Tem o número 000834 da biblioteca de um centro paroquial. Olhei para o número e pensei que seria grande a esperança de quem começou a catalogar os livros. Chegar às centenas de milhares seria um feito. O mais plausível é que quem carimbou aqueles algarismos, pois trata-se de um número carimbado, não tivesse meditado o suficiente nem em quantidades, nem em livros e muito menos em quantidades de livros. O destino dessa biblioteca paroquial foi o fim e os livros apareceram à venda. No site onde o comprei, havia informação de que estavam a esvaziar a sala onde se encontrava a biblioteca, pois era precisa para outras coisas. De facto, o espaço é pouco e talvez os livros sejam coisas que se dêem mal no espaço pertença de uma paróquia. O livro é composto por duas peças de teatro – A Muralha da China e Biedermann e os Incendiários – da autoria de Max Frisch. Há muito que não leio teatro. Não estou a dizer a verdade. Há uns meses li uma peça de Shakespeare, mas já não me lembro qual. Uma das portas que me permitiu entrar na literatura foi, todavia, o teatro. Sófocles e Sartre. O que li, então, exerceu forte influência sobre o meu pobre espírito de rapaz provinciano, mas não foi suficiente para me tornar um fiel leitor de peças teatrais. Recebi o livro há pouco, pois o centro paroquial é daqui perto e combinei ir lá buscar o livro. Pareceu-me uma paróquia muito dinâmica, mas imagino que pouco inclinada à leitura. Eu troquei o dinamismo pela leitura e não fiquei a ganhar, aposto.
sábado, 16 de dezembro de 2023
sexta-feira, 15 de dezembro de 2023
Sextar
Estou dividido, embora a divisão seja superficial. Imagino que tenha sido no Brasil que a sexta-feira gerou o verbo sextar. Chegado a sexta-feira, alguém grita sextou! Não deixa de me divertir essa capacidade de reinventar o português que existe no Brasil. Por outro lado, não me ocorreria chegar a esta hora e gritar sextou! Em primeiro lugar, porque é desagradável andar a gritar por aí. Depois, porque temos obrigação de economizar nos pontos de exclamação. Por fim, porque há qualquer coisa de infantil na expressão. Como é hábito, a expressão começa a penetrar no léxico dos portugueses, que terão menos poder de imaginação para reinventar a língua e são mais sisudos do que os brasileiros. A conjugação destes dois factores faz com que, para sorrirmos, importemos a pilhéria do outro lado do oceano, tal como importámos o Carnaval, para que as raparigas despidas tremam de frio, enquanto expõem o corpo e fingem dançar o samba. Seja como for, chegámos ao crepúsculo desta sexta-feira, num momento em que o azul do céu se torna cinzento, para, depois, devir negro. Antes de chegar a casa, passei por um supermercado para comprar umas coisas que consta fazerem falta em casa. Acrescentei a isso duas garrafas de vinho, que não estando em falta, sempre animam o coração. Tinha já tudo acomodado quando descubro que deixara a carteira no carro. Ocorreu-me então que na pandemia se tinha desenvolvido o hábito de pagar por MBWay. Foi o que me salvou de ter de abandonar as compras e ir ao carro em busca do santo graal. Esta foi, felizmente, a coisa mais extraordinária que me aconteceu até agora, e assim espero que se mantenha. Não há nada pior do que as coisas extraordinárias. Às ordinárias sabemos como enfrentá-las, às extraordinárias, o fôlego já não é o que era. Estou a fazer horas para ir caminhar. Deixo que o fluxo do trânsito abrande, para não ter de respirar a fumarada que sai dos carros.
quinta-feira, 14 de dezembro de 2023
Especulações
Alguém diz Sem dúvida, o futuro será sombrio. Eu oiço o que é dito. Melhor, eu não oiço o que é dito, mas vejo o que está escrito. Talvez a pessoa que escreveu tal coisa não a diga. Imagino que nunca ninguém terá pensado nessa possível dissonância entre dizer e escrever. Imaginemos uma pessoa que, ao falar, diz certas coisas, mas que ao escrever se recusa a transpor por escrito as suas crenças orais. Quando escreve afirma coisas diferentes ou mesmo contraditórias. Todos tentamos unificar o ser que somos ao falar e aquele que somos ao escrever, mas será que somos o mesmo quando falamos e quando escrevemos? Imagine-se um académico. Quando faz uma conferência defende um certo ponto de vista sobre um dado assunto. Quando, porém, escreve um ensaio sobre esse mesmo assunto, propõe coisas radicalmente diferentes. A especulação desviou-me do tema que aqui me trazia. Como poderá alguém não ter dúvidas sobre a natureza sombria do futuro? O futuro, digo eu, não será sombrio, nem luminoso, nem negro. O futuro não existe, nunca existiu e nunca existirá, enquanto o tempo for aquilo que é. Eu nunca estarei no futuro, nem nunca estive no passado. Estive sempre no presente e, enquanto este se move, eu desloco-me com ele, que nunca me deixa abandoná-lo, e eu, por mais que tente, nunca consigo fugir-lhe. O resto são memórias e expectativas, mas nem uma coisa nem outra são tempo. Estas duas insanas especulações resultam de ter tido, malditas memórias, uns dias atribulados, preenchidos com tarefas que não contribuirão para a gesta que me há-de elevar à glória. Agora, essa casa de onde nunca saio, vejo um rosto feminino. Dos olhos abertos, deslizam duas lágrimas. A gravidade, todavia, é mais forte numa face do que na outra. Uma lágrima desliza mais rapidamente e aproxima-se já dos lábios. A outra parece parada sob a pálpebra. Eu fico a contemplar, numa revista, aquela estranha exposta numa fotografia a preto e branco. De súbito, encontrei nela uma inquietante semelhança com Eduína. Talvez os olhos abertos, talvez os lábios desejáveis, talvez a expressão de perplexidade, talvez o corte de cabelo. Se existisse passado, eu poderia dizer fui visitado pelo passado, mas não existe e eu não o digo.
quarta-feira, 13 de dezembro de 2023
Uma realidade disfuncional
Nem sei por onde começar. Há qualquer coisa que de disfuncional na realidade. Por exemplo, e começo por aí, o despudor com que ela se recusava, há pouco, a cumprir a previsão meteorológica. Para aqui, o site dava sol, ligeiramente encoberto por alguma nuvem passageira. Enquanto bebia café, consultava a previsão e via chover. Como pode a realidade, enganar-se deste modo, perguntava-me, não sem perplexidade. Demorou tempo até ela perceber o que lhe estava prescrito e deixar que o Sol brilhasse, apesar de algumas nuvens inconvenientes. Pior do que isso é o enigma do número 1949. Recebi há pouco um livro, Não Sou Stiller, um romance do escritor suíço Max Frisch. Um livro comprado num alfarrabista online. A tradução portuguesa, da saudosa Arcádia Editora, é da escritora Fernanda Botelho, e foi publicada em 1958. Ora, e aqui está o enigma, no canto superior direito das terceira e quinta páginas aparece um nome, um apelido grafado em maiúsculas, e debaixo dele o número 1949. Não faz sentido ser a referência ao ano da compra, pois a edição portuguesa só apareceu nove anos depois. Também não faz sentido que seja o ano de nascimento do comprador, pois é implausível que alguém de nove anos tivesse comprado aquele livro. Também não é referência ao ano da publicação original da obra, pois esta é de 1954. Folheio o livro à procura de pistas, mas não encontro nada. A única nota digna de atenção encontra-se no facto da página 181 estar dobrado no canto inferior direito, formando a dobra um triângulo rectângulo escaleno. Esta informação é interessante. O proprietário, eventualmente parou a leitura nessa página, não chegando a metade das 450 que compõem a obra. Um primeiro traço emerge, era pouco persistente. Também é claro que, apesar disso, procurava distinguir-se, pois a norma para dobrar as páginas é usar um canto superior e não inferior. Isso é confirmado pela forma como escreveu o apelido, todo em maiúsculas. Se fosse amante da harmonia e da proporção teria dobrado a folha em forma de triângulo equilátero, mas não. Repugnar-lhe-ia o princípio da igualdade e optou pela total diferenciação e o desequilíbrio. Certamente, alguém que gostaria de se armar em importante, dirá um espírito mais impiedoso que o meu. Com tudo o que se sabe do proprietário, ainda nada sei do número 1949. Como se vê a realidade não apenas é disfuncional, como resiste a que a compreendamos. Derrotado, desdobro a página e fecho o livro. Coloco-o na pilha de livros a ler e vou apanhar Sol.
terça-feira, 12 de dezembro de 2023
Melancolia cantabile
Já não tenho idade para estas coisas, pensei. Logo, porém, me arrependi do pensamento, pois é agora que começo a ter idade para frequentar com assiduidade consultórios médicos e enfrentar a estranha forma como os médicos lidam com o tempo, bem como com a sua inultrapassável incapacidade para perceberem a palavra pontualidade. Setenta e cinco minutos após a hora marcada entrei para consulta. É evidente que poderia ser pior. Cento e cinquenta minutos seria bem mais desagradável. Depois, fui recebido com um pedido de desculpas. O problema é que estes pedidos de desculpa são meramente protocolares, fazem parte do business as usual. Passada essa provação, o meu dia foi assediado pela chuva e pelo cinzento que deslizou do céu e se incrustou por ruas e avenidas, tingindo o casario de uma melancolia quase cantabile. Ao passear pela rua, pensei no húmus. Que excelente húmus dariam estas folhas mortas que inundam os espaços da cidade. Não faço ideia a razão que me trouxe a esta constatação agrícola, logo eu que não tenho qualquer inclinação para a vida no campo. Elevo o pensamento aos céus e, em ânsia, peço uma noite sem chuva, que me permita caminhar. Preciso de coleccionar pontos cardio e de evitar comparações melindrosas entre o peso que tenho e aquele que deveria ter. Disfarço bem a discrepância, mas que ela existe, existe. Vou jantar. Talvez o melhor é fazer jejum, mas não estamos na Quaresma. E mesmo nesta já ninguém jejua.
segunda-feira, 11 de dezembro de 2023
Uma questão de adequação
Distraí-me e entalei um dedo no quebra-nozes. Foi o segundo incidente no espaço de minutos. O primeiro foi a recusa do dito quebra-nozes em quebrar uma noz. Aliás, um fruto pequeno, quase miserável, mas de casca resistente. Teve de ser subjugada à martelada, não com um martelo. Usei o próprio quebra-nozes, agora em função de martelo. Talvez o instrumento se tenha sentido humilhado pelo uso contra-natura e, vendo-me distraído, abocanhou-me um dedo. Faz parte da ingenuidade dos seres humanos despir os objectos materiais de vontade. Não me parece plausível a ideia de lhes negar um querer, pois eles querem muitas vezes aquilo que nós não queremos e submetem-nos ao querer deles. Imaginemos um carro que se recusa a trabalhar, enquanto nós, os seus proprietários zelosos, estamos cheios de pressa para um compromisso inadiável ou para o encontro da nossa vida. Isto não é um querer? Claro que a inocência humana designa por avaria aquilo que é um acto da vontade e, para mais se iludir, julga o caso como um acidente mecânico ou electrónico, ou qualquer outra coisa que desculpe a maldade do dispositivo. Não consigo compreender o alvoroço que anda aí por causa de podermos vir a ser dominados pela inteligência artificial ou por robôs. Se já somos dominados pelas máquinas a que não atribuímos nem inteligência nem vontade, o que poderemos esperar de dispositivos a quem demos inteligência e mesmo vontade? Retornando ao caso do quebra-nozes, tenho de considerar que foi benévolo comigo, apesar da maldade que lhe vejo no rosto. O dedo não sofreu grande coisa, mas imagino que foi um aviso. Da próxima vez que quiser martelar uma noz renitente vou buscar um martelo. É uma questão de adequação entre o objecto e a finalidade.
domingo, 10 de dezembro de 2023
Na aldeia
Depois de uma viagem ao mundo colonial trazido por Joaquim Paço d’Arcos, entretenho agora as insónias com uma viagem por Madona, de Natália Correia, uma visita – pelo menos de início – ao mundo alternativo da parisiense rive gauche, no pós-segunda guerra mundial, onde, supostamente, Sartre oficiava um culto a não se sabe bem o quê, e no qual alguns portugueses se tingiam de modernidade, que haveria de ser usada na pátria para encontrar distinção e sublinhar a boçalidade daqueles que o acaso ou as possibilidades não conduziram à capital francesa. Não será improvável, tendo em conta o que já li no romance, cerca de um quarto, que tudo acabe em querelas domésticas, passadas na província, num mundo onde ninguém ouviu falar de Sartre e da rive gauche, nem de náuseas, ou sequer do velho spleen baudelairiano, bem anterior à náusea existencial. Em novo, por certo, eu terei cultuado esses heróis de outras gerações que viveram esses anos de perdição. Hoje, porém, dou graças por a vida ter-me poupado a esses destemperos e a ilusões que só poderiam lembrar ao génio maligno do senhor René Descartes. Apesar de velho, nasci demasiado tarde para poder imaginar sequer a minha pessoa a deambular pelas caves, onde o jazz se europeizava. Sento-me, em silêncio, e vejo correr o rio da minha aldeia, que não é aldeia, mas uma cidade que parece uma aldeia. E nisso está toda a minha felicidade, enquanto leio os poemas de Alberto Caeiro e vejo neles toda a verdade deste mundo, mesmo que seja apenas a verdade desta hora de domingo em que escrevo isto.
sábado, 9 de dezembro de 2023
O que me vale
Caminhar na capital não é das coisas mais suaves. Subir e descer, descer e subir. Enquanto se desce, as coisas não estão mal, mas tudo tem um preço e a cada descida corresponde uma subida. Talvez não seja muito sensato fazer pontos cardio num sítio como este, a não ser que se vá para a margem do rio, onde tudo é mais plano, o que não estava nas minhas intenções. Para recuperar as calorias perdidas, perdi-me num restaurante perto do Museu Nacional de Arte Antiga, onde são oferecidos – isto é um eufemismo, claro – pratos dos sítios por onde os portugueses andaram. Escolhi uma visita ao Brasil e não me arrependi. Depois, retornei à caminhada. Chegado a casa, em vez de ir ao cinema, como tinha pensado, sentei-me e fiquei a ver um jogo de rugby da Taça dos Campeões. Não me perguntem quais eram as equipas. Uma era irlandesa, a outra inglesa. O jogo foi interessante, apesar de ter adormecido uns minutos depois do intervalo. Contudo, adormecer diante de ecrãs e monitores tornou-se uma das minhas especialidades. A gesta de que sou o protagonista está cheia de grandes actos libertadores do mundo. É nessa categoria que se devem colocar os adormecimentos diante da televisão ou do computador, onde o meu ser ensonado vence o obstáculo do estado de vigília. O Outono declina a olhos vistos, o solstício de Inverno está a uma distância de menos de duas semanas. Não tarda é noite de Natal e um novo ano perfila-se já bem dentro do horizonte. Hoje é daqueles dias, que não são poucos, em que nada tenho para dizer. Vale-me o ser capaz de inventar qualquer coisa em cima da hora.
sexta-feira, 8 de dezembro de 2023
Agora
Neste momento, onde me encontro, tenho um único livro em papel à mão. Não é um livro recomendável, nem o é o seu autor. O livro compila um discurso de 4 de Janeiro de 1849 e a troca de correspondência entre o autor e o Conde de Montalembert. No início do discurso, depois do protocolar Meus Senhores e de mais umas quantas frases, referindo-se a um discurso anterior que seria o epílogo de um outro epílogo, e este era o epílogo de todos os equívocos que foram inventados durante os últimos três séculos e que trazem inquietadas quase todas as sociedades humanas de hoje. Este tipo de crença é extraordinário, pois supõe que antes destes três últimos séculos não se tinham inventado de maneira sistemática equívocos, além de supor que as sociedades anteriores teriam menos razões de inquietação. Tudo isto faz parte do combate político no congresso espanhol de então, coisa que não me interessa. Todavia há uma prova da incapacidade humana para olhar o passado, imaginando-o um tempo superior ao presente, mesmo que o presente já tenha três séculos. Todas as inquietações que eu vivo, mesmo sendo apenas um narrador, isto é, uma figura literária, todas as inquietações que eu vivo, repito, são presentes, pois não nos foi dada a capacidade de viver as inquietações de um passado onde não existíamos. A este tipo de crenças chamam-se involucionistas. Crêem, consciente ou inconscientemente, que o início da vida do homem na Terra foi esplendoroso, vivia-se na idade do ouro, e que a partir desse momento tudo se foi degradando, foi involuindo. Tanto aqueles que vêem no passado a sua casa, como os que a vêem no futuro, têm um problema com a sua própria existência, pois esta apenas se dá no presente. A idade do ouro ou a idade de ferro apenas existem no presente, pois não há outro tempo que possamos habitar. Ninguém vive no passado ou no futuro, vive no agora. O resto são suposições fundadas na memória ficcional e na expectativa também ela ficcional. E agora é de noite.
quinta-feira, 7 de dezembro de 2023
Ensaio sobre a noite
Há muito que não via anoitecer na capital, não numa dessas capitais do tremoço, da castanha pilada, do rabanete ou do chouriço, as quais abundam por esse país, onde não há lugarejo que não seja capital de alguma coisa, mas na capital verdadeira, aquela que foi capital de um império e agora é a de um país que, na ponta mais ocidental da Europa, parece precipitar-se para o oceano. O problema do anoitecer numa capital é que os prédios se interpõem entre o observador e o céu de onde cai a noite. Uma pessoa é surpreendida. Na província, numa província plenamente provinciana, o cair da noite oferece-se ao olhar contemplativo daquele que a espera. Não entra furtiva pela casa dentro, como um ladrão que viesse roubar a luz dos nossos olhos, mas como um convidado que se faz anunciar atempadamente, dando-nos tempo para o esperar e lhe dar as boas-vindas. Isto significa que a mesma noite não é idêntica no seu ser moral. Nas grandes cidades, ela não passa de uma entidade delituosa, enquanto na província é um anjo benfazejo. Onde estou, existem três cães. São cães citadinos, daqueles que são passeados à trela pelas ruas. Mantemos uma relação de justa distância, eles no seu território e eu no meu. Eles esboçam para mim um pedido de amizade, mas apenas lhes prometo que não seremos inimigos. O pior é que ressonam, talvez julguem que a noite é toda ela para dormir, eles que nunca pensaram sobre a noite, nem sabem distinguir a capital da província.
quarta-feira, 6 de dezembro de 2023
Precipitação
Tem estado um belíssimo dia, frio, mas não muito, uma luz feita de cinza, que deixa cair sobre as ruas da cidade uma certa tristeza sonâmbula e a ventura da melancolia. Tudo fazia lembrar o Natal, esse Natal que se imagina com um tempo quase gélido e de neve nas terras altas, o que não será o caso por aqui. O relógio parou e tive de ir a uma relojoaria para que lhe mudassem a pilha. O tempo que tinha parado há dois dias voltou a pôr-se em marcha. Não sei se esta decisão de reactivar o tempo terá sido sensata. Talvez fosse uma oportunidade de suspender o tempo ou, pelo menos, fixá-lo naquele instante em que os ponteiros se imobilizaram. Quando saí da relojoaria senti uma leve sensação de culpa. Tornei a pôr o tempo a andar e restituí todos os seres à sua condição transitória e mortal, no caso dos seres que são vivos. Foi uma precipitação. Não fiz mais do que copiar a precipitação original de Eva e Adão, a qual nos tornou mortais. Fiz o mesmo ao precipitar-me para pôr o relógio a funcionar, não aproveitando a oportunidade que me foi dada para salvar o universo da sua irremediável perda. Como poderei eu ser um cavaleiro andante digno de ombrear com o Cid, El Campeador, com o rei Artur ou com Ricardo, Coração de Leão, se me precipito na hora crucial em que tudo se decide? Não posso, para meu desgosto. É possível que quem tece as linhas com que se compõe o fado de cada um se tenha precipitado e, por isso, ter-se-á esquecido de pôr no meu destino essa gloriosa tarefa de derrotar o tempo, matando Cronos pelo simples acto de me recusar a pôr uma pilha miserável num relógio ainda mais miserável. É a hora do crepúsculo. Parece que acentua nos pacientes a tendência para a loucura. Vou para a janela ver chegar a noite.
terça-feira, 5 de dezembro de 2023
Um herbário passional
Ao passar hoje por uma FNAC, descobri que tinha sido editado um primeiro volume da poesia completa de Pedro Homem de Mello. Também está disponível a poesia completa de Natália Correia. Não comprei nenhum, mas é uma questão de tempo. Há um mistério que não consigo decifrar. Portugal é um país onde poucas pessoas lêem. Se se trata então de poesia, o número será ínfimo. Contudo, o negócio das obras poéticas completas parece ir de vento-em-popa. Por norma, são edições cuidadas, capas cartonadas, preço elevado. Ouve-se, por vezes, dizer que os poetas só são lidos por outros poetas. Se isto é verdade, então somos mesmo um país de poetas. Fossem os portugueses menos dados às musas e não haveria tanta poesia completa à venda. O mais importante, porém, é que resisti estoicamente e não comprei um único livro. Troquei a adicção pela ascese. Entrei puro e saí casto. Também é verdade que já hoje tinha ido aos CTT levantar uma encomenda onde constavam os três volumes da Trilogia do Cairo, de Naguib Mahfouz, Thomas o Obscuro, de Maurice Blanchot, e o nada literário Ensaio sobre as Liberdades, de Raymond Aron. Vou aqui abrir uma excepção à estrita regra de abstenção nestes textos de qualquer referência à política. Uma citação do livro de Aron. Quem acompanhou de perto a rivalidade de partidos na Câmara dos Comuns não deixará de admitir que os ritos parlamentares, com a sua estilização tradicional, são efeito de uma arte política que, devido a uma sabedoria profunda, reconhece a necessidade do artifício para dominar as paixões, tolerando uma expressão simbólica delas. O interesse da frase vai muito para lá da política e entra no domínio da arte. Como se dominam as paixões? Através do artifício artístico, o qual constrói uma expressão simbólica dessas paixões. Estamos perto da catarse aristotélica promovida pela tragédia. A poesia, como forma de arte, é então um artifício onde se expressam e se dominam as paixões. E quem terá traduzido o livro de Aron para português? Algum sociólogo ou algum filósofo, dir-me-ão. Falso, respondo. Foi Ruy Belo. Tudo isto significa que parte dos portugueses, talvez ínfima, mas ainda assim comercialmente significativa, se entrega a esse exercício de dominar, enquanto expressa, as suas paixões. As do corpo e as da alma. Talvez a poesia não passe de um herbário passional, um lugar, na realidade fúnebre, pois os herbários são sítios onde se colecciona o que está morto, um sepulcro de paixões extintas.
segunda-feira, 4 de dezembro de 2023
Diminuição
Hoje é muito menor. Na verdade, não é, apenas me parece muito menor. Talvez seja, de facto, menor. De tarde, tive de dar um salto à capital de distrito, à zona do liceu. Ali, ainda não fizera dez anos, tive de prestar provas para ser admitido no ensino liceal. O edifício, naqueles dias de brasa, visto da minha pequenez e da experiência da escola primária, parecia-me descomunal. Entrava nele e sentia-me perdido. Era tudo ou demasiado alto ou demasiado comprido, ou as duas coisas ao mesmo tempo. Prestavam-se provas escritas e orais. No intervalo entre elas, ia-se assistir às orais dos outros candidatos, dos desgraçados que tinham de enfrentar o júri antes de nós. Das provas escritas não possuo qualquer memória, mas das orais restaram algumas. O interrogatório diante dos mapas das colónias que, naquela altura, já tinham mudado o nome para províncias ultramarinas. Rios e afluentes, produções, sei lá mais o quê. Recordo também a experiência de estar no quadro a resolver os problemas que um professor de bata branca, que me pareceu muito velho, mas que talvez nem o fosse, se lembrava de me colocar. Contudo, nada disso me impressionou, nem os mapas, nem os problemas de matemática, nem o júri sisudo, nem o professor de bata branca, a quem, disseram-me depois, chamavam o Herodes. Apenas o edifício exercia sobre mim um fascínio temeroso, aqueles longos corredores, aquelas salas tão altas. Não estava habituado a escolas assim. Hoje ao passar por lá, senti uma leve decepção. O edifício é quase banal e, por certo, não terá corredores tão longos ou salas tão altas como aquelas que eu, nesse longínquo ano, vi. Talvez, com o passar das décadas, tenham diminuído.
domingo, 3 de dezembro de 2023
Bocejar
sábado, 2 de dezembro de 2023
Uma viagem colonial
Por vezes, obrigo-me a fazer umas viagens na minha terra. Com isto não quero dizer que me ponho a fazer turismo nacional, a ir para fora cá dentro. Sobre esse viajar turístico recuso-me a falar. As viagens na minha terra a que me refiro são outras. São incursões na ficção nacional. Preferencialmente, no romance que nasce no século XIX e vem até aos nossos dias. São autênticas caminhadas no espaço e no tempo, o que é muito mais interessante do que a viagem turística que, por mais voltas que se lhe dê, é sempre uma deslocação no espaço e apenas nele. Confesso que essas viagens na literatura sofrem um enviesamento pouco literário. Não procuro nelas, o prazer estético, o confronto com uma grande obra de arte, mas uma descoberta daquilo que imaginamos ser ao longo do tempo. Cinjo-me ao romance moderno. Se se questionar o ChatGPT sobre qual foi o primeiro romance moderno, ele diz que foi Viagens na Minha Terra, de Garrett, publicado em 1846. A realidade talvez seja diferente. Em 1845, o mesmo Garrett tinha já publicado o primeiro volume de O Arco de Santana. Por seu turno, Herculano publicara, em 1844, Eurico, o Presbítero. Esses, dir-se-á, são romances históricos, logo, não contam. Mesmo que ponhamos de lado esses dois, Viagens na Minha Terra não foi o primeiro romance moderno português, mas O Estudante de Coimbra, do médico algarvio Guilherme Centazzi, que foi publicado em três tomos entre 1840 e 1841. A obra tem um subtítulo curioso: Relâmpago da História Portuguesa desde 1826 a 1838. Será aqui o ponto de partida para as viagens na minha terra, uma visita à Universidade de Coimbra e aos tempos das guerras entre absolutistas e liberais. Como fui dotado de uma enorme inclinação para coisas inúteis, o meu anseio, nunca concretizado, é o de fazer uma história imaginária de Portugal, a partir da imaginação dos seus romancistas. Como isso é uma tarefa de difícil concretização, vou fazendo incursões aqui e ali, no intervalo das leituras que efectivamente me interessam e me dão prazer estético. Veio isto a propósito de uma opção que, às tantas da manhã, em período de insónia, me levou a ler mais de 50 páginas de o Herói Derradeiro, o primeiro romance de Joaquim de Paço d’Arcos, cuja Crónica da Vida Lisboeta, seis romances centrados na capital, merece leitura. Entrei, então, numa viagem num Portugal colonial, mas ainda não sei como ela acaba. Uma curiosidade. A história de Paço d’Arcos é inspirada por Carlos Burnay da Cruz Sobral, um aristocrata que foi um desportista de múltiplos interesses, tendo sido também jogador de futebol em vários clubes de Lisboa, nos primeiros dois decénios do século XX e que morreu numa colónia portuguesa em luta corpo-a-corpo com um leão. O herói do romance herda de Carlos Sobral não tanto a vida e a biografia, mas os traços psicológicos. Entrei, portanto, numa viagem colonial.
sexta-feira, 1 de dezembro de 2023
Exaltação patriótica
quinta-feira, 30 de novembro de 2023
Sem parar
Há qualquer coisa de sinistro no desfiar do tempo. Novembro, tal como veio, assim se vai. Por certo, mais frio, como se o seu corpo fosse já um corpo morto, à espera das exéquias fúnebres e posterior forno crematório. Eis um começo tétrico, mas não se pode começar sempre com ambientes galhofeiros e folgazões. Eis duas palavras que estão longe de me agradar, mas assim como se deve variar o ambiente, também se recomenda que se diversifique o léxico, usando aquilo de que se gosta e aquilo de que não se gosta, para que também, ao nível estético, haja uma diversificação. O que caiu na trama da invariância há alguns dias foi o crepúsculo, esse momento em que, de súbito, o dia se precipita nos braços da noite e, no terrível amplexo que então acontece, o másculo dia seja devorado pela feminil noite. Sobre estas imagens não faço comentários e omito as razões para tal renúncia. Resta comentar o crepúsculo que se tornou invariante. O traço mais marcante é ser lacrimoso, a que se adiciona um aceno melancólico e um trejeito onde, no tremor sublinhado pelo vento, se descobre o temor da morte próxima. Morre o dia, morre Novembro e o ano prepara já a hora em que entregará a alma ao criador. Como se sabe, também os anos têm alma e, por isso, são diferentes. O criador dos anos tem uma enorme colecção de almas. Colecciona-as para se comprazer na eternidade, lembrando-se, ao vê-las, daquele tempo em que existia tempo. A tonalidade amarelada da iluminação pública desenha fantasmas pelas ruas. Uma sombra solitária passa lá em baixo, enquanto se ouve o latir ansioso de um cão abandonado. Os segundos sucedem-se sem parar.
quarta-feira, 29 de novembro de 2023
Em nenhures
Fez-se noite sem que tenha dado por isso. Perdi o crepúsculo, que é sempre uma hora muito poética. Não se sabe bem a razão. Talvez, imagino, porque a poesia seja um discurso crepuscular, ali na fronteira entre a luz e as trevas. Outra possível razão será a de haver poetas que gostam de se apresentar como seres crepusculares, gente que se imagina a deixar a luz da razão para entrar nas trevas do sentimento. Uma outra poderá residir no sentimento poético de se estar numa época de declínio. Aqui, de forma decidida, entramos no reino da metáfora. Parece que a minha neta mais nova está a ser massacrada, mas ainda não percebi se é com fracções, com os verbos être e avoir ou com um qualquer facto histórico, com as suas ominosas causas e as suas tenebrosas consequências. É o que faz podermos conversar online. Da conversa passa-se rapidamente para as lições. Não me parece muito saudável, se me ponho na pele da pequena. Ela resiste, mas depois cede e acaba por ficar agradecida. Perante mim está deitado na secretária um livro de Cormac McCarthy, A Travessia. Na capa, tem uma cruz. Fico a pensar que o autor tem uma certa inclinação para a deslocação. Um outro romance dele, terrível e belo, portanto, às portas do sublime, tem o nome de A Estrada. A mim, porém, o que me fascina são os caminhos que não levam a lado nenhum. Caminhos que levam a nenhures. A um não lugar. Imagino, agora, que o espaço possa não existir, que seja apenas uma ilusão que certas espécies animais têm para poderem persistir na vida. Caso isso seja verdade, então estamos constantemente em nenhures, mas, é preciso levar o raciocínio às suas últimas consequências, o verbo estar é um equívoco, pois não existe qualquer estância onde se possa estar. Em nenhures não há estradas nem travessias, talvez crepúsculos, fracções, verbos franceses e acontecimentos históricos que ocorreram em nenhures, isto é, não ocorreram. Acho que preciso de fazer exercício físico para aclarar as ideias.
terça-feira, 28 de novembro de 2023
Do colesterol
A coisa é uma mixórdia indigna, vinda daquele país de onde não vem nem bom vento, nem bom casamento. O vento já experimentei e não era, de facto, grande coisa. Quanto ao casamento, não sei, pois nunca me casei com alguém vindo daqueles lados. Estava a referir-me, porém, a uma coisa que tem o condão, julgo, de contribuir para o aumento do colesterol, do mau, diga-se, pois consta que também há um bom. Estando sozinho e na iminência de ter de comer aquilo que cozinhasse tomei a decisão de ir almoçar ao bar do outro lado da rua. Seja o que for que escolha, pensei, não será pior do que aquilo que possa sair das minhas mãos. Na generosa lista de coisas que fazem mal à saúde, escolhi uns ovos rotos. Não sei se haveria pior, mas esforcei-me na escolha do mau. Quantos pontos cardio terei de fazer para anular os efeitos do meu livre-arbítrio? O vinho que bebi era, por seu lado, bastante razoável e talvez tenha um poder de anulação dos efeitos da escolha que fiz. Saciado, colesterolado, bebido, mas bem sóbrio, descubro nos canais de informação que na televisão russa se discute a anexação de Portugal. Consta também que há um partido espanhol que acha que a Espanha ocupa toda a Península Ibérica. Sabemos que o mundo está polvilhado de malucos, mas também sabemos que os malucos têm uma inclinação para fazer maluquices. Sem me meter em assuntos políticos, julgo que podemos conceder em comer ovos rotos e ouvir o coro do exército vermelho a cantar o Kalinka, tudo isto num ambiente alegre, quanto ao resto preferimos o colesterol bem português, as alheiras de Mirandela, a carne de porco à alentejana, os carapaus alimados, o cozido à portuguesa ou a feijoada à transmontana. Dito de outra maneira, nem xerez nem vodca, apenas uma chula minhota, um fandango ribatejano e um corridinho algarvio. Quanto mais perto do 1 de Dezembro, mas se me inflama o coração. É do colesterol, oiço. Agora, chove copiosamente, pois não há chuva digna desse nome que não seja copiosa.
segunda-feira, 27 de novembro de 2023
Um belo tempo
domingo, 26 de novembro de 2023
Alívio
Talvez seja hoje. Nunca devemos desesperar perante aquilo que é impossível. Quando, pela manhã, abri as persianas vi que uma névoa caía pela cidade. As horas foram passando e a névoa é agora nevoeiro. O hospital e o bosque da escola aqui ao lado desapareceram, a própria escola começa a entrar nessa terra do invisível que anuncia a sua inexistência. Havendo aqui um pequeno rio afluente do Tejo, não será impossível que o desejado D. Sebastião aporte na avenida, num pequeno barco a remos, como aqueles que em tempos permitiam aos locais recrearem-se a troco de uns escudos. Uma parte da população já não sabe que escudos eram a moeda em que comprávamos as coisas necessárias à existência, onde se incluíam as desnecessárias a essa mesma existência, e pensará que são armas defensivas do tempo da cavalaria, usadas para evitar os golpes das espadas e das lanças. Pagavam-se então uns escudos, não me lembro quantos, para uma meia hora a remar, mais ou menos como se se pagasse um táxi e se fosse obrigado a conduzi-lo. Desvio-me do meu objectivo. O retorno, por fim, do nosso Rei bem-amado que tinha uma particular propensão para confundir a realidade com histórias de ficção. Como se sabe, a realidade é uma megera de vida dissoluta, pouco confiável, e pregou-lhe uma partida da qual nem ele nem nós estamos ainda recuperados. Ele sonha em voltar, nós sonhamos em que ele volte, o problema é que sonhar supõe estar a dormir. Assim, ele continua a dormir e nós, para não destoar, ressonamos. Acordados, nem ele se lembra de querer voltar, nem nós o queremos receber. Aborrecimentos, contratempos e adversidades já temos que cheguem, dispensamos mais uma crise dinástica. Agora que escrevi o que escrevi, o nevoeiro está a recuar. Suspiro de alívio.
sábado, 25 de novembro de 2023
Uma agulha
Não foi com um alfinete, foi com uma agulha. Não treslouquei, embora presunção e água benta, cada um toma a que quer. Não estou a narrar alguma aventura minha na nobilíssima arte da costura, a qual evitou, durante muito tempo, que andássemos nus por esse mundo fora, a fazer figuras ainda mais tristes do que as que fazemos quando estamos vestidos. Queixei-me, já não sei bem a quem, de que tinha de mudar de telemóvel. Estava com um problema a carregá-lo, pois a porta micro usb devia estar avariada e eu não conseguia acoplar devidamente o cabo do carregador ao telemóvel. É do cotão, ouvi. Do cotão, qual cotão, perguntei eu, incrédulo e desconhecedor dos factos da vida. Andamos com o telemóvel no bolso e o cotão vai-se introduzindo na ranhura da porta micro usb, explicaram-me com paciência. Usa um alfinete e vais ver o que sai de lá. Foi um conselho generoso e gratuito, mas ao qual não dei grande atenção. Hoje, porém, cansado de estar a ajustar o cabo ao telemóvel, lembrei-me do conselho. Tentei um clip, mas era demasiado grosso. Fui em demanda de um alfinete e encontrei agulhas de coser. Peguei numa e pus-me a esgaravatar a porta micro usb. A princípio o exercício parecia inútil, mas, ao insistir, começou a sair de lá tanto lixo que fiquei de boca aberta. Entreguei-me, depois de fechar a boca, a um exercício de limpeza. Concluída a operação, liguei o cabo ao telemóvel. Milagre, pensei. Era mesmo o cotão o culpado dos carregamentos infelizes. O problema desta aventura é que não tenha encontrado um Homero ou um Virgílio para a cantar, pois não fica abaixo, por exemplo, da vitória de Ulisses sobre os pretendentes. Pelo contrário, quase sou tentado a reconhecer. O sábado, como todos sabemos, é um dia propício a grandes aventuras. Está cheio delas, mas faltam os grandes bardos para as trazerem ao público.
sexta-feira, 24 de novembro de 2023
Evitar a litania
Poderia começar por entoar a litania das sextas-feiras em honra da aproximação do fim-de-semana. Seria um início justo, mas não glorioso. A glória está para além da justiça. Uma coisa justa é uma coisa ajustada. Ora, a glória transcende o ajustamento, a adequação. O glorioso é desadequado, por excesso de adequação; é desajustado por sobejo de ajustamento. Leio a palavra samovar e imagino-me dentro de um romance russo. Aqueço a água para preparar o chá. Tudo isto, porém, é falso. Não possuo um samovar, não estou a aquecer água nem numa cafeteira eléctrica, nem sou um adepto do chá. Também não sou russo, sou apenas um meridional com nostalgia das terras do Norte. Depois da minha viagem por um romance de Thomas Mann, comecei outra num da Irène Némirovsky. Estas são as minhas viagens preferidas, contrariamente às viagens turísticas. Há pessoas que fazem viagens turísticas, mas estão convencidas que não são turistas, pois o seu viajar, por ser de uma outra ordem, embora não consigam explicar qual é essa ordem, tem uma distinção tal que não se confundem com a plebe turística. Cada um tem as ilusões que deseja, pode imaginar-se como aristocrata no século XVIII ou bombeiro voluntário no século XXII. Como não possuo alma de turista, tenho sempre uma certa resistência a deslocar-me, mas quando o faço vou convicto de que não passo de um mero turista, apesar de acidental. Contudo, se viajo num romance sinto-me um não turista, alguém que mudou de país e se instala aí, nessa nova pátria. Ler é instalar-se num universo em que se pode deambular sem sair do mesmo sítio. E é isso o que mais gosto, ser plenamente fiel à minha condição de provinciano sem mundo. Há quem sussurre aos meus ouvidos que não passo de um comodista. Eis um epíteto que transporta uma acusação moral, da qual não tenciono defender-me. Sempre evitei a litania das sextas-feiras.
quinta-feira, 23 de novembro de 2023
Moral da história
Imagine-se que alguém escreve, como eu li há pouco, este romance não tem moral. Aqui não ter moral não significa que seja imoral. Seria uma obra que estaria além, ou aquém, do moral e do imoral, que estaria, para citar um título de uma obra de Nietzsche, para além do bem e do mal. Isto, todavia, faz parte do imenso catálogo das presunções humanas. Queiramos ou não, a moralidade envolve-nos de tal modo que nunca podemos escapar a ela. Um deus ou um animal não racional estariam para além da moralidade, mas não um ser que combina a animalidade com a racionalidade. Somos intrinsecamente seres morais e o que fazemos vem impregnado com a moralidade que nos constitui. Esse estar para além da moralidade não passa de um exercício imoral da vaidade humana. Em todos os romances que li até hoje nunca deixei de encontrar traços dessa moralidade, dessa presença obsidiante do conflito entre o bem e o mal. A própria linguagem, porque é humana, demasiado humana, está impregnada de moralidade. Não é por acaso que actualmente se travam terríveis disputas em torno da moralidade da linguagem, pois as palavras não estão para além do bem e do mal. Elas são o veículo expressivo de um e de outro. As histórias que contamos, por mais destituídas que sejam de acção, não dispensam as palavras e estas arrastam consigo o peso da moral. Logo, a moral da história é que todas as histórias têm a sua moral.
quarta-feira, 22 de novembro de 2023
Profecias
Ao passar os olhos pela informação em linha, deparei-me com uma apresentação com o extraordinário título As preocupantes profecias de Stephen Hawking: fim do mundo está próximo. Um tremor invadiu-me o corpo e um temor atacou-me o coração. Fui vendo a apresentação e descubro que se a humanidade continuar a levar a vida que tem levado, isso conduzirá à destruição da Terra em menos de 600 anos. Chegado a este ponto, confesso o meu egocentrismo, respirei fundo. Não estarei cá, nem os meus filhos, netos, bisnetos. É mesmo plausível que a linha de descendência acabe e nenhum longínquo neto meu exista, quando o nosso planeta colapsar e se transformar numa bola de fogo, devido ao aumento populacional e ao incremento no consumo de energia. Meditei, depois, mais profundamente no assunto e lembrei-me de que Hawking não era um profeta, mas um físico. Um físico não faz profecias, mas previsões. Ora as previsões são uma forma de raciocínio indutivo que, segundo o parecer de David Hume, não está justificada racionalmente. As profecias são infalíveis, embora nunca se saiba a razão por que as consideramos infalíveis. Já as previsões são falíveis. O célebre físico tinha ideias extravagantes. Por exemplo, de que deveríamos emigrar para Alfa-Centauri. Haverá lá outras terras que estão à nossa espera. Assim, teremos oportunidade para transferir o conjunto de aleivosias que fazemos aqui para outro lado. Seria uma espécie de internacionalização da economia, no caso da economia do mal. Aquilo nem é muito longe, são apenas 4 anos-luz, qualquer coisa como 37 843 200 000 000 km. Seja como for, sou adepto de que sejamos enviados para lá, pois nunca lá chegaremos. A Terra livra-se de nós e os outros planetas propícios ao nosso modo de vida não teriam o desprazer de receber visitas tão inoportunas. Também eu sou um profeta.
terça-feira, 21 de novembro de 2023
Dom da ubiquidade
Alguém escreveu que as pessoas têm interesse de serem autores de si próprias. Imagino-me a ser autor de mim mesmo, a criar-me, fazendo-me vir do nada. O facto de as pessoas terem esse interesse apenas mostra que possuem muita presunção. Apesar de não ter sido Sartre o autor da frase, ele poderia subscrevê-la, com aquela história da existência precede a essência. A minha experiência de narrador prova o contrário. Eu não sou autor de mim próprio, mas uma criação de um autor com o qual tenho uma pendência nunca dirimida. Esse autor de mim, porém, não é autor de si mesmo, mas uma espécie de cuidador que tenta evitar que esse si mesmo, criado por outros, não se transvie. É nesse cuidado de si que se enxerta a ilusão de se ser autocriador. Ora, cuidar de mim já é uma tarefa suficientemente árdua, mais árdua seria a de ser autor de mim. Como se pode observar pelo escrito anteriormente, estou sem assunto digno de anotação. Seja como for, o que eu queria era ilibar-me da verrina de presunção, confessando, com humildade, que estou inocente do crime da minha autoria. Acabei de receber um telefonema solicitando a minha presença num certo sítio a uma certa hora de um certo dia. Ora, a essa hora desse dia eu terei de estar num outro lugar. Fosse eu criador de mim mesmo ter-me-ia dotado do atributo da ubiquidade. Como não o possuo, está provado que não sou autor de mim mesmo.
segunda-feira, 20 de novembro de 2023
Lei da compensação
Ultimamente, as segundas-feiras têm tido uma certa agitação. Imagino que seja a instanciação na realidade – isto é, na minha realidade, caso exista realidade e eu possua uma – de alguma lei da compensação. Assim como à bonança se segue a tempestade, também ao sossego do fim-de-semana se deverá seguir a agitação de segunda-feira. Esta explicação conforta-me, não porque me descanse da agitação, mas por me oferecer uma explicação. No fundo, somos todos como aqueles superiores hierárquicos que, desagradados do comportamento de algum subordinado, lhe exigem explicações. As explicações não servem para nada a não ser responder à perplexidade do superior, uma forma de mitigar a eventual cólera. Dão-lhe um certo conforto, pois confirmam-lhe a autoridade e permitem-lhe compreender o que não tinham compreendido. Estava a falar da lei compensação, ela encontrou em Ralph Waldo Emerson a seguinte formulação, se for pronunciada em português do Brasil: você recebe o que você dá. Eu nunca teria elaborado uma lei destas, uma lei que conduz a uma soma nula. Se não der nada, nada recebo. Fico apenas com aquilo que tinha. Ora se eu der 7/10 do que tenho, irei receber o equivalente a esses 7/10. Por grosso, depois da troca, fico exactamente como estava no início. Daqui se conclui que dar alguma coisa ou não dar nada é exactamente igual. Não sei se Emerson terá pensado nas consequências da sua lei, na paralisia que arrasta consigo. Talvez Emerson não tenha alma de legislador. Talvez tenha ficado demasiado tempo a meditar as obras de Swedenborg e acabou por não pensar no que escreveu. Há casos desses, de pessoas que não pensam o que escrevem. É possível que alguém com intenções soezes venha dizer que esse é o caso deste narrador. Não pensa o que escreve. Como não sou bom julgador em causa próprio, suspendo o juízo sobre o assunto. Caiu a noite.
domingo, 19 de novembro de 2023
Da rasura da memória
Recebo uma mensagem de um amigo, perguntando-me se eu tinha um certo texto, de 1962, do filósofo francês Paul Ricoeur. Fiz uma pesquisa pelo índice das obras do autor onde essa conferência dada em Roma poderia estar. Encontro apenas um título aproximado. Esse também ele tinha, informou-me. Recordei-me então que, na estante, dormia uma bibliogafia sistemática das obras do autor, com tudo o que escreveu e o que escreveram sobre ele até certa altura. Lá encontrei a referência ao texto e era aquele que tinha o título aproximado. Percorro a conferência, agora parte de um capítulo de uma obra importante do filósofo francês, e descubro que o tinha lido e trabalhado. Caso me o tivessem perguntado, teria respondido peremptoriamente que não. Contudo, havia sublinhados a lápis e comentários nas margens, também a lápis. Reconheci facilmente a letra como minha. Não encontro melhor explicação para o facto de ter sido eu a ler aquele texto, até porque não me lembro de alguma vez ter emprestado a obra. Resta-me concluir que fui eu que o li. Toda esta prosa insípida e maçadora serve para sublinhar um magno problema. Trata-se da retenção. Os psicólogos, julgo, estudam a memória e a sua capacidade de reter informação, mas essa informação descritiva não consegue apaziguar a perda que todos os leitores devem sentir pela rasura que o tempo produz nas suas leituras. A memória não passa de um lençol esfarrapado, onde o vazio ocupa uma área muito superior à do pano. Esse texto, cuja memória me foi roubada pelo voraz Cronos, diz a certa altura que não há acesso linguístico ao mal, quer o sofrido ou o feito, quer o moral ou físico, senão através de expressões simbólicas, tais como nódoa, desvio, errância, peso, queda, etc. Isto significa que, na fala ou na escrita, não existe uma literalidade do mal, mas todo o mal só se pode dizer simbolicamente. Podemos fazer ou sofrer literalmente o mal, mas não o podemos dizer literalmente. Ora, e aqui abandono o caminho do texto de Ricoeur, o que se descobre é que a língua contém um pudor essencial, uma contenção que não lhe permite exprimir senão por via indirecta aquilo que é inominável. Desconfio, porém, que o mesmo se passa com o bem, com o amor, com o que quer que seja de decisivo na vida. A literalidade da existência só se deixa capturar na linguagem pelo desvio do símbolo, da metáfora. Toda a linguagem é um exercício de retórica e de poética. Talvez esta estratégia seja uma tentativa desesperada para evitar o esquecimento. Debalde.
sábado, 18 de novembro de 2023
Sal da terra
Ainda se está na parte da manhã, e eu já fiz a minha caminhada e ganhei os pontos cardio respectivos. Estas caminhadas são interessantes, pois trazem-se ao ponto de onde parto. Se não as realizar, fico exactamente no mesmo lugar em que ficaria se as fizesse. Poderia também caminhar sempre no mesmo lugar, limitando-me a um exercício de mover as pernas para cima e para baixo durante um período previamente determinado. Quando caminho, faço-o para chegar onde estou. Tornei-me com o tempo um adepto do príncipe Falconeri, esse jovem impetuoso Tancredi, que, perante a céptica visão do príncipe de Salina, se saiu com aquela frase repetida até ao infinito, tudo deve mudar para que tudo fique na mesma. Eu mudo de lugar, a cada passo, para ficar no mesmo lugar. Consta que o romance de Giuseppe Tomasi de Lampedusa teria sido inspirado pela inscrição no brasão da família do autor, Nós fomos os Leopardos, os Leões; quem nos substituirá serão os pequenos chacais, as hienas; e todos – Leopardos, chacais e ovelhas – continuaremos a achar que somos o sal da terra. Também no brasão familiar, caso o que consta seja verdadeiro, há uma dose significativa de cepticismo sob o manto felpudo da ironia. Isto coloca a questão do bom pastor, como poderá ele proteger as ovelhas dos leopardos, dos leões, dos chacais e das hienas, sem lhes alimentar a ilusão que também elas são o sal da terra? Há uma distância infinita entre a afirmação evangélica, quando Cristo se dirige aos apóstolos dizendo-lhe vós sois o sal da terra, e a expressão sal da terra contida no brasão. A primeira surge quase como um aviso, uma admoestação, para que cuidem da herança e possam condimentar a terra, caso contrário serão lançados fora e pisados pelos homens. A segunda é contemplação satírica da vaidade humana, da sua pretensão de ser alguma coisa de fundamental no destino da terra. Por mim, evito o sal, por causa da hipertensão. Isto é uma mentira. Não evito, modero-me no seu uso, esperando que os hipotensores façam a sua parte.
sexta-feira, 17 de novembro de 2023
Rêveries
Cheguei a pensar que hoje era dia 18, mas percebi que não, que o tempo não tinha acelerado, que até agora a natureza se mantivera idêntica ou uniformemente regular. Não permite saltos no tempo, pois terá medo de cair num abismo qualquer. Quando percebi que ainda estávamos a 17, decidi ir espairecer, caminhar pelas ruas da cidade, acumular pontos cardio, observar, enviesando os olhos, o movimento, que era intenso. Intenso, neste lugar quase esquecido pelos deuses, será uma hipérbole, mas, comparado com outras horas do dia, a figura de estilo não será errada. Naquela hora crepuscular, a cidade tingia-se de sombras e um cinzento prateado que descia do céu foi, ao longo do meu passeio, escurecendo. Entrei em casa quando chegava a noite. Rousseau, o genebrino Jean-Jacques, deixou para publicação póstuma e inacabada, as Rêveries du promeneur solitaire. Como ele, também eu sou um passeante solitário. Como ele, também eu sou acometido por rêveries, mas são tão insípidas que logo as esqueço. Se um acaso me proporciona alguma meditação que poderia partilhar com o mundo, o facto de não a poder prender em mim faz com que ela se desvaneça. Poderia gravá-la no telemóvel enquanto ia caminhando, mas temo que achem que enlouqueci e chamem uma ambulância para me internar. Assim, finjo que vou concentrado nos caminhos, mas deixo a mente perdida em fantasias de pouco relevo. Chegado a casa, sento-me e tudo se apaga, como se fosse um sonho nocturno que o espírito, pela manhã, recorda, mas que logo se apaga. Estou pouco inspirado, vou continuar a minha leitura. Sua Alteza Real, Nicolau Henrique, anda a arrastar a asa à menina Imma Spoelmann. Será que a Fraülein se disporá a abrir o coração ao arrastador? Tenho ainda umas dezenas de páginas para o saber. Não se trata de uma novela de má fama, mas do romance Sua Alteza Real, de Thomas Mann, onde, perante os olhos do leitor, a velha aristocracia perde o sentido da sua existência. Coisa que acontece a tudo o que existe. Primeiro perde o sentido e depois a própria existência.
quinta-feira, 16 de novembro de 2023
Uma mulher
Aos sessenta e nove anos era uma bela mulher, o tempo poupara-a e a pele ainda não cedera ao poder das rugas. Vejo-o numa fotografia. Contemplo longamente os seus olhos azuis, a pele branca, o cabelo cendrado. No rosto, há vestígios de um calvinismo que o tempo não terá conseguido apagar e nos olhos uma hesitação entre a melancolia e a altivez. Imagino-a alta e fantasio os olhares dos homens que, ao passar, ela prende, mesmo quando os setenta anos lhe batem à porta. Descubro que a infância e a adolescência não terão sido fáceis, o mundo nem sempre é afável para com as pessoas, mesmo se lhes foi dado o dom da beleza. Olho pela janela do escritório, descubro que o Verão de S. Martinho acabou, e o dia repousa na cinza outonal que cobre a cidade. As folhas das acácias entregam o verde que as cobria num amarelo cor de limão. Tinha um compromisso às duas e meia da tarde, mas adormeci. Quando acordei, sorri e, em vez de ver no caso uma humilhação trazida pela idade, julguei que o meu corpo inclinado para o sono era muito mais sensato que a minha razão submissa a obrigações. Volto à fotografia e imagino aquela mulher aos quarenta anos ou no dia em que comemorou os vinte. De súbito, descubro-lhe, no devaneio, os traços de Eduína, essa amiga que me deixou em herança três cadernos escritos que vou lendo muito lentamente, com a relutância de quem é tocado pelo pudor perante os segredos dos outros, mesmo que a herança seja uma forma de confissão.
quarta-feira, 15 de novembro de 2023
Pôr-se a caminho
Devia pegar em mim e pôr-me a caminho. Melhor, pôr-me no caminho, que é o sítio onde se caminha, o que, consta, faz bem à saúde. Talvez ainda seja cedo para que a caminhada tenha uma tonalidade romântica. Um pouco mais tarde e poderei dizer caminhei ao crepúsculo. Para adensar o romantismo poderei mesmo dizer um ser crepuscular caminha ao crepúsculo. A preguiça, contudo, diminui-me a veia romântica e deixo-me estar sentado, enquanto a soprano Ingrid Kappelle, acompanhada pelo pianista Håkon Austbø, canta melodias de Olivier Messiaen. Recordo-me bem qual foi a primeira peça que ouvi do compositor francês. A sinfonia Turangalîla, mais tarde fascinou-me o Quatuor Pour la Fin du Temps. Desconfio que Messiaen é muito mais forte do que a ideia de caminhar. Fico sentado, a música, como o tempo, esvai-se, e eu deslizo com ela e com o tempo para esse lugar onde todas as caminhadas encontram a sua meta. Observo as metamorfoses do céu, a declinação da luz, o crescer das sombras à procura da escuridão que lhes trará a paz da noite. Hoje já tive a minha dose de videoconferências, pratiquei com afinco aquilo que não leva a lado nenhum. Para ser mais exacto, tornei-me num asceta da inutilidade. Por vezes, considero que falhei a existência. Deveria ter dado em trapista ou cartuxo. O problema, porém, é que teria de renunciar à minha condição de narrador e no caso plausível de optar pela Cartuxa, deveria cultivar o silêncio. Isso seria um bem para o mundo, menos uns disparates lançados por aí, mas talvez um mal para mim, pois narrar é libertar-me das ideias absurdas que se desenham na minha alma. Escolhendo o silêncio, o absurdo acumular-se-ia em mim e correria o risco de explodir. Um espectáculo degradante. Vou caminhar e levo o Messiaen no telemóvel.
terça-feira, 14 de novembro de 2023
Tarde de Verão
Tarde é o que nunca vem. Eis uma sensata expressão da sabedoria popular. Ora, o famoso Verão de S. Martinho acabou por chegar, trazendo sobre a cidade uma luz viva, apesar de esbranquiçada. Faltou ao encontro marcado com o dia de festejo do santo, mas veio em silêncio como se não fosse nada com ele. Estamos perante um caso de manifesta subversão na hierarquia dos poderes celestes. S. Martinho terá descido nela, mas talvez não tanto quanto se pensava. É preciso estar atento aos sinais e praticar com cuidado uma hermenêutica rigorosa e atenta ao conflito das interpretações. Aproveitando uma aberta nos afazeres, desloquei-me a uma loja que também vende livros para levantar dois que tinha encomendado online. Em frente do estabelecimento comercial há um bar que vende uns óptimos pastéis de nata. Dirigi-me a ele, antes de ir buscar os livros, mas não estava ninguém por detrás do balcão. Fui buscar os livros e voltei. Ninguém, apenas uns belos pastéis de nata a rirem-se para mim. Esperei um pouco, e descubro um papel no balcão dizendo: Peço desculpa, volto já. Aceitei as desculpas, esperei mais, mas quem devia voltar não voltou. Fui-me embora. Que hermenêutica fazer destes acontecimentos? Que não devo comer pastéis de nata? Que não os devo comer quando compro livros? Que não devo comprar livros? É isto que se chama conflito das interpretações. Há outras hipóteses que não eliminam estas. Por exemplo, o funcionário foi abduzido por extraterrestres para lhes ensinar como se vendem pastéis de nata. Outra hipótese é ter desistido do emprego e, para mascarar a situação, deixou aquele aviso. Temendo que ele tenha sido mesmo abduzido, passado um minuto, fui-me embora, antes que os extraterrestres voltassem e me levassem a mim para lhes explicar o que é o gosto de um pastel de nata. Uma decisão sábia, pois não fui abduzido e posso estar agora a narrar estes acontecimentos. E os livros? Bem, julgo que os extraterrestres já passaram a fase da leitura de livros e pouco interessados estariam em Irène Némirovsky ou Henrik Pontoppidan. Está uma tarde de Verão. De S. Martinho, claro.
segunda-feira, 13 de novembro de 2023
Peroração
Desconfio que me precipitei no retorno a estas tristes publicações. Os afazeres acabam sempre por se avantajar, até ao ponto em que olhamos para eles e vemos gigantescos monstros. Um dia cheio e ainda não acabou. Só há pouco pude dar uma vista de olhos pela informação, o que contraria a prédica de George Wilhelm Friedrich Hegel, que não se coibiu de afirmar que a leitura do jornal é a oração da manhã do homem moderno. Imagino, no meu caso, que talvez não seja um homem moderno, talvez nem um homem, mas apenas um simulacro de ser humano. A quem oraria esse homem moderno ao ler o jornal, a que deus? Ao Espírito do Tempo, ao Espírito do Mundo? E que tipo de oração seria essa, uma oração peticionária? Como se vê, é sempre possível encontrar mil enigmas por baixo de cada pedra que, por distracção, pontapeamos no meio da rua. Magoamos os dedos do pé, mas, em contrapartida, somos assaltados por mil questões que, se as resolvermos, nos trarão a fama entre os sábios e a glória do mundo. Por hoje chega de peroração. Interlúdio musical.
domingo, 12 de novembro de 2023
Início de noite
O Outono progride invernoso, deixa um rasto de melancolia nos céus e abre as almas, no caso de existirem, à sofreguidão da tristeza. Esta é sôfrega de lutos e pesares, ávida de dores, para poder compor um ramo de crisântemos que irá deixar nalgum lugar onde a morte seja objecto de culto, com as suas procissões de flagelantes e rituais de abominação das alegrias da vida. Retomei o gosto da hipérbole, como se tivesse uma recaída num vício por vezes serenado, mas que continua a espreitar o momento em que se pode manifestar e mostrar o império que tem sobre o paciente. Imagino que para me irmanar com o espírito do dia, deixo correr, na aparelhagem, a voz de Charles Aznavour, também ela tocada pelo vírus do desgosto, Que c'est triste Venise au temps des amours mortes / Que c'est triste Venise quand on ne s'aime plus. Não é, porém, a canção do cantor franco-arménio, de que mais gosto. Essa tem outro espírito, como se pode ver : La bohème, la bohème / Ça voulait dire on est heureux / La bohème, la bohème / Nous ne mangions qu'un jour sur deux. Não é que seja dado à boémia, mas isto é o retrato de um tempo e de uma geração que, não sendo a minha, ainda me tocou. Nunca fui sensível ao rock, mas sempre gostei de uma certa música francesa. Hoje nem se sabe que os franceses também cantam. A noite caiu, e calado Aznavour, mudo de agulha. Oiço Dietrich Fischer-Dieskau e Alfred Brendel, no ciclo Die Winterreise. Isso está a impedir-me de voltar para Sua Alteza Real, um romance de Thomas Mann, na velha edição da Portugália Editora. Um início de noite mergulhado no espírito germânico. Talvez não seja a melhor opção, mas é o que se consegue.
sábado, 11 de novembro de 2023
Mudanças no poder
Nem os santos têm já mão no mundo. Pertenço a um tempo em que S. Martinho tinha uma prerrogativa, imagino que dada pelos céus, e enviava, com a cumplicidade alegre de S. Pedro, o CEO da meteorologia, um Verão merecedor da minha aprovação e estima, eu que raramente aprovo a estiagem e não lhe dedico qualquer admiração. Com o passar dos anos e dos séculos, esse Verão, de súbito incrustado no meio do Outono, acabou por tomar o nome do santo. Verão de S. Martinho. Tempo de castanhas e água-pé, mas também há quem prefira jeropiga, embora nada nessas bebidas exerça sobre mim qualquer atracção. Este ano, porém, os poderes mágicos de S. Matinho foram escassos e o Outono destes dias parece Inverno, com chuva e aguaceiros, o que pode estragar a festa de um concelho deste Ribatejo onde vejo passar os dias que me foram dados. No Ribatejo, note-se, e não no tal concelho festivo. Imagino que na corte celestial tenha havido alguma remodelação, uma tempestade política, e os poderes influenciadores do destino do mundo tenham uma nova figura, na qual S. Martinho perdeu capacidade para defender as suas causas. Seja como for, não estou disposto a ser conivente com essa vil despromoção e não deixarei de participar num magusto em sua honra. Com castanhas, claro, mas sem água-pé e jeropiga, que serão substituídas por tintos ribatejanos, escolhidos para honrar a memória do santo caído em desgraça, ao que parece. Assim seja.
sexta-feira, 10 de novembro de 2023
Como nascem as monarquias
A criança do lado tem uns óptimos pulmões. Treina-os com frequência e grande empenho. Suspeito que se tornará um déspota na família, submeterá pai e mãe e reinará casa fora. É assim que germinam as monarquias. Alguém nasce com bons pulmões, avança aos gritos, as pessoas vão-se curvando e, a certa altura, as submissas vítimas do tiranete aclamam-no como rei. O que vale muitas vezes é que sua majestade tem de ir à escola e haverá sempre uns colegas mais republicanos que lhe porão um olho não azul, mas verde-rubro. Coisa de republicanos. Poderá acontecer que a parentela de sua majestade, habituada a obedecer-lhe, proteste por o rei não ser reconhecido e tratado como tal, mas nessa altura a questão de regime estará esclarecida. Apesar de estar proibido de falar de política neste lugar, a explicação para emergência das monarquias parece-me uma excelente contribuição para a ciência política e para a história. De resto, não tomo posição nem por monárquicos nem por republicanos, e não se pense que isto é um subterfúgio para esconder uma inclinação anarquista que haja no meu coração. O meu coração é um fiel adepto do leviatã, e não me estou a referir ao monstro bíblico. É um facto que o leviatã pode ter diversas configurações e ser mais ou menos feroz, mas sobre as minhas predilecções nada digo, pois isso seria entrar em confidências que me estão vedadas, e eu sempre dispensei fazer ou ouvir confidências. Não por algum tendência para misantropia, mas por uma questão de pudor. Admiro o meu amigo padre Lodo, pois com a idade que tem, ainda se senta no confessionário para ouvir sabe-se lá o quê, sem alguma vez, nas nossas longas conversas, ter sugerido que aquilo o perturba. O futuro rei calou-se, entretanto. Algum pajem lhe satisfez o capricho, presumo.
quinta-feira, 9 de novembro de 2023
Uma vantagem
Abro ao acaso uma revista, a última Electra, e deparo-me com uma fotografia de Martin Heidegger. Está à janela da famosa cabana de Todtnauberg, na Floresta Negra. Mais do que o eventual génio, vejo ali a aproximação dos oitenta anos. Olha para os caminhos que levam a lado nenhum, vestido com um pulôver, entre o cinzento e o azul, sobre uma camisa branca com gravata cor de vinho. No pulso esquerdo, sob a manga da camisa, desponta um relógio, mas é impossível ver as horas. Não consigo perceber se a luz que ilumina a cena é natural ou a de um flash da máquina fotográfica. Dos olhos não vem sombra de pensamento profundo e no modo como pousa a mão no parapeito de madeira não se vê vestígio do triste discurso do reitorado. Estávamos em 1968, um ano de grandes convulsões, mas atrás do filósofo só se vê escuridão. Um dia também estive junto daquela cabana. Levou-me lá não a prestação de um tributo a um mestre, pois não faz parte das minhas afinidades electivas, mas porque Schwarzwald, Floresta Negra, me tocava a imaginação. Exceptuando a cabana, onde ainda havia, e presumo que haja, reuniões para discutir a obra do antigo proprietário, não vi outros sinais do filósofo. É possível que não os tenha procurado, que me tenha desviado por aqueles caminhos que, segundo ele, levam a lado nenhum, ou, para ser mais exacto, ao não trilhado. Isto, porém, é ficção minha. Todos os caminhos que percorri tinham já sido trilhados vezes sem conta, pois a minha natureza não é a de um inovador ou a de um explorador, mas apenas a de um homem da tradição, embora sem o zelo necessário para cuidar dela. Anoitece, Heidegger continua a sorrir-me na sua fotografia de 1968, sem saber que eu tenho uma vantagem sobre ele. Sei quem ele é, mas ele nunca saberá quem eu sou.
quarta-feira, 8 de novembro de 2023
Rolar a pedra
Continuo preso ao breviário dos pequenos afazeres. Repetem-se e repetem-se sem parar, sem que se vislumbre a promessa de um fim, a não ser aquele de que não há retorno. Isso transporta-me para o destino de Sísifo. Rolar a pedra até ao cimo da montanha sem nunca lá chegar, para, a cada insucesso, tornar a tentar. Há uma fascinação humana pelo eterno retorno do mesmo. Construir hábitos é uma forma de solidificar em nós essa estrutura de retorno, para que pensemos que, ao fazer uma certa coisa idêntica à que fizemos ontem, pensemos que também nos mantemos idênticos. O hábito, como expressão do eterno retorno do mesmo, é um truque que me permite dizer que eu sou eu, que o nome ao qual respondo assegura que aquele que responde é sempre o mesmo. Eis, porém, um problema que aqui não tenho. O anonimato evita-me essa ilusão, o que também pode ser o indício de que estou destituído de hábitos e, muito plausivelmente, aquele que escreve estes textos nunca é o mesmo. Este vazio de denominação tem a vantagem de poder ser preenchido por qualquer nome, mesmo por aqueles que me seriam os mais repugnantes. Não me apetece, por hoje, falar de repugnância. Chove, a tarde refastelou-se na cinza-chumbo de nuvens iradas como quem descansa numa chaise-longue, e eu, na minha faceta de Sísifo, tenho de continuar a rolar a pedra até ao cume da montanha, mas, já o sei, faltar-me-ão as forças para lá chegar. Amanhã serei outro. Outro Sísifo, entenda-se.
terça-feira, 7 de novembro de 2023
Da invasão da noite
Os dias continuam a decrescer. A noite invade o dia e começa a escurecê-lo por dentro, lançando rajadas de nuvens negras, erguendo cortinas espessas para que a luz seja sustida e evite que a tarde encontre um alento para resistir ao avanço do exército das trevas. Pequenos afazeres pontuam-me as horas. Recolho-os e guardo-os num caderno, como se, de súbito, nascesse em mim uma alma de botânico que me levasse a criar um herbário. Vista da janela, a esta hora, a cidade parece-me um pântano, mas há muito que deixei de confiar nos meus olhos. Vejo uma coisa, mas a coisa é outra, como se a realidade estivesse apostada em iludir-me. Nos bolsos encontro algumas moedas e fico perplexo. Interrogo-me sobre o que estarão ali a fazer, por que razão foram lá parar. Não encontro resposta. Chegará o dia em que um ser humano perguntará para que servem aqueles objectos, cujo nome desconhece. Perdida a função, a memória desaparece, penso não sem uma certa melancolia, pois sinto que também eu estou a caminho de desaparecer das memórias dos outros, agora que a minha função corre para o fim. Somos seres funcionais e perdida a função passamos à categoria de descartáveis. Não faltaram, ao longo da história, tentativas para nos resgatar da funcionalidade, para nos investir com um halo que nos assegurasse a persistência, mas tudo em vão, tantos esforços que conduziram a nada. Somos seres para o esquecimento, coisa pior do que sermos seres para a morte. Ainda bem que é assim, oiço-me dizer. Quem suportaria trazer em si a memória de todos os seus antepassados? Ninguém. O culto da genealogia parece contradizer a minha presunção, mas só na aparência. Por longe que se vá na linha dos ascendentes, será ainda uma viagem muito curta e, não poucas vezes, equívoca. Volto para a lassidão dos meus afazeres.
segunda-feira, 6 de novembro de 2023
Publicidade
Imaginemos uma agência de viagens desejosa de atrair clientes para destinos turísticos desafiantes. Imaginemos ainda que esta semana pretende vender como destino um certo país que, por acaso, é uma ilha. Nos folhetos de promoção, pois a agência ainda opera com papel, mas também no site, o leitor encontra a seguinte descrição publicitária: Mas este país é uma ilha, a que a própria natureza impõe leis imutáveis. É a terra da verdade (um nome aliciante) rodeada de um largo e proceloso oceano, verdadeiro domínio da aparência, onde muitos bancos de neblina e muitos gelos a ponto de derreterem, dão a ilusão de novas terras e constantemente ludibriam, com falazes esperanças, o navegante que sonha com descobertas, enredando-o em aventuras, de que nunca consegue desistir nem jamais levar a cabo. É possível que antes de querer saber mais sobre esse país-ilha, se interrogue sobre o publicitário que escreveu o texto. Sem saber a resposta, entrega-se a um longo devaneio sobre como atravessar aquele oceano proceloso, como abrir caminho pela neblina e como evitar o gelo traiçoeiro, para não se deixar enganar por falsas terras e poder chegar são e salvo a esse país verdadeiro, onde poderá admirar a constância das leis e passar umas sossegadas férias sem temer o bulício da mudança e os alvissareiros da novidade. A sua imaginação fica presa naquelas esperanças falazes e nas aventuras que há-de querer viver, e que o publicitário, para estimular o desejo da viagem e os lucros da agência, lhe diz que nunca será capaz de levar a cabo. Pois aquilo que os homens mais amam, eis uma generalização miserável, são as coisas impossíveis, pois das possíveis depressa se cansam. Ora, é na página 257 da Crítica da Razão Pura, que Kant, o publicitário, anuncia esse país do entendimento puro, que ele terá percorrido. Aquilo que ele lá fez, omito-o aqui, mas estou certo de que qualquer viageiro inclinado para a aventura, ao ler a publicidade desse país, fica a sonhar com oceanos procelosos e aventuras de que nunca desistirá e que, pela força da sua vontade e indústria da sua inteligência, como Ulisses, há-de levar a cabo para se encontrar, nessa ilha, com a amada Penélope e matar, com o vigor do seu braço, os incautos pretendentes.
domingo, 5 de novembro de 2023
O velho château
Olho para a rua e penso que o Advento se aproxima. Falta menos de um mês. Não sei, todavia, o que na luz suspensa sobre a cidade me fez lembrar essa época do calendário religioso. Vivemos num tempo em que os calendários religiosos se tornaram assuntos privados e deixaram de regular o ritmo dos dias, dando um sentido comunitário à passagem do tempo. Talvez não seja possível ter tudo. Ganhar liberdade em relação ao peso das tradições e manter um tempo diferenciado, um tempo que se arranca à monotonia rasa e insípida da passagem inexorável dos dias. Até os ritmos da natureza parecem perder a sua capacidade diferenciadora. Por estes dias, ocupo as horas de insónia com a leitura de Au Château d’Argol, o primeiro romance de Julien Gracq, pseudónimo de Louis Poirier. Argol é uma aldeia na Bretanha, mas, para desconsolo de eventuais cultores de Gracq, não possui qualquer château. A palavra deve traduzir-se por palácio e não por castelo, penso. Enquanto vou lendo, pergunto-me, nalgum momento de desatenção, como foi possível nunca ter lido Julien Gracq. Só há umas semanas entrei naquele universo. Mais valia ter lido Gracq na juventude do que Sartre, mas isto é uma constatação de quem já perdeu a juventude há muito. Uma presunção sobre o que deveria ter sido o passado. Uma das coisas que me agrada na escrita de Gracq poderá contribuir para que o universo dos seus leitores não seja excessivamente grande. Mais do que narrar, ele descreve. Descreve paisagens, não tivesse ele cursado Geografia, descreve construções humanas, descreve pensamento, emoções. Mesmo as acções e os diálogos, o que constituiria a trama romanesca, são apresentados em forma de descrição. Tudo se torna paisagem e um romance é a construção de um mapa. Não de uma carta que representa um território, abstraindo as paisagens, mas uma que institui todos os territórios, interiores e exteriores, numa paisagem luxuriante feita de palavras, frases, parágrafos enormes. Olho de novo para a rua e a sensação de aproximação do Advento continua viva. Penso que um dia irei a Argol e procurarei o château que nunca existiu, mas que está à minha espera, pois aquilo que nos espera só chega à existência quando o encontramos. Começou a chover e tenho a súbita necessidade de saber se em Argol também chove. Um site meteorológico diz-me que sim. Ao longe, ergue-se para os meus olhos o velho château.
sábado, 4 de novembro de 2023
Do prazer estético
domingo, 22 de outubro de 2023
segunda-feira, 16 de outubro de 2023
Poluir as almas
Passo os olhos pela imprensa, nacional e internacional, a guerra entre Israel e Hamas é apresentada como se fosse um jogo de futebol. Não é caso único. Só falta montarem um sistema de apostas. A comunicação social tem um enorme poder de degradação. Ela dirige-se à massa e explora as pulsões mais baixas que habitam os homens. Fá-lo com grande avidez, pois parece ser difícil viver de informação rigorosa, contida nos limites da decência, mostrando perspectivas rivais, não através de emoções, mas de razões. A ideia reguladora, vinda do Iluminismo, de uma esfera pública assente em informação séria caiu às mãos da exploração das paixões e das afecções para assegurar audiências. Muitas vezes apresentada como o quarto poder, a comunicação social não percebeu que o seu poder é um poder de degradação. Degradação de si mesma, das instituições, mas também das pessoas, da alma das pessoas. Uma guerra não é uma competição desportiva, as metáforas a usar terão de ser diferentes. De preferência, a linguagem deveria ser o mais objectiva possível e evitar o tropo que incendeia a imaginação. Apresentar a guerra como um jogo de futebol é banalizar a guerra. Um exemplo da banalização é o aviso que locutores de televisão fazem: chamo a atenção para a violência das imagens. Estão a falsificar a realidade. As imagens são apenas imagens, como as do cinema ou das séries, nelas a violência está rasurada, pois quem vê a imagem não está em contacto com a realidade. A exibição serve apenas para degradar o espectador, para lhe produzir uma emoção instantânea que será de imediato substituída por uma outra emoção, talvez de um jogo de futebol ou do assalto à ourivesaria da esquina. Um trabalho que nunca acaba de poluir as almas, para utilizar uma palavra caída em desuso.
domingo, 15 de outubro de 2023
O peso do ambiente
Conforme vou lendo o romance, mais ele me recorda O Deserto dos Tártaros, de Dino Buzzati. Refiro-me a A Costa das Sirtes, de Julien Gracq, na tradução de Pedro Tamen. Há na obra qualquer coisa de espantoso. Não se trata da intriga que compõe uma geopolítica imaginária, coisa que podemos encontrar em Ernst Jünger, mas o poder descritivo de Gracq. Muito mais do que pelo diálogo e pelas cenas de acção, é através da descrição das geografias interiores dos protagonistas e das geografias exteriores – sejam edifícios, como o almirantado, sejam as paisagens onde se desenrola a acção romanesca – que o romance se vai desenvolvendo. O uso sistemático da descrição visa criar uma ambiência e, a certa altura, o leitor pergunta-se, tal como em O Deserto dos Tártaros, se não será essa ambiência a verdadeira protagonista da narrativa. O romance moderno, na sequência da afirmação da subjectividade e da descoberta do indivíduo, centra-se em heróis ou anti-heróis, agentes autónomos que buscam os seus fins. O que pode ter ficado de lado no deslumbramento moderno com o indivíduo é a dependência dos protagonistas do ambiente onde vivem, o qual os trabalha e os conduz para que realizem certas acções que não estavam nos seus desejos, mas às quais não puderam escapar. Foi isso que a leitura do primeiro terço do romance me fez pensar. Pode ser, não o nego, o efeito de ler durante as horas de sono. Não é inverosímil que a compreensão da obra esteja a ser afectada pela rêverie que aquelas horas de insónia sempre proporcionam.
sábado, 14 de outubro de 2023
Naturezas mortas
sexta-feira, 13 de outubro de 2023
Libertação
Os dias úteis desta semana dediquei-os a auscultar as minhas possibilidades literárias em diversos géneros. Comecei pelo apocalipse, passei para as teorias da conspiração, espreitei o gag humorístico, experimentei a reflexão filosófica. Tudo debalde. O melhor que consegui foi uma ou outra frase kitsch. Contudo, tal como estão os tempos, o género literário mais urgente é o profético. Dedicar-se à profecia é penetrar no inexistente para encontrar o que ali existe e, depois, como um Papa, anunciá-lo urbi et orbi. Não estou a dizer que os Papas são profetas, apenas que fazem proclamações à cidade e ao mundo. Sofro de uma limitação que impede a dedicação a esse género literário. Cada vez que penetro no inexistente deparo-me com o nada. Isso prova que não tenho um dom para a profecia. O inexistente não é outra coisa senão o futuro. Como vivemos sempre no presente, o futuro é coisa que está para vir, mas que ainda não veio, e não veio porque ainda não existe. Pode-se argumentar contra esta ideia. Imagine-se o seguinte. Alguém está num café à espera de outra pessoa, digamos o amador espera a coisa amada. Enquanto ele espera, ela ainda não chegou, a sua chegada será no futuro e a própria coisa amada é uma promessa que virá no futuro. Isso, porém, não significa que ela, a coisa amada, não exista. Existe. Portanto, há coisas que existem no futuro. Talvez os profetas sejam amadores de grande perspicácia e não se importem de esperar no café que chegue até eles aquilo que está no futuro. Há muito que deixei de frequentar cafés e ainda há mais tempo que deixei de esperar neles que alguma coisa me chegasse vinda do futuro. Tudo tem o seu tempo e o meu tempo de profeta, na duvidosa circunstância de o ter tido, passou. Vale-me hoje ser sexta-feira, fim dos dias úteis desta semana. Libertei-me desta auscultação das minhas possibilidades literárias.
quinta-feira, 12 de outubro de 2023
Preocupações
Preocupa-me, a sério que me preocupa, o mundo. Não o que se passa na Terra, mas no mundo como totalidade. O que me tem estragado o dia é a indecisão em que a minha mente caiu. Será que o mundo teve um começo ou é eterno? Se ele teve um começo, o mais plausível pensar é que terá um fim. Se o mundo tiver um fim, o que poderá acontecer? A resposta mais óbvia é: não vai acontecer nada, pois nada existe que possa sofrer modificação e assim se possa falar de um acontecimento. Se, porém, o mundo é eterno, então instala-se uma monotonia sem fim, pois os acontecimentos sucedem-se sem parar, e por diferentes que sejam, o próprio suceder torna-se monótono. A princípio pode-se achar graça, as pessoas sentem-se num filme de acção onde sempre se passa qualquer coisa de vibrante, mas se o filme tiver mais de duas horas, o espectador começa a mexer-se na cadeira, cansado de tanta acção e deseja que o filme tenha um rápido fim. É isso que acontece connosco, seres humanos. A história do mundo começa a cansar-nos, o trepidar sem fim dos eventos exaure-nos a paciência. É por isso que morremos. A morte deriva directamente da eternidade do mundo, é uma defesa contra a monotonia que uma existência eterna sofreria perante um mundo sem começo nem fim. Pode-se argumentar, e haverá quem o faço, que essa explicação da mortalidade humana só faz sentido caso o mundo seja eterno, mas se não for? Neste caso a explicação muda, claro. Muda porque as condições também são diferentes. Morremos por solidariedade com o mundo. Sendo ele finito, não faria sentido que nós não nos irmanássemos no seu destino, antecipando-o, para dar coragem a esse mundo que um dia irá acabar. Não consegui resolver o dilema sobre se o mundo teve um começo ou se será eterno, mas encontrei duas explicações irrefutáveis sobre a mortalidade humana. Este é o meu contributo semanal para o progresso do conhecimento no mundo.
quarta-feira, 11 de outubro de 2023
Kitsch
Existe uma escala de degradação das aptidões escriturárias. Há dois dias vi que me faltava talento para escrever apocalipses. Ontem baixei a fasquia, mas também não tenho capacidade para ser um escritor de teorias da conspiração. Hoje analiso se tenho poder para escrever piadas, daquelas que são idiotas, mas que fazem rir as pessoas. Ora, escrever uma coisa idiota não me é difícil, mas não faz rir ninguém. Nunca inventei uma anedota e não uso o chiste, a ironia está-me vedada por natureza, natureza minha. É deprimente, mas esta é a verdade. Se escrever tragédias nunca me ocorreu por razões óbvios, podia ser que escrevesse comédias, não comédias a sério, mas uns pequenos gags para animar a conversa em grupo. Nada, porém, me ocorre, falta-me a finesse d’esprit orientada para a ironia. Isto transportou-me para uma experiência cinematográfica dos últimos dias. Vi diversos filmes de Nanni Moretti. Estes podem dividir-se em dois géneros. O drama, onde Moretti actor e os filmes que faz são tensos, e o filme político. E é este o mais interessante para o assunto de hoje. São comédias, onde somos levados a rir da personagem, das suas convicções, do modo como ela se relaciona com as ideias que tem sobre o mundo. Não se está perante um clown, mas diante de um exercício de relativização das crenças que talvez tenha a sua raiz em Cervantes, descobrindo-se uma personagem quixotesca no lugar de um militante cego pelo sol das suas convicções. Esta última frase era dispensável, mas não resisti a um bocadinho de kitsch. Voltando ao meu caso, incapacitado para o gag, estou confrontado com a realidade. Restam-me as frases kitsch, como a que diz o crepúsculo enovela-se sobre si mesmo, abrindo o caminho por onde passarão os cavalos da noite.