer sentimento negativo perante eles. É o meu caso. Tudo então se conforma, segundo o gosto de cada um. Estou perante um caso momentoso. Ou oiço a terceira sinfonia de Gorécki e expulso o cão do escritório, ou oiço-o ressonar e esqueço a música do compositor polaco. Abro a janela, deixo entrar o ar outonal. A luz cai sobre a copa das árvores do pequeno bosque da escola aqui ao lado. Um verde luminoso sobrepõe-se ao verde sombrio das ramadas que não apanham luz. Mais ao longe, o hospital permanece estático, com as paredes cobertas de fungos, cada vez mais cinzentas. Ainda mais longe, erguem-se colinas de pouca monta, pontilhadas pelo casario de aldeias sem nome O que vem depois delas, não sei. E isto é o que acontece à humanidade, nunca saber o que vem depois. Suspeito, contudo, que depois desta sexta-feira, virá um sábado, mas é uma conjectura.
quinta-feira, 10 de novembro de 2022
O bombo
quarta-feira, 9 de novembro de 2022
Um enigma
Ontem mostraram-me uma fotografia com cerca de cinquenta anos. Era um torneio de Xadrez, viam-se diversos jogadores frente aos respectivos tabuleiros. No meio da fotografia estava alguém que tinha um certo ar de família. Perguntaram-me se eu era aquele. Fiquei perplexo porque não soube o que responder. Há várias razões para dizer que sim. Naquela idade, jogava Xadrez, aquela pessoa é parecida comigo, com aquilo que eu era naquela época, o perfil do rosto, o cabelo. Há também razões contra. Não me lembro de alguma vez ter estado naquele lugar a jogar Xadrez. É um sítio que vim a conhecer, penso, mais tarde, uma dúzia de anos depois, e nunca o liguei ao Xadrez. A camisa ou pólo não me recordaram nada que eu vestisse na época. Os óculos, naquele tempo usava óculos no dia-a-dia, também não os identifiquei. Fiquei perplexo por dois motivos. Se sou eu que estou na fotografia, como é possível que não me reconheça? Se não sou eu, quem será essa pessoa que era tão parecida comigo, pelo menos de perfil, e como eu jogava Xadrez? Hoje, o assunto assaltou-me uma e outra vez e não consigo ter uma certeza. Imaginemos que aquela pessoa dava pelo mesmo nome pelo qual respondo. Tudo apontaria para que fosse eu, mas este hiato na memória pode sugerir uma outra coisa. Eu era aquela pessoa, mas entre ela e eu estabeleceu-se uma cisão tal que nos tornámos em duas pessoas que já não se reconhecem entre si. Ele, porque ficou preso no papel da fotografia e eu porque não sei, ao certo, quem ele é. Cada vez que rememoro a minha existência nessa época longínqua em que jogava Xadrez, nunca me encontro naquele lugar, que na época, juraria, nem sabia que existia. Um enigma.
terça-feira, 8 de novembro de 2022
Pensamentos mórbidos
segunda-feira, 7 de novembro de 2022
A platonizar
Ao abrir um livro deparei-me com um cartão de um restaurante da cidade francesa de Agen, onde estive há uns anos. Por curiosidade, decidi investigar se ainda existia. Confirmei a crença de que também os restaurantes são seres vivos. Nascem, crescem e morrem. Foi o caso. Não me lembro de qualquer traço característico. Isso não significa que não tivesse. Significa apenas que não me lembro. Por aqui – e aqui significa um conjunto de concelhos vizinhos – havia dois restaurantes de que gostava bastante. Ambos entregaram a alma ao criador por decisão dos respectivos proprietários. Cansaram-se da actividade. Quando as coisas são boas, temos uma forte inclinação para as sentir como eternas. Talvez isto tenha a ver com a própria ideia de bem, a qual só preenche o seu significado se for eterna. Um bem perecível não é um efectivo bem, mas um simulacro. As coisas a que chamamos boas, como aqueles restaurantes, reflectiam o bem, mas eram apenas um reflexo dele e, por isso, fecharam as portas. Alguém dento de mim faz-me notar que estou a platonizar. É possível, pois terei chegado à idade em que o platonismo faz mais sentido do que nunca. O problema, todavia, é que há muito mais realidade no platonismo do que aquela que existe nos diversos realismos. O melhor é não prosseguir por este caminho, antes que me peçam provas para tais afirmações. O que caracteriza estes textos é o não fornecerem provas para nada, porque tudo aquilo que preciso de ser provado sofre de um défice de realidade. Julgo que alguém já terá afirmado algo como isto, mas não me consigo lembrar quem foi ou sequer se alguém o fez. Estou afectado do cérebro. As minhas netas decidiram deixar, por uma semana, o cão aqui em casa. Ele é completamente pacífico e sofre de uma indolência que não é possível descrever. Até aqui, não vem mal ao mundo. O pior é que ele teima em estar ao pé de mim, onde dorme horas seguidas, ressonando que nem um perdido. Isto perturba-me. Quando perturbado, torno-me platónico.
domingo, 6 de novembro de 2022
Código genético
Talvez este ano não exista o Verão de S. Martinho, pensei ao consultar as previsões meteorológicas. Será um Outono dentro do Outono. Seria pior, para os amantes da época, se fosse um Inverno dentro de um Outono. Está um domingo perfeito de província. Nada bole. O vento suspendeu a actividade, a luz do dia, talvez pela carestia das fontes energéticas, reduziu-se ao mínimo, as pessoas, se por acaso põe um pé fora de casa, fazem-no com inusitada lentidão. Domingos como este são um sintoma de que na natureza, incluindo a humana, existe uma tendência para a hibernação, embora recessiva. O que introduz um tema tão interessante como a discussão do sexo dos anjos ou das categorias em que estes se dividem. Trata-se do código genético dos elementos não vivos da natureza. O código genético da luz do sol, da chuva que cai, do vento que sopra. Argumentar-se-á que código genético é uma característica dos seres vivos, não dos elementos da natureza não vivos. Nunca em nenhum foi encontrado. É verdade, mas pode-se chamar a atenção que talvez isso seja uma falácia. O facto de não ter sido encontrado não é sinónimo de que não exista. Podemos imaginar que se poderá fazer a atribuição de código genético aos elementos não vivos do universo por transposição metafórica. Falar-se-ia então do ADN da luz de domingo, isto significaria que a luz dos domingos teria certas características determinadas e determinantes. O problema nesta teoria é que o domingo não é um ser natural, mas uma invenção humana. Será que as invenções humanas, como este copo pelo qual bebo água, terão ADN? A transposição metafórica que serve para os elementos não vivos da natureza, por certo poderá ser estendida aos artefactos humanos – ou mesmo não humanos – que não deixam de ser coisas na e da natureza. Uma das características vindas no código genético da luz de domingo é que afecta o cérebro de quem se põe a escrever coisas sem qualquer nexo, como se este fosse um lugar para ficções mais ou menos científicas. Talvez a culpa esteja no facto de a própria expressão código genético ter uma natureza metafórica. Sempre posso dizer que foi a ciência que começou a ficcionalizar e que eu apenas acrescento uns corolários mais ousados. Como se prova, a luz deste domingo não me ajuda.
sábado, 5 de novembro de 2022
As vãs proezas do espírito
Mais do que os acontecimentos trágicos que marcam Édipo Rei (melhor, Édipo Tirano) foi o destino de Antígona que, no fim da adolescência, me acendeu a imaginação e, porventura, o sentimento. Talvez esse incêndio tenha desencadeado a busca de razões e tornado manifesto, sem que eu então o percebesse, que a razão, essa diferença aparente que nos separa dos outros animais e que exibimos com muito orgulho e não menor desfaçatez, que a razão, dizia, encontra os seus fundamentos não em si, mas nessas águas turvas da imaginação e do sentimento. Tudo o que é claro e transparente nasce do obscuro e opaco. Obscuridade e opacidade são o ponto de partida e, não poucas vezes, o de chegada de quem se atreve a fazer uma caminhada para fora do território tenebroso de onde extrai a sua existência. Todas estas considerações não são da minha lavra, pobre de mim. Foram proferidas há muito, numa daquelas reuniões informais que juntava gente que se conhecia à volta de uma mesa, onde não faltava o pão e o vinho, embora o pão fosse uma designação metonímica, onde se tomava a parte pelo todo. O autor da tirada, o meu querido amigo Xavier, estava particularmente eloquente. Era, na verdade, uma eloquência culposa e instrumental, como mais tarde reconheceu. A razão tinha um nome e, mais do que um nome, um corpo e uma alma de mulher. A presença quase diáfana de Eduína perturbara-o e abrira-lhe o pensamento para a especulação. Esta é, ou era, uma estratégia muito em voga entre os machos da espécie, usar o discurso para perturbar o coração ou incendiar o desejo de quem, com a sua presença, perturba o nosso coração ou incendeia o nosso desejo. Ela, porém, manteve-se imperturbável com as façanhas atlético-espirituais do meu amigo, o que o deixou ainda mais perturbado, como, anos depois, me confessou. Eduína passou a noite a falar com alguém com quem ainda tinha laços familiares remotos, como, inesperadamente, descobrira logo no início da noite. O afastamento desses laços foi, contudo, um motivo de aproximação. É possível que nem tenha dado pelas proezas retóricas que a sua presença desencadeara.
sexta-feira, 4 de novembro de 2022
Apanhado
Fui apanhado pelo vírus. Foi o que ouvi, naquele português que nunca deixa de ter um acento italianizado, quando atendi o telemóvel. Uma chamada do padre Lodovico Settembrini a uma sexta-feira depois de almoço não é habitual, talvez nunca tenha ocorrido. Quando vi o nome, uma sombra de preocupação caiu sobre mim. O entusiasmo italiano, porém, tranquilizou-me. Não haveria de ser coisa grave. Contou-me que ontem, sentindo-se sem forças e com tosse, fez, por uma questão de disciplina, notou, o teste. O miserável deu positivo, informou-me, embora tenha acrescentado uma expressão italiana intraduzível. Fui aconselhado a manter uma discreta quarentena, o que cumpro, ainda por disciplina. Um jesuíta é um soldado disciplinado, gracejou. Sinto-me bem, mas aproveito para fazer telefonemas, escrever emails e arrumar as minhas coisas, embora tenha poucas e, mesmo essas, são demais. Está com uma propensão muito franciscana, fiz-lhe notar. Riu-se, ao mesmo tempo que tossia. Para franciscano não tinha vocação, isso eu sei, continuou. Queria saber quando eu ia a Lisboa. Estava na altura de marcar um jantar do grupo. Sugeri-lhe que marcasse e enviasse uma convocatória a todos, caso o vírus não o impedisse da tarefa. Anuiu e de súbito disse: qualquer dia volto para Itália. Foi lá que nasci, tenho o dever de morrer lá. Talvez seja cedo para pensar nisso, retorqui. Nunca é cedo para pensar naquilo que não tem hora marcada. Seja como for, acrescentou, eu disse qualquer dia, o que também não deixa de ser completamente indeterminado, mas por vezes, mais vezes do que habitualmente, dou por mim a sofrer do mal du pays, apesar de me sentir em casa. A Companhia ainda acha que tenho algum préstimo por estes lados. Eu, que não pertenço à Companhia – a essa ou a qualquer outra – também acho, disse e acrescentei: quem é que marcaria os jantares? Ele concordou e salientou que a tarefa não é de pouca importância e nem todos a sabem fazer.
quinta-feira, 3 de novembro de 2022
Beber água
Devia beber água, penso. Tenho duas garrafas cheias na secretária, mas a vontade de as usar é nula. Consta que beber não sei quantos litros por dia faz bem à saúde, mas tenho um problema com a teoria. Não há acordo sobre o número de litros que têm um efeito benéfico, nem se a água contida nos alimentos ingeridos conta. E, caso conte, como poderei saber qual a sua quantidade em cada um dos alimentos, tendo ainda em conta se são frescos ou cozinhados. Também não é claro se existe um rácio entre litros de água e peso, ou litros de água e altura. Seja como for, saber tudo isto exigiria entrar em cálculos tais que acabariam por me secar a existência. O mais sensato será beber quando tenho sede. Se isso chega ou não, reconheço a minha ignorância. O mundo está cheio de teorias destas, que alguém se lembra de pôr a circular na internet. Ocorre-me que talvez existam dois tipos de pessoas que dão origem a esta literatura moral. Umas fazem-no com piedosas intenções. Querem contribuir para o bem da humanidade e, se pudessem, tornar-nos-iam a todos imortais à conta de beber água, chás, infusões, comer isto e aquilo, fazer exercício, meditação e tudo aquilo que a imaginação seja capaz de forjar. Outros, desconfio, inventam estas coisas para se divertirem, como quem lança boatos porque não tem nada para fazer. Vi, na na benévola rede que a todos liga, um livro com o extraordinário título Os Sete Hábitos das Pessoas Altamente Eficientes. Nos dias que correm, quem não quer ser altamente eficiente? Fiquei entusiasmado. Comprava o livro e deixava de ser, após duzentas páginas, o ineficiente que sou, para me tornar um exemplo de eficiência. Valeu-me ter acesso ao índice. Logo o primeiro hábito me pareceu desadequado: ser proactivo. Em primeiro lugar, acho a palavra horrorosa. Não sei a razão, mas faz-me lembrar probiótico. Depois, desconfio que muitos dos males do mundo – e estes não são poucos – têm origem em pessoas proactivas. Não houvesse tanta gente a sofrer de proactividade, também não haveria tanta subjugada à reactividade. Caso no paraíso a serpente não fosse proactiva e o pobre casal que lá vivia reactivo, ainda hoje estaríamos a gozar das delícias do Éden. Dito de outra maneira, ser proactivo não me parece uma virtude, mas o começo de todos os males. O que achei, porém, mais estranho nos hábitos foi o sétimo, que tem por título Afinando o instrumento. Que instrumento será esse, perguntei-me, que precisará de afinação. Evito fazer divagações, até porque se o primeiro e o sétimo hábito não fossem razão suficiente para não querer ser eficiente, haveria ainda o sexto: sinergizar. Só a palavra me dá vómitos, convulsões. Decididamente, se não fui eficiente até aqui, bem posso continuar docemente embalado na minha ineficiência. Não me obriguem, por favor, a sinergizar. Prefiro beber dois litros de água ou mesmo três.
quarta-feira, 2 de novembro de 2022
Bendito colírio
Hoje tive de enfrentar a golpes de paracetamol os efeitos da vacina anti-COVID. Nada de grave, apenas uma vontade de nada fazer, num dia que foi tão ocupado, uma quase febre, algumas quase dores, alguma quase irritação. Nada que o comprimido não resolva. Ontem a enfermeira que me injectou disse, com a benevolência com deve falar ao pai, que o melhor seria ir para casa e tomar o medicamento milagroso receitado para tudo. Eu disse que sim, mas pensei que não. Nas três primeiras vezes em que fui vacinado, nada solicitou que recorresse a esse colírio, o mesmo tendo acontecido quando o vírus decidiu visitar-me, mas é possível que esteja a mentir. Hoje, porém, o corpo deu sinal da sua existência. Ainda tentei fazer um pacto com ele, mas não esteve para aí virado. Tenho ouvido relatos que corroboram a ideia de que a quarta dose é um pouco mais espevitada do que as anteriores, mas pode ser que seja falso. Vale-me Valentin Silvestrov e a sua música para piano, tocada por Elisaveta Blumina. Há nela uma rêverie que me arrasta para dentro da noite. Não fora a reacção do corpo, não teria nada para contar aqui. Há males que vêm por bem. A sabedoria popular é como o google. Sabe tudo e, quando não sabe, inventa.
terça-feira, 1 de novembro de 2022
Bruxas e Santos
Começou hoje o mês de Novembro. Não fora feriado e nem daria pela efeméride. Consta que há por aí uma pequena luta entre os adeptos do Halloween, o dia das bruxas, e os das tradições nacionais da qual faz parte o dia de Todos-os-Santos. De facto, eles não coincidem no calendário. Um foi ontem, outro é hoje, mas talvez as disposições para um e para outro sejam incompatíveis. Consta que bruxas e santos – e logo todos os santos – nunca se deram bem e não pertencem ao mesmo exército. O Halloween é uma importação comercial anglo-saxónica. Julgo, porém, que a importação veio através das escolas que, a certa altura, nas aulas de inglês, julgaram que seria pedagógico introduzir o tema. Isto, porém, é uma conjectura. Cada um dos acontecimentos tem um slogan que pode servir como imperativo. O das bruxas orienta-se pelo doçura ou travessura. O de Todos-os-Santos pelo pão por Deus. O primeiro é uma ameaça, o segundo uma súplica. Nesta zona, não se usava o pão por Deus, mas o ir aos bolinhos. Imagino que seja uma combinação atravessada entre o doçura ou travessura e o pão por Deus. Para mim, porém, hoje é dia de ir às vacinas. A da Covid e, espero, a da gripe, pois passei a frequentar o grupo que deve também tomar esta. Não peço que sejam uma doçura, mas espero que não sejam uma travessura que me deixe sem energia. Já basta o que basta. O pior, porém, são as broas.
segunda-feira, 31 de outubro de 2022
Estilhaços do passado
Hoje, ao abrir o belíssimo livro, publicado em 1974, The Fall of Public Man, do sociólogo norte-americano Richard Sennett, encontrei duas evidências de que já tive um passado. A primeira delas é um cartão de um parque de estacionamento, o parque Camões, em Lisboa. Terei entrado nele às 16:43 do dia 11 de Fevereiro de 2006. Não consta hora e data de saída. Não faço ideia o que andaria a fazer, a 11 de Fevereiro, naquela zona da capital. Uma outra prova de que tive um passado é um bilhete de cinema para uma sessão no Nimas, a 25 de Março, pelas 18:15, para ver O Grande Silêncio, filme documentário sobre os monges da Cartuxa. O problema das provas é a sua incompletude. Assim como não sei a que horas saí do parque Camões, também não sei qual é o ano em que fui ver o filme. Posso conjecturar que terá sido em 2007, ano da sua estreia, mas é uma conjectura que não consigo confirmar. Ainda tentei, mas em vão. Somos constituídos por um passado do qual apenas possuímos alguns estilhaços e, quando tentamos reconstruir a vida vivida, esses estilhaços não encaixam uns nos outros. Depois, contamos uma história sobre tudo isso, mas essa história não passa de uma invenção. Tanta coisa, e o livro de Sennett? Trata do refluxo sentido já nos anos setenta do século passado da vida pública e do fechamento das pessoas na vida privada, no seu ego. Lembrei-me deste livro porque talvez exista nele, com os seus quase cinquenta nos, alguma coisa que permita perceber os nossos dias. Deparei-me, porém, com um obstáculo, que não existia noutros tempos, o tamanho dos caracteres. Terei de o comprar de novo em ebook. Aí posso aumentar o tamanho da letra. Em poucos dias, é o segundo caso em que sou confrontado com o facto das lentes estarem a ficar desadequadas. Poderia especular, ainda, sobre o filme e o livro, sobre se eles se podem articular, mas hoje não estou com grande imaginação. Ficará para outro dia, caso me lembre do assunto.
domingo, 30 de outubro de 2022
O ogonek
Trocaram outra vez a hora. Agora andaram com o ponteiro para trás. Já é tempo de pôr fim a esta volubilidade de quem tem o poder de decidir que horas são neste momento. Para mim, são dez horas e quarenta minutos, mas os relógios digitais de telemóveis e computadores, subservientes a esse estranho mandante, marcam nove horas e quarenta minutos. Quando acordei, estava um esplêndido dia de Outono. Uma névoa branca trespassada pelos raios solares. Entretanto, a névoa, que me fez lembrar um vestido de noiva, desapareceu e apenas existem raios solares. São estas metamorfoses que mostram a inconstância do mundo, sempre inclinado a ser outra coisa. Se o mundo é assim, por que razão não o haveriam de ser os homens, criaturas fracas, de discernimento reduzido e alma cansada. Wislawa Szymborska escreveu no início do poema “Um pouco da alma”: A alma vai-se tendo / Ninguém a tem constantemente / nem para sempre. Bem, ela não terá escrito isto, quem o escreveu foram os tradutores. Terá, eventualmente, escrito algo equivalente em polaco. Tenho diante de mim o texto na língua original: Duszę się miewa. / Nikt nie ma jej bez przerwy / i na zawsze. Não compreendo nada, mas não deixo de admirar o ę, isto é, um e com ogonek, que sinaliza a nasalização da vogal. Onde me documentei, dizem que o ogonek se utiliza em polaco, lituano e navajo, bem como noutras línguas indígenas. Eu pensava que todas as línguas eram indígenas, mas parece que umas são mais que outras. As que são mais indígenas usam ogonek e os seus falantes têm penas na cabeça. As que são menos indígenas não usam ogonek e os seus habitantes dispensam enfeitar-se com penas. Basta-lhes as penas da alma, mas estas só ocorrem quando se tem alma e, como escreve a Szymborska, não se tem sempre alma. Nessa altura é-se, verdadeiramente, um desalmado. As nuvens chegaram, os raios de sol esconderam-se e há muito que não são nove horas e quarenta minutos. Tudo muda.
sábado, 29 de outubro de 2022
Broas taoistas
Age sem agir, terá sugerido, nos seus dias, Lao-Tsé, o velho sábio chinês. Com poucos segundos de intervalo vi duas traduções para o seu nome. Numa, Lao-Tsé significaria Velho Mestre; na outra, Jovem Sábio. Não serão incompatíveis, o jovem sábio ter-se-á tornado em velho mestre. A injunção taoista tem um enorme potencial para fascinar os espíritos. Em primeiro lugar, os espíritos cansados de acção. Contudo, não se está perante um imperativo para o descanso ou a inacção. Suspender a acção é uma forma de agir, porventura a forma suprema. No mundo ocidental, encontramos a mesma ideia em Aristóteles, mas como qualidade divina. Deus, o motor imóvel, faz o mundo mover-se a partir da sua imobilidade. Estas formulações não deixam de conter uma sugestão erótica. Aquele que suspende a acção e deixa de voltejar em torno do objecto desejado torna-se um centro de atracção irresistível. É dessa maneira que o próprio Aristóteles vê a relação entre as coisas do mundo e Deus. Se me perguntarem a razão por que escrevi o que escrevi, não tenho nenhuma para dar. Ocorreu-me e é tudo o que posso dizer. Poderia falar de outra coisa. Por exemplo, das broas que comprei hoje. Aproximam-se os Santos e, como em muitos outros lugares, há aqui uma tradição bem estabelecida. A data é acompanhada por uma profusão de broas de múltiplas espécies. Nelas o azeite tem, por norma, um papel relevante. As que comprei são de cacau, umas, e de mel, outras. Encarnam perfeitamente o imperativo de Lao-Tsé. Sem agir, pois estavam deitadas no expositor sem qualquer tipo de movimento, atraíram-me para elas, pobre insensato que sou, incapaz de resistir às pequenas tentações. Elas agiram sem agir. Serão broas taoistas, pensei quando paguei a conta.
sexta-feira, 28 de outubro de 2022
Os liquidâmbares
Os liquidâmbares da avenida estão esplendorosos. As folhas desdobram-se numa multidão de tons, e assim como o cisne entoa o mais belo canto antes de morrer, também as folhas dos liquidâmbares, antes de se arrojarem mortas por terra, oferecem aos olhos desprevenidos o melhor dos espectáculos. Se a vida tivesse ficado pelo patamar vegetal, medito muitas vezes, a Terra seria um belíssimo mundo. Há qualquer coisa de tenebroso na vida animal, na voracidade com que ela, incapaz de extrair directamente do solo alimento, se entrega à carnificina. Este espectáculo tenebroso terá originado as crenças maniqueístas e a hipótese deste mundo ter sido obra não do Deus misericordioso, mas de um deus malévolo, obstinado em fruir este espectáculo de sangue a correr pelas bocas nunca saciadas. Aqui, Eduína, pela primeira vez, interrompeu a conversa nessa noite. Tinha estado estranhamente silenciosa. Referiu que a hipótese de duplicação dos deuses era desnecessária, bastaria aceitar o deísmo como verdadeiro. Deus, na sua infinita omnipotência, teria criado o mundo, extraído do nada a matéria, dando-lhe algumas regularidades, apenas esboçadas, a que os homens chamam leis da natureza. Depois, entregou esse mundo com as suas toscas regularidades ao devir e decidiu não mais intervir no que nele acontecia. O esboço das regularidades eram possibilidades em aberto e o acaso poderia ter conduzido a mundos muito diferentes. Ao voltar as costas a esse mundo, Deus abdicou também de sobre ele fazer incidir a sua presciência. Não sei, todavia, acrescentou Eduína, se esse desconhecimento ostensivo será suficiente para lhe salvaguardar a inocência. Seja como for, prefiro, continuou, a versão de um Deus interventivo na criação, mesmo que não consiga nunca compreender as suas razões. Entra esta conversa e a notícia que tive da sua morte, soube que teria entrado num convento, embora julgo que nunca tenha chegado a professar. É mesmo possível que tenha acabado por o abandonar. Uma das coisas que ela amava, disso lembro-me bem, era os liquidâmbares nesta altura do ano.
quinta-feira, 27 de outubro de 2022
Pessoas de papel
Cheguei tarde aqui. Ao escrever isto, sinto que todas as palavras são obscuras. Nenhuma delas torna o texto de tal modo transparente que se possa ver através dele. Será tarde porque escrevo já de noite, mas ainda não é uma noite tardia. Enredo-me nas palavras, como se não tivesse nada para dizer. Poderia falar dos Irmão Tanner, que comecei hoje a ler, um romance, publicado em 1907, do suíço, de língua alemã, Robert Walser. O mais novo, Simon, é profissionalmente instável, e é essa instabilidade que o torna um sintoma de uma época em mudança. Parece ser, ainda estou no início, um contraponto a Klaus, o mais velho, o tipo de burguês respeitável. Ou, no lugar de Walser, deixar-me levar por Ford Madox Ford, pelo destino de Christopher Tietjens, o filho mais novo de um grande terratenente inglês, personagem central de Some Do Not, primeiro romance da tetralogia Parade’s End. Sylvia, a mulher de Christopher, é apresentada no início do romance a uma luz desfavorável. O talento de Madox Ford, porém, vai fazer que essa apresentação inicial se vá dissolvendo, com o decurso da narrativa, numa espécie de desmentido sobre o carácter indelével das primeiras impressões. Poder-se-á pensar que a literatura romanesca seja isso mesmo, uma luta contra as primeiras impressões, um desfazer de imagens, para que outras imagens se possam manifestar. Como se percebe, terei chegado àquela altura da vida em que estou mais próximo das pessoas de papel do que das de carne e osso. A esperança do leitor é que o mistério da encarnação deixe de ser uma excepção religiosa e se torne uma possibilidade para as personagens dos romances com as quais estabeleceu um pacto de amizade, quando não de amor. Leitores haverá que aspiram a um destino parecido com o de Pigmalião, que acabou por casar, devido aos bons ofícios de Afrodite, com Galateia, a estátua que ele próprio tinha esculpido. Na verdade, um mito não muito longínquo da narrativa da criação de Eva a partir da costela de Adão.
quarta-feira, 26 de outubro de 2022
Da urbanidade e das almas
Um acaso levou-me a um artigo, presumo que de autoria de uma jurista, sobre a vexata quaestio da eutanásia. Li as primeiras dez a quinze linhas. Eram tantas as falácias em tão pouco espaço de texto, que pus o artigo de lado. Por mais sérios que sejam os assuntos, a maneira como são discutidos fora do espaço estritamente académico aproxima a discussão do debate sobre se houve ou não penalty no jogo do último fim-de-semana. Talvez isso seja inevitável, pois o espaço público está longe daquela esfera pública burguesa, onde, nos salões, havia normas estritas de discussão, na qual reinava a urbanidade. Na Alemanha, por exemplo, em certos círculos vigoravam regras como as que impediam que alguém interrompesse outra pessoa ou divagasse sobre o tema em questão. A crítica a pontos de vista diferentes deveria ser apresentada de forma modesta e breve, evitando insinuações ou comentários jocosos. Esta civilidade do tempo das Luzes, porém, não impediu tudo aquilo que aconteceu, por aqueles lugares, no século XX. Hoje devo ter acordado com uma alma sociológica e com preocupações de civilidade. Temos de ser pacientes com as almas com que acordamos. Como se sabe, não acordamos todos os dias com a mesma alma. Existe uma discussão sobre se em cada dia temos uma alma nova ou apenas um depósito relativamente restrito – há quem fale entre 20 e 50 – de almas, que se revezam no uso que fazem do nosso corpo, ou que o nosso corpo usa para se guiar nas encruzilhadas deste mundo. Esta discussão, porém, é ainda mais intrincada do que a da eutanásia, embora, não percebo a razão, desperte menos entusiasmo e fervor entre os adeptos das diversas opções. A noite caiu com a sua alma escura sobre a cidade.
terça-feira, 25 de outubro de 2022
Uma fixação erótica
Nunca devemos deixar de nos admirar com esta ditosa pátria pela coerência com que tudo nela está afinado. Levei hoje o carro à inspecção. Havia um problema. A inspecção automóvel exige o certificado de matrícula, conhecido por documento único automóvel. Ora, o meu ter-se-á liquefeito e evaporado da carteira, sem a minha autorização. Imagino que já terá caído em forma de chuva pelos campos deste país. Estava, porém, confiante, pois, numa aplicação oficial da República, tenho todos os documentos em formato digital, incluindo o certificado de matrícula do carro. Chego à recepção e sou informado que ali o documento digital não serve. Para a polícia, sim, para os centros de inspecção, não. Fizeram uma consulta ao IMT, esclarecem-me, e esta instituição achou melhor que não. É necessário que no centro se certifiquem das condições do documento em papel. Portanto, sem o papel, o carro é chumbado. A própria funcionária acabou por confessar que não entendia a coerência de tudo isto, mas ordens são ordens, e contra ordens não há argumentos. Nem argumentei. Como sou muito velho e começo a conhecer o fervor pátrio pelo papel, ontem, por volta da meio noite, pedi online uma segunda via do documento. Feito o pagamento ao IMT, este permitiu-me aceder a uma guia, que imprimi. Como era em papel, o centro de inspecção já não tinha objecções, o carro podia ser aprovado. Eu não quero meter-me em política, coisa de que estou proibido pelo autor, mas parece que o governo não gosta de papel, já as instituições que dele dependem possuem uma fixação erótica em tudo o que é papel, a qual impõem à sociedade civil. Uma das coisas mais extraordinárias de que me lembro em matéria de papéis oficiais era a necessidade de apresentar, para além do bilhete de identidade, uma certidão de nascimento, não fosse o detentor do BI não ter nascido. Seja como for, tenho o carro aprovado e capaz de fazer mais três mil e trinta quilómetros, que foi aquilo que fez no último ano. Uma média de 8,3 km por dia, pois só serve para dar umas voltas por aqui. Nunca o levo a passear, apesar dos pedidos insistentes que faz. Queria galopar numa auto-estrada, trotar numa nacional, mas nada. Só circuito urbano, se é que esta pequena cidade tem circuito urbano.
segunda-feira, 24 de outubro de 2022
A chave
Um dia em bolandas. De um lado para o outro. As coisas triviais e, também, as menos triviais, mas que estão longe de ser benevolentes. Há coisas que sabemos, mas vê-las escritas tem outro peso. Estou a falar por enigmas. Também o dia está enigmático. Nublado, mas pouco inclinado para a chuva. Há a ideia de que a vida é milícia, combate constante, um corpo a corpo com a realidade. Os que seguem o caminho da acção encontram aí a normalidade, mas os espíritos contemplativos sentem-se perdidos nessa via. Uma breve clareira na floresta de nuvens e o sol brilhou por instantes, mas foi de pouca dura. Uma súbita recordação da casa onde nasci. Afasto-a, tenho muito para fazer. Não há tempo para a nostalgia. Se ao menos pudesse decifrar o enigma do dia, talvez encontrasse a chave para outras enigmas. O pior é que perdemos a chave quando chegámos a esta vida. A sua busca, a da chave, pode ser exaltante, mas agora tenho de encontrar o documento único do carro que se evaporou da carteira. A prosa da realidade é bem mais poderosa do que a poesia do devaneio, se é que neste existe poesia.
domingo, 23 de outubro de 2022
Uma reminiscência e um aviso
Não sei o que o ano de 2010 teve de especial, mas, não poucas vezes, ao escrever a data, no lugar de 2022 surge 2010. Por norma, detecto o equívoco, mas nem sempre. Qualquer coisa me está a chamar desse ano ou serei eu que me chamo a mim mesmo a partir dali. Logo no início de Burnt Norton, Eliot escreve: O tempo presente e o tempo passado / Estão ambos talvez presentes no tempo futuro. Ao crermos na expectativa do poeta – pois, o talvez a assinala como tal – o ano de 2010 já estaria presente em todos os que se lhe seguiriam, embora eu só tenha dado por isso agora, devido à minha natureza serôdia. Nos Quatro Quartetos, o início de que mais gosto é o de East Coker. Não todo o verso, apenas No meu começo está o meu fim. Não é uma originalidade, mas uma recordação e uma advertência. Uma reminiscência de um fragmento de Anaximandro. Um aviso para a nossa condição de mortais. Aliás, a estrofe continua como uma sucessão, quase cinematográfica, de coisas que se erguem e desmoronam, tornando plástica a afirmação inicial. Quando me levantei e abri as persianas, estava uma manhã de sol. O céu, porém, cobriu-se de nuvens cinzentas, a luz esbranquiçou-se, como se tivesse sofrido uma súbita comoção, e o domingo transitou da Primavera para o Inverno. Não segui aquele velho conselho que, num livro da escola primária, era dado por um astuto advogado a um homem do campo, e guardei para hoje o que podia ter feito ontem. Também é verdade que o posso guardar para a amanhã, mas não o farei. Não se deve ignorar duas vezes seguidas o mesmo conselho. Começou a chover. É uma chuva oblíqua. O vento de sudoeste inclina-a, para que, desprevenidos, os poucos transeuntes da avenida se molhem. Que eles fiquem molhados é a causa final para que chova e o vento sopre de sudoeste. Sem essa finalidade, não haveria chuva nem vento de sudoeste.
sábado, 22 de outubro de 2022
O meu herbário
Noutros tempos, imagino, não seria impossível os rios, por esta altura do ano, transbordarem. Então, ia ver as cheias do Tejo ou do afluente que por aqui corre. Isto, porém, pode estar deslocado na altura do ano. As cheias seriam mais tarde, talvez já depois de ter começado o novo ano. Esta memória de ir ver as cheias foi desencadeada pelo dia, pela cor de cinza com que se pinta, pela raiva ventosa com que choca contra as persianas, pela violência dos aguaceiros com que se mascara. Nunca pensamos nisso, mas também os dias são seres vivos, que nascem, crescem e morrem. Possuem não apenas uma fisiologia, mas também uma psicologia. Não têm, todavia, uma sociologia, pois são mónadas fechadas sobre si mesmas. Não há comunidade de dias. Cada um é um acontecimento isolado. Hesito. Não sei se será mais interessante dedicar-me à fisiologia ou à psicologia dos dias. Ao longo de uma vida, coleccionei inúmeras ocupações inúteis. Posso, sem dificuldade, construir um herbário da inutilidade, e dedicar-me à efabulação de taxinomias, organizando as múltiplas categorias do inútil. A fisiologia dos dias ou a sua psicologia seriam apenas mais duas flores secas nesse herbário. Tenho, por outro lado, um especial interesse por escritores que ninguém lê ou por pensadores que a história não concede a graça do reconhecimento. É uma solidariedade – fundada num sentimento de irmandade – com aqueles que, não sem desdém e acinte, são denominados como vencidos. Os cemitérios estão cheios de vencidos, mas não há vencedor que não tenha lá a recompensa da sua vitória. Volto para o meu herbário.
sexta-feira, 21 de outubro de 2022
O exercício da citação
Pega-se num romance e, na primeira frase, ouve-se o eco de uma outra escrita quase dois mil e quinhentos anos antes. A frase, note-se, não é igual, apenas uma reverberação. Uma dúvida instala-se, então, no leitor. Teria quem escreveu a vontade dessa citação distorcida ou foi apenas um acaso? Seja qual for a verdade, é irrelevante para quem lê, mas o leitor também tem direito à curiosidade. Qualquer obra literária é uma construção de citações distorcidas. Usar qualquer palavra é citar os milhões de utilizadores que ela teve antes daquele momento. É o exercício da citação que permite um romance ou um poema serem lidos. Se as palavras usadas fossem absolutamente virginais, se ninguém as tivesse pronunciado, o único leitor seria quem as escreveu, caso ainda as identificasse. Ou talvez não. Poderia acontecer que outros leitores se entregassem à decifração do texto, à descoberta de uma língua completamente original. Não seria, alguém diz, uma língua, pois esta exige uma comunidade. A objecção parece fazer sentido, mas falha num aspecto essencial. Se um leitor tentar decifrar essa língua, então já uma comunidade está instaurada, pelo menos em potência, entre autor e leitor. Talvez esteja a ser infiel, mas reproduzo uma conversa com décadas. Quem falava era Eduína. Fazia-o calmamente, sem a urgência de quem pretende ter razão ou convencer alguém. Os gestos eram contidos. Avançava no que dizia como se fizesse uma experiência. Tudo nela era, naqueles instantes, de uma suprema leveza. Como acabou a conversa, já não recordo, mas é possível que tenha morrido naturalmente ou que, alguém, tenha mudado de assunto, como acontece quando um grupo de pessoas se junta.
quinta-feira, 20 de outubro de 2022
Sombras
Estes dias, penso-os como um tempo de regresso às coisas essenciais. Nunca soube o que eram, mas presumo-as nas horas em que chove, em que a terra seca bebe voraz a água caída do céu. O cómodo e o fácil não fazem parte dessas coisas que desconheço. Possivelmente, apenas de um modo apofático nos possamos aproximar delas. Não são isto, nem aquilo, nem aqueloutro. Navego num devaneio, a imaginação dilacerada, uma vez mais, por uma noite mal dormida. O rasgão no lençol do sono permitiu-me avançar na leitura do romance de Madox Ford, mas sinto-me numa névoa, onde a clareza do pensamento e a nitidez das imagens se afogam. Na praceta, uma voz irritante distribui censuras. Responde-lhe o silêncio. Aproveitando a cesura, o amarelo invade o verde imaculado das acácias. Na rua, do lado de lá, uma mulher caminha devagar. Leva as mãos nos bolsos do casaco. Não tira os olhos do chão, enquanto, com passos hesitantes, desaparece do meu horizonte. Alguém, um dia, perguntou: Que comércio pode haver entre a luz e as trevas? Duas respostas serão possíveis. As sombras são o resultado desse comércio. Uma outra dirá: As sombras são o muro que separa aquilo que não pode ter comércio. Chove.
quarta-feira, 19 de outubro de 2022
Um dia de chuva
As chuvas terão encontrado o seu tempo. Por vezes, desabam violentas sobre quem passa. Outras, retraem-se e são apenas uma névoa composta por miríadas de gotas, quase sem dimensão, que caem com a brandura de um anjo ao poisar na torre de uma igreja. Este jogo que as faz variar entre o aço e a seda cansam-nas. Então suspendem a queda e ficam a dançar no céu, onde o vento empurra as nuvens para que outras lhe venham ocupar o lugar. Imagino que as nuvens sejam seres vivos, pois também estes se empurram continuamente para que uns tomem o lugar dos outros, de acordo com a necessidade, a justiça e o tempo, tal como explica o fragmento de Anaximandro. Seria agora uma boa altura para falar de causas finais, elas que caíram em desgraça nos inícios dos tempos modernos e que nunca mais viram o seu esplendor restaurado. Ainda não será hoje que as tentarei libertar da sua desgraça. Continuo a beber o chá de que falei ontem. Hoje sei que é, segundo o dicionário, um rizoma. Chá de gengibre. Os seus cultores quase que prometem a vida eterna, por mim, apenas lhe peço que não desminta as anunciadas propriedades digestivas. A certa altura da vida, o máximo que se pede já nem é uma boa consciência, mas uma boa digestão. A beberagem não é desagradável e se não ajuda a digerir, tem pelo menos um efeito diurético. Disseram-me que também os dias chuvosos possuem idêntico resultado. Agora, lembrei-me de uma paliçada de canas. Do outro lado, da paliçada havia a mais bela voz de mulher que eu ouvira até à data em que a ouvi. Senti um choque quando soube que era voz de uma cega. Nunca a vi, talvez por não ser possível existir uma mulher com uma voz belíssima e ao mesmo tempo não poder ver como essa voz se repercutia nas faces que a escutavam. Também é provável que a voz não fosse bela ou que a paliçada de canas nunca tenha existido, mas isso não altera em nada o facto de aquela voz de mulher ser a mais bela que alguma vez tinha ouvido.
terça-feira, 18 de outubro de 2022
Semivigílias
Os sonhos não são uma das minhas actividades correntes. Esta frase deve conter alguma imprecisão, pois sempre sou informado que todos sonhamos todas as noites. Terei, devido a esta omnipresença onírica, de refazer a afirmação. Recordar-me dos sonhos sonhados não é uma das minhas actividades correntes. Raramente acontece, e quando acontece é sol de pouca dura, pois a própria lembrança logo entra num limbo sem nome e desaparece. Contudo, há coisas de que me recordo muito bem. A indecisão, para não dizer coisa pior, que me acomete quando, durante a noite, estou num estado de semivigília, nem a dormir, nem acordado. Se, por exemplo, sinto frio, fico ali, sem que seja capaz de ter o discernimento de puxar o edredão. Nesse estado, tudo é sensação, mas o agir parece vedado, até que a consciência se torne plena, tome a decisão de me cobrir e aja em conformidade. Estes estados são marcados por uma outra característica, a esperança. Sinto frio, mas tenho a esperança difusa de que ele passará sem que tenha de intervir. Talvez existam nessas horas resquícios de um pensamento mágico, em que se faça acontecer qualquer coisa sem que o corpo tenha de se pôr em acção. Na praceta, lá em baixo, uma alcateia de adolescentes bezerreia à espera de que as portas do Centro de Línguas se abram, e uma professora reja os seus destinos através de ditames em língua inglesa. Estou a beber um chá feito com um fruto – ou será uma raiz ou talvez um caule? – cujo nome se evaporou da mente. Tem um sabor acidulado, forte, consta que ajuda as digestões. Asseveraram-me que acelera o metabolismo e tem efeitos que nem sei descrever. Ainda há pouco sabia o nome, agora que o quero escrever, já não o sei. O silêncio caiu sobre a praceta, as nuvens taparam o sol e a tarde corre, cada vez mais depressa, para o seu fim. Muito eu gostaria de falar sobre as causas finais, mas já escrevi demasiado, tenho de guardar o gosto para outra altura, caso não me esqueça do nome das causas.
segunda-feira, 17 de outubro de 2022
Transtornos e fugas
domingo, 16 de outubro de 2022
Uma vocação errada
Ao levantar-me, descobri que o Outono tinha, de facto, chegado. Um belo dia cinzento, sem calor. As nuvens parecem tranquilas, não há nelas sinais de que se vão precipitar sobre esta cidade em forma de chuva, mas a app meteorológica afirma o contrário. Nunca se sabe em quem ou em quê se deve confiar. Gostaria que chovesse, as ruas ficariam mais lavadas e haveria um cheiro a terra molhada. As possibilidades, vejo, são de 91%, o que significa uma enorme possibilidade de não chover, pois mesmo quando são de 100%, acaba pela profecia sair gorada. Este é um leitmotiv destes textos, outro é a passagem do tempo. Assinalo apenas que Outubro já entrou na fase descendente. Não tarda e dobram os sinos pela sua alma. Espero que tenha direito a um requiem. Já há umas semanas que não recebia a chamada dominical do padre Lodo. Ligou-me hoje. Que tem tido umas semanas do diabo. Fiz-lhe notar que não deveria invocar o maligno. Riu-se, mas não se retractou. Um reboliço de vida, continuou. Talvez tenha feito uma má escolha, ouvi dizer. Ser padre, perguntei. Não, ter entrado para a Companhia. Demasiados assuntos mundanos, preocupações políticas, educacionais, enfim. Deveria ter entrado para a Trapa, sempre me senti um contemplativo, acrescentou. Foi a minha vez de me rir. Está-se a rir? Estou. Se entrasse para a Trapa – ou, por que não, para a Cartuxa – como poderia fazer os jantares com os amigos, passar essas longas horas de conversa animada, comentar o estado do mundo? Como, é capaz de me explicar? Silêncio do outro lado. Sabe, disse-me, a diáspora, por vezes, cansa-me. Sofre de mal du pays, perguntei. Isso, é isso mesmo. Prefiro a expressão francesa à saudade portuguesa, muito dramática, a francesa é mais teológica. Tem bom remédio, retorqui, faça uma visita a Itália, vá ter com a família. Talvez encontre uma Trapa que ainda o aceite, não me consegui conter. Ao diabo, respondeu. Fiz-lhe notar que era a segunda vez que pronunciava o nome do inimigo. É para não me esquecer que o tentador existe, murmurou.
sábado, 15 de outubro de 2022
Um rol de notícias
sexta-feira, 14 de outubro de 2022
O poder das qualidades
A questão que se pode colocar é se há dias que chegam até nós cheios de sombras ou se somos nós que depositamos sombras nos dias que nos chegam, pensei em voz alta. Talvez isto seja um falso dilema disse-me, um dia, uma amiga que respondia pelo estranho nome de Eduína. Depois acrescentou há ainda pelo menos uma outra possibilidade, que sejam as sombras que convoquem tanto a nós como aos dias, para que fiquemos perplexos. Pensei, durante alguns segundos, e retorqui o mesmo se passará com o amarelo que vejo já nas folhas daquelas acácias – e aí fiz um gesto largo para que ela as visse, o que retribuiu com um sorriso – terá sido ele que nos convocou a nós e às folhas das acácias. Ela ficou em silêncio, talvez se estivesse a divertir à minha conta, mas não o creio. Passados alguns meses deste diálogo, recebo um telefonema de Eduína. Diz-me, quase sem me cumprimentar, o segredo é descativar o pensamento do redil em que os gregos – Aristóteles, mais que ninguém – o colocaram. Os acidentes dão-se nas substâncias, a transparência dar-se-ia na água, mas isso é ainda uma forma muito rudimentar de ver as coisas. É para que ela possa ser que a transparência convoca a água ou o vidro e o testemunho dos nossos olhos, essa convocação é uma verdadeira chamada à existência tanto de nós como daquilo a que chamamos substâncias. Os homens nunca o compreenderão, mas nós, mulheres, sabemos que é assim, que são as qualidades que regem o mundo, que o compõem através de actos de convocação. Toda a convocação emanada delas é um acto performativo. As qualidades fazem ser. Quase me apaixonei por ela, confesso, mas resisti a que a paixão me convocasse a mim e a ela. Nunca saberei se perdi ou ganhei alguma coisa. Disseram-me amigos comuns que Eduína teria morrido. Procurei durante muito tempo uma qualidade que a convocasse, mas todo o esforço saiu gorado.
quinta-feira, 13 de outubro de 2022
Coisas de espantar
Consta que a história do Ovo de Colombo não teve como protagonista primeiro o próprio Colombo, mas o arquitecto Filippo Brunelleschi, uns anos antes. Sendo italiano, Colombo conhecia-a e usou-a num banquete em Espanha. A versão que tem o descobridor da América como protagonista foi contada, pele primeira vez, em 1565, por Girolano Benzoni, em Hisory of New World. A atribuição a Brunelleschi é de Giorgio Vasari, no livro Le vite de' più eccellenti pittori, scultori e architettori, de 1550. Todas estas informações foram recolhidas na Wikipédia e vieram a propósito de uma descoberta efectuada hoje por este narrador destituído de narrativa. A descoberta não foi a da América nem do equilíbrio do ovo, mas que muitas são as pessoas que desconhecem a expressão Ovo de Colombo. Fiquei de tal modo perturbado que decidi investigar se, por acaso, seria eu que estava a delirar ou tivesse entrado naquela fase da existência em que se inventa, por contumácia, coisas com que se hão-de espantar o mundo. Essa benévola enciclopédia confirmou que a história do ovo não era da minha invenção e acrescentou mais alguma informação, que eu desconhecia, sobre o assunto. Não tivesse eu saído de casa e teria passado ao lado desta exaltante aventura, na qual cheguei de dizer que o Ovo de Colombo não era um ovo que estivesse à venda no centro comercial Colombo, em Lisboa. Agora, estou sentado na minha cadeira de eleição e, enquanto escrevo este relatório, pois de um relatório se trata, descubro uma nova diferença entre os tempos pré pandemia COVID 19 e os tempos pós. Naquele tempo, onde o mundo parecia menos desconcertado, o grupo de música da escola aqui ao lado, um autêntico conjunto de baile dos anos 70, ensaiava às quartas-feiras. Agora, talvez devido a algum efeito secundária do vírus, está a ensaiar às quintas. Como se vê, nunca estamos completamento seguros das consequências de uma infecção. Manifestam-se os mais estranhos e inesperados efeitos, o que nos aconselha a mantermo-nos em constante estado de alerta.
quarta-feira, 12 de outubro de 2022
Na venda de jornais
Numa das colunas de um dos prédios da avenida existe um quiosque onde um homem de cabelos brancos vende jornais. De alguma maneira, a coluna lembra uma guarita, só que mais larga e menos disposta para a vigilância dos inimigos. Naquele espaço, o dono aguarda que venham por notícias. Jornais, revistas, um livro de palavras-cruzadas. Está ali de guarda, perfilado no posto, não porque tenha necessidade de ganhar a vida. A essa já a ganhou, e com honradez. Reformado foi atingido por um golpe de memória e uma certa inclinação romântica para a repetição. Vende jornais porque na infância dele, que foi ligeiramente anterior à minha, o pai tinha uma venda de jornais, de revistas, de lotarias, de cigarros e de todas essas coisas que se vendiam nesses estabelecimentos, a que davam o nome de tabacaria. Era um homem alto, de cabelo branco, e nada nele indicava que fosse dono de uma tabacaria, mas alguém que tinha uma posição elevada, mas que a vida arrastara até ali. É possível que a tabacaria fosse uma ocupação de reformado, pois quando o filho que agora vende jornais era novo, ele já me parecia velho e tinha filhos bem mais velhos do que os dois que eu conhecia. Conversei longamente com aquele que era novo e agora vende jornais. Falámos do irmão, com o qual joguei inúmeras partidas de Xadrez, e cujo rasto perdi há décadas. Por vezes, vinha um cliente e comprava um jornal. Depois retomávamos a conversa, até que outro a interrompesse. Tudo isto ter-se-á passado há mais de uma dúzia de anos, a não ser que nunca tenha existido um homem alto de cabelos brancos que tinha uma tabacaria e cujo filho, por inclinação romântica, abrira uma depois de reformado, onde eu ia comprar jornais, talvez porque o meu pai comprava os seus jornais na tabacaria do pai dele.
terça-feira, 11 de outubro de 2022
Da irrupção do novo
Por motivos que não vêm ao caso, tive de me deslocar a um centro comercial – aliás, o único que por aqui há – e onde existe uma FNAC. Antes de entrar no espaço comercial esqueci-me de dizer não me deixeis cair em tentação. Ora, o que me motivava na deslocação nada tinha que ver com livros, mas a primeira coisa que fiz foi dar ouvidos à tentação entregando o coração à queda. Resultado, trouxe comigo a tradução de Frederico Lourenço dos Evangelhos Apócrifos gregos e latinos e Escrito Nas Margens – Livro de Horas VIII, de Maria Gabriela Llansol. Abro ao acaso os Apócrifos e leio no Evangelho de Pseudo-Mateus: Quando (Joaquim) atingiu a idade de vinte anos, tomou como mulher Ana, filha de Isacar, da tribo e da família de David. E embora vivesse com ela durante vinte anos, dela não recebeu filhos nem filhas. A esterilidade matrimonial parece ser um topos literário, uma espécie de vazio que é preenchido pela intervenção divina, numa reactualização do acto criador, no qual do nada Deus retirou o mundo criado. Abrindo também ao acaso o livro de Llansol, leio, na entrada de 2 de Janeiro de 1982: Envelheço. Mas eu fico fora dessa contingência, sentada à mesa a escrever. Trabalho na segunda parte de ‘Da Sebe ao Ser’. O testamento de Isabôl, a matéria figural, a casa da neve, os contos do mal errante, a esperança num outro ser. O desgosto de Joaquim e a esperança de Maria Gabriela Llansol dirigem-se para a mesma meta. A de um novo ser. É irrelevante discutir se o que escreve Llansol se refere a uma nova forma de existência ou se à emergência de um novo ente. Em ambos se conjuga, embora de modos diferente, a expectativa de irrupção do novo. Talvez seja por isso que os avós muito se alegram pela vinda dos netos, pela irrupção do novo. Ora, eu que não tinha nenhuma aventura para aqui narrar e assim acrescentar à minha gesta, resolvi o problema da falta de assunto ou da angústia da página em branco.
segunda-feira, 10 de outubro de 2022
Crer na realidade
Choveu! Pelo menos a profecia dos serviços meteorológicos confirmou-se. Contudo, nem toda a gente acreditou no que estava a suceder. Um grupo de adolescentes que, num dos campos de jogos da escola aqui ao lado, disputava uma partida de futebol não acreditou no forte aguaceiro que lhe estava a cair em cima. A falta de fé levou a que o jogo continuasse. É possível que, na adolescência, a fé na realidade seja muito diminuta ou mesmo nula. Um dos problemas com que a humanidade se defronta é o de saber o momento em que os seus membros passam a crer na realidade da própria realidade. Talvez uma parte considerável, se não a maior, acabará por deixar esta vida sem alguma vez ter crido na realidade, mantendo-se numa menoridade sem fim, de que cada um será culpado. Outra parte chegará a essa crença já tarde, demasiado tarde. Restam aqueles que crêem nela cedo. Isso, porém, não lhes traz qualquer vantagem, pois não sabem o que fazer dela ou com ela. Martin Venator, personagem principal do romance Eumeswil, de Ernst Jünger, dizia que precisava da autoridade, mas não acreditava nela. Era um anarca, mas não um anarquista. Também eu preciso da realidade, embora não acredite nela. Serei um sonâmbulo, mas não um irrealista. Seja como for, não tarda e ela bate-me à porta. Tenho de lhe prestar atenção, coisa que não é fácil. Consta que é muito absorvente. Vou preparar-me.
domingo, 9 de outubro de 2022
Desconsertos do mundo
Um céu geralmente nublado. É esta informação que recebo, sem que a tivesse pedido. Fui, depois, consultar um site de meteorologia e descubro que há 40% de probabilidades de ocorrência de chuva. No giro que dei há pouco, motivado por uma ida à farmácia, o tempo estava agradável, mas sinais de chuva era coisa que não se descortinava. Oiço, vindo de lá de dentro, os sinais de umas escaramuças em torno da Matemática. Avó e neta tentam chegar a um acordo. Se os matemáticos soubessem da infelicidade que geraram no mundo, estou certo que teriam pensado noutras coisas e não naquilo em que passaram a vida a pensar. O mal está feito e não há como evitá-lo. Confesso que nada tenho contra a Matemática, até lhe concedo a honra de a escrever com capitular no início da palavra, o que significa uma prestação de tributo. O mal nem será da disciplina, mas de ela ser ensinada antes dos vinte anos. Até a essa hora, os seres humanos deveriam ter o cérebro livre de algoritmos, para o ocuparem com os pequenos prazeres da existência. Chegados aos vinte, já maduros, entregavam-se ao estudo da Matemática, como prova iniciática de entrada na fase adulta. Como ninguém teve a presciência de me consultar, a infelicidade atingiu a infância, a adolescência e parte da juventude nos quatro cantos do mundo, que sendo mais ou menos esférico, não terá cantos. Parece que um acordo foi estabelecido sobre a potenciação, o conflito foi descalado, digamos assim, e uma entente produtiva rege os trabalhos matemáticos. Isto significa que o almoço será tardio. Uma sombra vinda do céu desce sobre o pequeno bosque da escola aqui ao lado. Os verdes desmaiam na cinza celeste, mais perto, os loendros ainda exibem, não sem ponta de orgulho, o róseo das flores, escondendo o veneno que abrigam no prazer que provocam no olhar cândido do espectador. Talvez toda a beleza oculte um veneno mortal, o que contraria a ideia de uma identidade entre o bem, o belo e o justo. Não tenho como resolver a aporia.
sábado, 8 de outubro de 2022
Um desplante
O dia não começou da melhor maneira. Há duas semanas que não frequentava a balança. Hoje decidi visitá-la e a estouvada devolveu-me a amabilidade com a insinuação de que tinha mais mil e novecentos gramas do que da última vez. Dizer insinuação não passa de um eufemismo. Ela é muito sensível. Respondi-lhe que não percebia o que tinha feito para tal desaforo. Respondeu-me que na minha vida não se metia. Limitava-se a registar a realidade. Interpretações dessa mesma realidade, mesmo que limitadas a explicações deterministas de causa e efeito, não eram com ela. Uma balança que se prese, adiantou, não se entrega a devaneios metafísicos. Não contente com isto, a realidade, agora através de uma aplicação meteorológica, avisou-me que iriam estar 33 graus. O que se confirmou. Pensei, então, que no melhor dos mundos possíveis não haveria tecnologia de qualquer espécie. Nem balanças, nem termómetros, nem aplicações informáticas. Nada. Com isto pretendo apenas contrapor a tese leibniziana de que vivemos no melhor dos mundos possíveis. Não vivemos. Esta diatribe contra a tecnologia não é para levar a sério. Como seria possível estar agora a ouvir a belíssima voz de Montserrat Figueras, ela que morreu em 2011, sem a ajuda da tecnologia? Esta experiência de ouvir quem já não canta, de ver em acção quem já não pertence ao mundo dos vivos, torna manifesto que a tecnologia tem uma dimensão metafísica, como se a habitasse um anseio de eternidade. Talvez deva reconsiderar a minha opinião de há pouco. É possível que Leibniz tivesse razão e que vivamos no melhor dos mundos possíveis. Vou continuar a ouvir a belíssima voz de quem já não tem voz. Assim, talvez esqueça o desplante da balança.
sexta-feira, 7 de outubro de 2022
A leitura como pena
É uma experiência curiosa tomar um relaxante muscular. Não apenas os músculos relaxam, como a pessoa fica meio aparvalhada. As pálpebras insistem em fechar-se, para que me entregue ao sono. Embora a tentação seja grande, resisto. Leio, no Público, num artigo de António Guerreiro, que um juiz turco condenou um réu a 15 dias de prisão, que poderiam ser substituídos por hora e meia de leitura diária, numa biblioteca, durante alguns meses. O condenado, depois da experiência de ir a uma biblioteca ler, confessou que a pena tinha sido terrível. Não a desejava nem ao seu pior inimigo. É caso para dizer que mais vale cadeia do que biblioteca. Daqui podemos concluir que os livros não foram feitos para todas e nem todos foram feitos para os livros. O autor do artigo conta que há mais casos, noutros países, em que o juiz condena alguém à leitura. Caso a moda pegue, os meritíssimos juízes, antes de proferirem as suas doutas sentenças, têm de indagar se a leitura é um prazer ou uma tortura. Se for um prazer, o réu condenado a sessões de leitura tornar-se-á de imediato um reincidente, por culpa do juiz. Mas se o réu sentir a leitura como alguma coisa de torturante, será que o juiz que ordena tal pena não corre o risco de infringir a lei ao recorrer a uma pena sentida como tortura? Deixo este problema à consideração de quem o quiser considerar. Vou dedicar-me a fruir desta sexta-feira, antes que ela acabe. Incluirá por certo um tempo de leitura.
quinta-feira, 6 de outubro de 2022
Fazer silêncio
Seria um sábio o jurista Alberico Gentili que, nos finais do século XVI, terá dito Silete theologis in munero alieno! Eis um imperativo que, para além dos teólogos, todo o ser humano deveria seguir. Que os teólogos façam silêncio sobre assuntos que lhes são estranhos! Prosaicamente, Gentili está a dizer aos teólogos da época para não se imiscuírem nos assuntos do Direito. Este é um extraordinário conselho, embora talvez um pouco deficitário, a não ser que concebamos a referência aos teólogos como uma metonímia, em que se toma a parte pelo todo. Que todos os seres humanos fizessem silêncio sobre os assuntos que lhes são estranhos. Isto teria a vantagem de eliminar parte substancial do ruído existente no mundo. Plausivelmente, ditaria o fim das redes sociais e acabaria, inapelavelmente, com estes textos, pois um narrador sem nada para narrar tem de encontrar matéria nos assuntos que lhe são estranhos. A frase de Gentili tem, por outro lado, um inusitado efeito revelador. Em cada um de nós existe um espírito de teólogo, pois não apenas temos opinião sobre tudo, como gostamos muito de meter a foice em seara alheia, embora eu não tenha certeza se esta expressão deriva do campo dos saberes, ou se do campo erótico, ou se dos dois ao mesmo tempo. Não sei a razão, mas esta quinta-feira tem-me parecido uma segunda-feira. A luz continua anémica, tem uma falta clara de glóbulos vermelhos, o que faz com que não consiga levar oxigénio ao Sol, para este dardejar a Terra com mais vigor ou com maior poder de cintilação. De súbito, na praceta aqui em baixo, fez-se um grande silêncio, como se todo o tumulto tivesse sido engolido pela terra.
quarta-feira, 5 de outubro de 2022
Da concórdia
terça-feira, 4 de outubro de 2022
A hora certa
Comecei pela clínica privada onde costumo ir. Não havia médicos de família disponíveis. Pensei que tinha a obrigação de ser bom cidadão e não ir entupir as urgências do hospital público. Telefono para o centro de saúde, talvez umas quatro vezes. Nunca me atenderam. Decido, mesmo assim, ir lá. Chego, na recepção perguntam-me o nome do médico de família. Debito um nome, embora não tivesse a certeza, só sabia que era uma rapariga nova, que terei visto uma vez por causa da pandemia, mas parece que acertei. Dizem-me para me dirigir a um balcão. Assim fiz. Explico o que se passa. Informam-me que, como não tinha consulta marcada, só poderia ir a uma consulta aberta se lá estivesse até às oito da manhã. Eram quatro da tarde. Registei que não se pode ficar doente depois das oito. O que me impressionou mais foi a quase ausência de pacientes na sala de espera e o pressentir a presença de médicos nos gabinetes. Não tive outro remédio senão a ir fazer número para a urgência do hospital público. Havia muita gente, mas fui triado rapidamente, deram-me uma pulseira com uma bolinha amarela e mandaram-me esperar numa sala pequena. Passado pouco tempo estava a ser consultado. Acabada a consulta fui injectado, esperei um tempo como na vacina da COVID, a médica que me viu tornou-me a chamar, deu-me as receitas e fui pagar num terminal em que se fala com a máquina e não com pessoas. A dor lombar que quase me tolhia o andar retrocedeu e começo a sentir-me com outra disposição. A única coisa que não compreendo é a racionalidade disto. Seria mesmo necessário ir à urgência hospitalar? Talvez tudo seja planeado milimetricamente, para que depois nas televisões se culpem os pacientes pela barafunda das urgências hospitalares. Também aprendi uma coisa. Em Portugal, esse país incapaz de planear seja o que for, até a doença tem de ser planeada. Se uma pessoa fica doente fora de horas, os serviços enlouquecem. Também a clínica privada me está a começar a irritar, parece estar a adquirir certos tiques do sistema público. Já é a segunda vez que me deixa pendurado. Por causa de coisas destas o quatro de Outubro de 1910 foi o último dia da Monarquia. Qualquer dia cai a República. Sem Monarquia nem República, ficamos com um problema de regime para nos governar, mas talvez nem necessitemos, cada um se há-de governar como puder, e toda a gente há-de ter os seus planos para ficar doente à hora certa. Não devo falar de política, mas um dia não são dias. Também não há coisa melhor do que acabar com um provérbio ao gosto popular.
segunda-feira, 3 de outubro de 2022
Sem ambição
Voltemos à trivialidade dos dias úteis. No friso das orquídeas, apenas duas se mantêm floridas. A de flores amarelas, porém, será por pouco tempo, pois as pétalas estão já murchas e não tardarão a cair. Mais vigorosas estão as flores fúchsias da outra. A questão das tonalidades é para mim um quebra-cabeças. Talvez a minha cultura em termos de cor não ultrapasse as 12 cores dos lápis usados para desenhar na escola primária. As primeiras lições são aquelas que ficam para sempre. Quando oiço a designação das cores por nomes como fúchsia (é assim que o dicionário da Porto Editora grafa, de preferência a fúcsia) ou índigo sinto estar perante uma conspiração feminina, talvez com a finalidade de mostrar a natureza primária dos homens, sempre rudimentares nas distinções e cegos para os pormenores, sempre incapazes de um suplemento de imaginação. Esta discussão, porém, pertence a um campo minado e o melhor é mudar de assunto. Esqueçamos as cores das orquídeas. Esta segunda-feira desliza timorata pelo calendário, não querendo outra coisa senão chegar à meia-noite. É um dia sem ambição, mesmo o Sol que o ilumina é turvo, as pessoas nas ruas parecem cansadas, o cão que atravessa a praceta tem ares de ter sofrido um esgotamento. Uma moto passa semeando um ruído inútil pelas ruas, os pássaros meus vizinhos desaparecerem. Ao longe, dois corvos voam entre ciprestes, uma árvore que abunda, desordenada, por aqui. No telemóvel crepitam mensagens a que não responderei.
domingo, 2 de outubro de 2022
Tempo térmico
Uma pessoa vai de fim-de-semana e nem dá que Outubro já fez a sua entrada no carrocel do ano. Entra com ganas caloríferas, o que, como é habitual considerar nestes textos, não é coisa boa. É notória a minha limitação de assuntos e há dois que se tornaram triviais. O protesto contra o calor e a lamentação, mais ou menos em forma de elegia, pela passagem do tempo. Esta noite, não seria já bem noite, mas umas seis horas da manhã, enquanto estava envolvido pelo silêncio profundo do campo alentejano, o meu organismo, contra a minha vontade, decidiu acordar e entrar em modo de insónia. Aproveitei para ler mais umas páginas de um livro do físico Carlo Rovelli e aí vejo coisas que, apesar de não as entender, também não deixaram de me espantar. Ele escreve: Todas as vezes que se produz um fenómeno que atesta a passagem do tempo, há algum calor produzido. E calor é tirar as médias de muitas variáveis. Aqui, ele fez uma pausa, isto é, fechou o parágrafo e, de seguida, abriu outro. Faltava o melhor e o melhor era o seguinte: A ideia de tempo térmico é inverter essa observação. Ou seja: em vez de tentar entender por que o tempo produz dissipação em calor, perguntar-se por que a dissipação do calor produz o tempo. Confesso que entendi cada uma das palavras e mesmo todas as frases escritas. De resto, não entendi mais nada. Ainda por cima, ele fecha esse parágrafo para falar do génio de Boltzmann. Seja como for, fiquei siderado por essa conjugação entre calor e tempo, pela dissipação do calor produzir o tempo e ainda mais pela expressão tempo térmico a qual tem toda a aparência de uma metáfora, ainda por cima sublinhada por uma aliteração em ‘t’. A física é uma ciência maravilhosa, só é pena que dela não saiba nada. Não se pense que estive o tempo todo, devido à perda de calor do meu organismo, a pensar nisto. Depois de algumas páginas de Rovelli, lá adormeci por mais uma hora e só agora, chegado a casa e sentando-me no escritório, me lembrei dessa aventura, que talvez não passe de uma aventura onírica. Não haverá coisa mais fascinante do que o tempo térmico.
sexta-feira, 30 de setembro de 2022
Falar poeticamente
É possível que nunca tenha deixado de ser o hegeliano que em tempos supus ser e que mais tarde supus deixar de ser. Não porque me ache um narrador dialéctico, preocupado com a ciência da lógica – da lógica dialéctica, entenda-se – ou com a fenomenologia do espírito e o devir da história. Se continuo a ser um hegeliano é porque não consigo perder o hábito da oração da manhã, isto é, a leitura da imprensa. Serei um moderno, num tempo pós-moderno. Ora, estava eu a ler, no Público, os textos de hoje do António Guerreiro, quando deparo, na rubrica Livro de Recitações uma referência à expressão “carnificina climática” usada pelo secretário-geral da ONU. O que me chamou a atenção não foi o que disse Guterres, mas o comentário. Diz que é uma expressão muito católica, que vê por detrás do que se está a passar uma vontade de vingança. E acrescenta: Ora, a Terra, a nossa mãe Gaia, não tem nenhuma vontade de se vingar. E conclui: Estas projecções supersticiosas desviam-nos da razão científica… Imaginemos alguém que, encolerizado e cheio de ciúmes, mata um rival amoroso. Dizer que foi uma vingança – o resultado de uma vontade de vingança – por lhe disputar o objecto do desejo será supersticioso? Por certo, podemos fazer uma descrição absolutamente científica do comportamento do assassino. Explicar como as emoções agiram sobre o seu corpo e o seu cérebro, como isso desencadeou a acção que teve aquele resultado infeliz. É plausível que se possa fazer a descrição do acontecimento sem recorrer à expressão vontade de vingança, nem tão pouco aos pretensos móbiles da acção. Utilizar a expressão vontade de vingança é falar poeticamente, usar uma metáfora para descrever aquilo que poderia ser explicado pela neurofisiologia e pela mecânica, sem lhe acrescentar qualquer tonalidade moral. Contudo, este dizer poético do que aconteceu é muito mais eficaz do que a explicação científica do sucedido. Supor que há uma carnificina climática e que a Terra se está a vingar é falar poeticamente, usando o poder evocativo da poesia para dar a entender o que se está a passar, revelá-lo nas suas consequências. Acabo a semana útil e o mês de Setembro prolixamente. Deveria escrever menos e, de preferência, melhor, mas estou um pouco atordoado por ter descoberto que talvez ainda seja um hegeliano, embora não dialéctico, caso isso seja possível. Amanhã será outro mês.
quinta-feira, 29 de setembro de 2022
Outras vidas
Hoje chegaram-me dois livros comprados online em alfarrabistas. Tenho sempre imensa curiosidade para ver se dentro deles encontro vestígios de outras vidas, com a mesma curiosidade com que os astrónomos varrem os céus à procura de sinais de vida inteligente. Fui recompensado. Num deles, Raiz Funda, de Fernanda de Castro, existem várias mensagens. Apesar de não conter data, a obra é de 1951, publicada pela Bertrand. O alfarrabista escreveu a lápis 15€ - 1ª edição. Originalmente, o livro terá sido vendido na Livraria Balzac, na Rua D. Estefânia, em Lisboa. Fiz uma pesquisa na internet e não encontrei vestígios da livraria. Deve ter desaparecido há muito. Na terceira página, a do título, encontra-se manuscrito De: (assinatura ilegível). Mais abaixo Lisboa, 26-X-1985 / Largo da Princesa. É possível que o comprador ou compradora de 1985 fosse a primeira, que o livro tenha ficado em estante mais de três dezenas de anos. Também é possível que tenha sido uma segunda aquisição. Depois, o proprietário – ou descendentes – tê-lo-á revendido, já no tempo do Euro. Entre a publicação e a chegada à minha mão demorou mais de 70 anos. O outro livro é o romance Nunca Diremos Quem Sois, de Urbano Tavares Rodrigues, publicado em 2002, pela Europa-América. Não tem nada escrito nas suas páginas, mas dentro dele traz o duplicado de uma nota de compra da Cooperativa de Consumo dos Trabalhadores da Segurança Social de Lisboa. Segundo informação manuscrita o valor do livro era de 12,90€ e devia ser descontado de uma só vez no vencimento da funcionária, cujo nome consta de forma explícita. Não tem sinais de leitura. A lombada encontra-se em perfeito estado, o que não aconteceria nestes livros da Europa-América, caso tivessem sido lidos. Interessante seria descobrir as motivações que levaram os proprietários à compra daqueles livros. Porquê um romance de Fernanda de Castro? Porquê um de Urbano Tavares Rodrigues? Também não seria desinteressante conhecer os meus motivos, mas estes são-me ainda mais ocultos do que aqueles daquelas pessoas que desconheço. Hoje é quinta-feira e o dia caminha para o crepúsculo. O azul do céu está maculado de cinza e a luz do sol traz dentro dela toda a melancolia do Outono.
quarta-feira, 28 de setembro de 2022
No Olimpo dos escritores
Quase no início do seu último romance, Tudo é Princípio,
– publicado postumamente – Fernanda de Castro escreve nem ela tinha desses
feitios universais que ligam bem com toda a gente. Haverá alguém detentor
de um feitio universal? Talvez a realidade seja outra. Haverá pessoas que têm
um talento especial de se aproximar apenas daquelas a que se podem ligar sem fricção.
A repetição dessas aproximações cria a ilusão de possuírem uma capacidade para
se dar com toda a gente, mas o caso é outro. Possuem um faro excepcional para
detectar imbróglios e afastar-se de quem lhes criaria problemas. Para lá disso,
Fernanda de Castro foi uma figura central do mundo literário português no
século passado. Como aconteceu com Joaquim Paço d’Arcos, os seus compromissos
políticos acabaram por lançá-la na semiobscuridade. Não penso, porém, que o seu
lugar – o de ambos, diga-se – na história da literatura nacional vá depender
das suas opções políticas. O decisivo vai ser a qualidade literária. A espuma
da política passará e o que fica é a obra. As posições políticas, por mais
detestáveis que tenham sido – e foram-no –, de Knut Hamsun e de Louis-Ferdinand
Céline não constituem razão suficiente para serem banidos do Olimpo dos escritores.
Como se aprendeu com a mitologia grega, os deuses estão longe de serem
moralmente inatacáveis. O que os mantém os escritores no Olimpo são as obras e
não as ideias políticas. Hoje em dia há uma moda de censurar, se não mesmo de
banir, as obras, e as grandes e decisivas não estão imunes ao vírus, que têm laivos
de inadequação moral, e a política não deixa de ter contornos morais. Uma moda
detestável, que não é diferente, na substância, de pôr os livros no índex ou de
os submeter à censura, instituição que em Portugal chegou a ser denominada
eufemisticamente como exame prévio. Seja qual for o lado da barricada em que os
escritores portugueses estiveram entre 1926 e 1974, o decisivo é o que
escreveram. Se não já hoje, amanhã, por certo.
terça-feira, 27 de setembro de 2022
Apoteose e queda
Não é raro acontecer dar por mim envolvido em pensamentos inúteis, muitas vezes construídos sobre a areia de analogias frouxas. Foi o que aconteceu há pouco. Em vez de pensar sobre os males que crescem como cogumelos neste mundo – por certo, o melhor dos mundos possíveis, visto não haver outro –, o espírito começou a especular sobre o caso em que o momento de grande apoteose é já o primeiro de uma queda que se vai tornando vertiginosa. A analogia sem tino estaria em comparar a subida até ao cume da montanha e a ideia de pessoa. Atingido o ponto mais elevado da montanha, resta a descida, a queda. A ideia de dignidade da pessoa foi o instante supremo de glorificação, o cume, do ser humano. Depois, a descida. Isto veio a propósito de um curto-circuito ocorrido na minha rede neuronal entre os senhores Immanuel Kant e Robert Musil. O primeiro assinala o momento apoteótico da afirmação da dignidade da pessoa, fundada no poder que os seres racionais têm de dar fins a si mesmos. O segundo, com o romance O Homem sem Qualidades, reconhece o avanço triunfal da impessoalidade. Kant é o cume, o momento apoteótico de uma aventura que começara no Renascimento. A partir dessa hora restou a descida que parece não ter parado. Por certo, não devia pensar nestas coisas. Não tenho solução para lhes dar, e toda a gente quer soluções para tudo e para nada. Estes pensamentos, por outro lado, revelam que tenho uma alma, caso existam almas, inclinada para a ociosidade. O que não será um bom indicador de carácter. O que vale, apesar de tudo, é eu ser um narrador, uma figura ficcional, a criação de um autor com o qual tenho divergência fundas e desavenças constantes. Ainda não compreendi as razões que o levam a pôr na minha cabeça este tipo de coisas, quando me podia destinar a contar a história da criança que chora no parque infantil ou a descrever a voz da mãe, não muito feminina, que tenta consolá-la. Eu sei que aquilo que é feminino e aquilo que é masculino se tornou objecto de disputa, mas estou proibido de tocar em assuntos que tenham a política de permeio. Deo gratias!
segunda-feira, 26 de setembro de 2022
Metáforas e palimpsestos
Pudesse eu começar este texto com uma metáfora, nem teria de ser bela ou reveladora de um mistério, e tudo deslizaria melhor nesta segunda-feira, que ressuma luz branca e entediada pelos poros dessa pele agreste que cobre o corpo dos dias. Imagino, por vezes, que não passo de uma metáfora, de algo que está no lugar de qualquer outra coisa, mas nunca consigo saber que coisa é essa. Já tentei a análise da corrente de consciência e a prática activa da reminiscência, mas tudo foi em vão. Ocorre-me que cada ser humano é um palimpsesto, que cada eu só é possível porque um eu anterior foi raspado, apagado, para que uma nova reutilização dos materiais desse origem a alguém que se achará pura individualidade, um ser inédito e inigualável. Esquecemos, ou não queremos saber, que não passamos de material reciclado. Quando era novo, li bastante Camus e algum Sartre mais nauseado. Hoje penso que eles foram a placenta através da qual, naqueles dias, um certo olhar desconfiado sobre o mundo se alimentou. Tinha o dia de hoje todo programado, mas bem cedo a desprogramação cravou as garras no meu dia e aquilo que era um cosmos idealizado tornou-se um pequeno caos. Imagino que alguém dirá que a vida é isso. Será.
domingo, 25 de setembro de 2022
Indecisão do mundo
Apenas uma escaramuças em torno da tabuada de multiplicar, o
resumo da interacção matemática entre avó e neta. Parece que é um problema com
a rapidez do cálculo mental. Acabei por imprimir as tabuadas, para sanar o
conflito. Houve promessas de as decorar, embora eu tenho uma certa propensão
para o cepticismo. Livres dos assuntos escolares, entregam-se, as duas – tanto
a que sabe de cor as tabuadas de multiplicar, como a que não sabe e tem aspecto
de não querer saber –, à realização da sua sina de adolescentes. Riem-se de coisas
que não têm graça, mas que o apurado faro humorístico pós-infantil, na versão
feminina, encontra sempre causa de escárnio e, não poucas vezes, de maldizer.
Não tarda, vão-se embora. Está um domingo indeciso, não sabe se há-de correr
para trás, para se entregar ao sábado, se se há-de deixar deslizar para
segunda-feira. Também os carros que passam sorumbáticos na avenida sofrem do mesmo
mal. Levam famílias que aspiram tanto à irresponsabilidade dos sábados, quanto
à liberdade dos dias úteis, onde podem suspender por largas horas o convívio.
Consolam-me, perante a indecisão do mundo, as palavras de Schopenhauer: Também
toda a nossa existência, no conjunto e no detalhe, traz a marca da coacção:
cada indivíduo é preguiçoso no fundo do coração e aspira ao repouso; mas é
forçado a avançar, como o planeta em que habita, em que a força que o impele
para diante impede-o de cair sobre o Sol. Somos forçados a avançar por uma
força que não controlamos. Tomado como boa a analogia schopenhaueriana,
avançamos para retornar ao mesmo sítio, que é aquilo que acontece à Terra. Não
será bem ao mesmo sítio, pois o sistema solar também se deslocará com a galáxia
a que pertence, mas ao mesmo sítio relativo. Talvez melhor fora que nos
déssemos ao repouso, tal como ordena aquilo que habita no fundo do nosso
coração, que é o sítio onde se encontra o melhor que há em nós, diz-se.