Quase no início do seu livro sobre Constantinopla, Théophile Gautier assevera que “para se viajar num
país é preciso ser-se estrangeiro: é a comparação das diferenças que produz as
observações”. Será também isso válido para as cidades? Como poderei observar a
cidade – o castelo, a praça 5 de Outubro, a avenida marginal, as águas do
Almonda, o velho casario – já que não sou estrangeiro? Talvez Gautier, quando publicou
o seu livro, não tivesse ainda idade suficiente para perceber uma outra coisa,
para compreender que “o passado é um país estrangeiro: lá, fazem as coisas de modo
diferente” (Leslie P. Hartley, Go-Between).
E é assim, por ser alguém mais do passado do que do presente, que me sinto
estrangeiro na minha própria cidade, caminho por ela e as observações nascem da
comparação entre essas duas pátrias que o tempo afasta irremediavelmente uma da
outra. A avenida, com os seus castanheiros e o jardim a bordejar o rio, já não
é a mesma avenida, nem a Praça que há pouco vi é a mesma praça que frequentei
há muitos anos. Vim desse passado, onde as coisas se faziam do modo diferente,
e por isso sou cada vez mais um estrangeiro. É só uma questão de tempo para que
qualquer um se torne estrangeiro na sua própria terra.
sexta-feira, 7 de setembro de 2018
quinta-feira, 6 de setembro de 2018
As lentes Mercedes
Um oftalmologista desavisado decidiu
receitar-me óculos com lentes progressivas e assim substituir os três pares de
óculos que compunham a minha colecção. Uns para ler, outros para o computador e
outros ainda para ver ao longe. Ainda argumentei que, provavelmente, não me
iria dar bem com a progressividade – ou o progressismo – das lentes, mas ele
insistiu, perorou sobre as manobras que tinha de fazer para gerir tantos
óculos, e eu cedi. Vendo-me vencido acrescentou que tinham de ser umas lentes
de uma certa marca especial e não dessas que saem mais em conta. Deu uma
explicação técnica que me soou como se fosse chinês. Vendo o meu ar incrédulo
ou estúpido, disse-me: olhe, é como comparar um Mercedes com um Renault 5. Num
Renault 5 também vai a Lisboa, mas não é a mesma coisa. Pois não, assenti,
entre divertido e ingénuo, imaginando-me já a conduzir umas lentes topo de gama.
E lá comprei os óculos com lentes tipo Mercedes. O resultado nunca deixa de me
espantar. Se quero ler, deixo o Mercedes na garagem e vou num velho Renault 5, de
lentes riscadas e que só serve para ver ao pé. O pior, porém, não é isso. Há
pouco decidi ir de lentes Mercedes à rua e pensei que tinha enlouquecido. O que
era uma rua normal, agora parecia-me estar cheia de crateras. Ao avançar, via
um grande desnível, calibrava o pé para esse desnível, mas não havia cratera
nenhuma e o passo saía em falso. Por duas vezes ia caindo, enquanto tentava
andar sem espreitar para o chão. Ao fim de cinco minutos, decidi que o melhor
era pôr os óculos de lentes Mercedes de lado e andar mesmo a pé. A viagem é
mais segura e Torres Novas deixou de me parecer uma cidade da Síria após um
bombardeamento.
quarta-feira, 5 de setembro de 2018
As horas
Hoje, ao atravessar a cidade, senti-me perplexo, como se, de
um momento para o outro, me tivesse perdido em ruas que percorri vezes sem
conta. Quando, passados instantes, recuperei o sentido de orientação, não
deixei de me interrogar sobre a razão desta súbita incongruência. As coisas
aqui quase não mudam e quando o fazem é porque se tornam decrépitas. Deixa-se o
tempo marchar sorrateiro sobre as casas e estas, lentamente, começam a
desfazer-se, sem que ninguém dê por isso. Então, tudo se torna tão irreal que,
mesmo o mais sólido dos seres humanos, não resiste e se perde no poço fundo
daquilo que conhece, esse abismo onde a memória se esfarela e se entrega a
corrupção trazida pelas horas, essas deusas vingativas que não largam os homens
e as suas pequenas obras.
terça-feira, 4 de setembro de 2018
Visco
O dia está viscoso, concedi, ao sentir o ar da rua tocar-me
a pele. De imediato se formou uma associação. Esse visco que adere aos corpos é
uma armadilha para capturar que tipo de aves? Será que ainda se sabe que se
utilizava visco para apanhar pequenos pássaros, os quais, de pés colados à
mistela, se entregavam não sem resignação ao destino? Não é que eu o tenha
feito, pois nunca fui dado à ornitologia ou mesmo a qualquer interesse pelo
mundo dos animais, mas havia quem se entretivesse a capturar, com esse ardil de
passarinheiro, pequenas aves. O destino destas nunca o soube. Uma coisa sensata
a de evitar excesso de informação sobre coisas que não nos dizem respeito. E,
perdido nestes pensamento, fui-me encaminhando para uma superfície comercial,
uma daquelas que enxameiam a cidade, cruzando-me com gente desconhecida, o que
me levou à constatação de que são cada vez menos as pessoas que conheço. Entrei
por uma daquelas portas que, guiada por um olho inexorável nascido do cérebro
de um bisneto de Bentham, abrem automaticamente. Fui apanhado pelo visco.
Afinal, o pássaro a capturar era eu, pensei não sem resignada condescendência
para com o meu destino.
segunda-feira, 3 de setembro de 2018
A realidade
Cheguei à janela e pensei: um tempo de tréguas. Até as ruas
me pareceram mais belas sob a luz cinzenta da manhã. Os carros, de vidros abertos,
passavam lentos, como se os condutores não quisessem perder o fresco que caía. Os
peões moviam-se com uma rapidez inesperada, numa cadência que só a sensatez da
meteorologia permite. Um belo dia, disse para comigo. E voltei para aquilo que
me ocupa. Sentei-me, mas como muitas vezes acontece, os olhos fecharam-se e um
mundo tecido de imagens assalta-me antes mesmo que tenha a possibilidade de o
enxotar para longe. Vejo carros que já não existem, pessoas que morreram há
muito, a velha ponte do Raro ainda sem o infeliz acrescento que a atormenta. E
ali, no meio dela, lá vou eu, sem pressa. Sei que pararei na montra de uma loja
e ficarei a olhar a capa dos livros que, contra a ordem das coisas, ali estarão.
Uma camionete dos Claras passa, largando uma baforada de fumo negra. Tusso e o
cheiro desperta-me. A realidade, em cima da secretária, espera impaciente por
mim. Não há coisa mais irreal do que a realidade, rosnei.
domingo, 2 de setembro de 2018
Um progresso
Felizes são os domingos que esquecemos que o são. Surgem
como uma manhã fresca, absortos e anónimos, para declinarem na preguiça das
horas. A segunda-feira será ainda uma espécie de limbo até que, cansado de
benevolência, o deus abrirá as portas do inferno. Outrora, as pessoas
endomingavam-se. Iam à missa, as que iam, algumas ao futebol ou ao cinema. Era
um tempo severo e as possibilidades de distracção, parcas. Quem viveu esses
tempos, percorre as ruas da antiga vila e imagina que, naqueles dias, era
feliz. Talvez fosse, talvez não. Muitas vezes confundimos a felicidade com a
escassez de anos, ou imaginamos que uma bravata juvenil é um feito só possível
naqueles tempos heróicos, que não voltarão. A passagem dos anos favorece a
tendência para a mitologia, torna até o mais insípido dos homens num mestre
contista, mas a realidade, com o peso do calcário, não deixa de aflorar aos
nossos olhos e de recordar que uma ilusão, por amável que pareça, não deixa
de ser uma ilusão. Seja como for, o facto de os homens se endomingarem menos
não deixa de ser um progresso moral da humanidade.
sábado, 1 de setembro de 2018
Dias assim
Passa pouco do meio-dia e lá fora estão 36o. A
temperatura há-de trepar até aos 40o, vejo anunciado num dos sites
que se tornou, para mim, de leitura obrigatória, o da meteorologia. Setembro,
esse mês em que cheguei aturdido ao mundo, apresentou-se sem máscara nem
misericórdia. Faço figas, penso coisas impróprias, ergo barricadas dentro de
casa, reduzo a luz exterior e só deixo que o mundo entre através do som. É um
universo de rumores, o ronronar dos carros ao longe, algum grito extraviado na
rua, o latido fraco de um cão exausto. Fecho os olhos e vejo o vapor a
evolar-se do alcatrão das ruas. Hoje proíbo-me a visita às janelas e tenho de
inventar aquilo que vejo. Conto as horas para que chegue a noite. Dias assim
são como uma doença. Há que esperar que passem.
sexta-feira, 31 de agosto de 2018
Agosto declina
Agosto chega hoje ao seu último dia. Entrega-se sem acinte
nas mãos de Setembro, mas jura lutar até ao fim. Eu levo-o a sério e deixo-me
tomar por uma nostalgia do tempo frio. A meteorologia promete 38o, o
que denuncia a malévolo intenção que se esconde na beleza do sol matinal. A
cidade está em plena azáfama. Lá em baixo, cortam a relva dos canteiros com um
barulho irritante. A vida nunca é como a desejamos, pensei. Os olhos descaem
para o estranho livro que estou a ler, mas o barulho não desiste. Chego à
janela e vejo um homem de maquineta nas mãos, enquanto o sol toca ao de leve o
cume das árvores que se erguem como uma floresta portátil na escola em frente. A
cidade desliza nos dedos do sol ao som triunfante de um hino da modernidade. Um
concerto para corta relvas e banda magnética, imaginei.
domingo, 17 de junho de 2018
A natureza das coisas
A cidade reencontrou-se com a sua natureza. Um calor seco –
quase que escrevia ‘um calor sórdido’, mas contive-me – caiu sobre as casas e
as ruas, tornando tudo mais lento. Atravessei a antiga vila para uma visita
familiar, mas logo me recolhi em casa. Aproveitei a tarde para acabar de ler Por favor, não matem a cotovia, de
Harper Lee. Nunca tinha lido. Quando as histórias dos Finch se acabaram, pensei
que este era um livro que deveria ter lido há muito, naquele tempo em que as
férias eram exercícios intermináveis e os dias de calor inclinavam o espírito
para a leitura. Há obras que se devem ler ainda num período de certa inocência.
De preferência, em dias de calor, quando estamos encerrados em casa, presos ao
rumor silencioso de uma pequena cidade exausta e de ânimo esvaído pela
inclemência do sol.
domingo, 10 de junho de 2018
A província
Este tempo taciturno cobre a cidade com um espesso véu de
melancolia. Atravessei-a há pouco e pensei que tínhamos sofrido uma regressão
no tempo, pois a tristeza que desce dos céus esbate as cores e dá a tudo um ar
cansado e arcaico. Eu sei que é uma ilusão, pois se tivesse havido uma
regressão tudo seria mais brilhante e animado. Observo os castanheiros da
avenida, a sua floração, este ano, é menos exuberante, penso. Nos passeios, um
ou outro transeunte vai temeroso e apressado. A província é um exercício incansável
de nostalgia e ruínas, a memória sombria de um mundo que acabou há muito.
sexta-feira, 8 de junho de 2018
Precariedade
É tudo tão precário, penso ao saber da morte de alguém que
conhecia. Tento prender o tempo com as mãos, mas ele escorre-me entre os dedos.
Um súbito raio de sol ilumina o casario, há paredes a cintilar, mas as brechas
já fazem o seu caminho, marcham hirtas segundo o calendário da ruína. Se passo
no centro antigo da cidade, o desconsolo inunda-me o olhar. Logo a razão me
aquieta. Também as cidades estão sob o império do tempo. O coração protesta,
mas a tirania que rege a vida é mais inflexível do que aquilo que supomos. Uma
nuvem interpôs-se entre o sol e os meus olhos. Onde havia cintilação há agora
uma cinza suave, secreta, precária. Oiço vozes e elas são já um passado que não
retornará, presas na ruína dos seus próprios sons, destroços de um desejo que o
tempo calará.
Um triste dia
Atravessei a cidade envolto no manto de tristeza que se desprende destes dias de Junho. E tudo me pareceu belo, quase perfeito. As pessoas iam e vinham, os carros trotavam vagarosos pela avenida, o castelo erguido contra o tempo. Oiço alguém a lamentar-se da invernia primaveril, mas vejo-lhe no rosto o prazer deste tempo sem calor, de luz turva, de água leve que desce, hesitante como uma virgem, sobre a terra. O rio, esse velho espelho esfarrapado pelo tempo, devolveu-me a música melancólica que me rumorejava no espírito e eu respirei fundo, certo que também a beleza dessa hora se desvaneceria sem deixar uma sombra, um vestígio no vidro da história.
sábado, 2 de junho de 2018
Junho
Junho chegou e nem dei por Maio se ter ido. Foi sem uma
palavra, envolto em festividades, simulacros de um paraíso que se perdeu para
sempre. Os dias passam por mim, vão rápidos, presunçosos, cheios de eternidade.
Sinto a minha lentidão como uma sombra devorada pelo rancor do tempo. Nas ruas,
os transeuntes apressam-se, a festa aguarda-os no bulício da tarde. Esperam no
calor da multidão mitigar o frio que lhes habita a alma. Se alguém me
interpela, eu calo-me. Não por indelicadeza, mas por não ter nada para dizer.
Um pássaro canta na minha janela. Abro-a, o pássaro voa e o silêncio cai sobre
mim.
sábado, 7 de abril de 2018
Presunção
Não cozinhar pode ser uma virtude, mesmo num tempo em que o
saber fazer alcance elevada cotação no mercado em que todos vivemos. Foi o que
me ocorreu quando entrei num takeaway
e me vi rodeado de gente que me fazia passar pela ilusão de ser novo. E
enquanto as empregadas, com zelo e bonomia, iam despachando encomendas e
satisfazendo caprichos, eu sentia que os que me rodeavam, caso tiver sorte, são
o meu futuro. Quando saí para a ira ventosa da rua, ri-me com a minha
presunção. Não, não são o meu futuro. São o meu presente. Fechei a porta do
carro, pu-lo a trabalhar e o rádio devolveu-me uma oratória de Händel, O
Messias, precisamente. Bem preciso de quem me salve, pensei ao desfazer uma
curva em direcção a casa. A chuva caía lúgubre e hesitante. Mais logo, talvez o
sol rompa a muralha das nuvens. O melhor mesmo, para não cair em metáforas
mortas, seria não pensar, pensei.
sexta-feira, 6 de abril de 2018
Elegia
Estava a ver a chuva e a pensar na cadência de um poema. O
segredo da poesia estará em fazer que o poema encarne o ritmo da língua. Então
ele descerá sobre o espírito como a chuva sobre a terra, umas vezes leve e brando;
outras, exaltado ou melancólico. Hoje, a chuva é uma elegia, cai triste,
dolente, dolorosa, e as pessoas olham-na com compaixão e deixam escapar do rosto
o desejo que ela parta. A cidade arrasta-se no cansaço de uma Primavera ainda
inclinada para o mistério do Inverno. Ah se o ritmo do dia fosse outonal, ainda
seria possível crer no paraíso, segredei a mim mesmo, enquanto voltava costas
ao mundo.
quinta-feira, 5 de abril de 2018
Fidelidade
Ontem, ao passar pela Lagoa de Óbidos, lembrei-me das dores que
atormentaram Agamémnon, ao partir para guerra, tão ansioso do sangue dos
troianos e do prazer da vingança. A certa altura, vi umas velas de windsurf
empurradas sem furor pela brisa vinda do mar, enquanto alguns guerreiros, com a
sabedoria dos juncos, se equilibravam sobre as pranchas. Há muito que não via
gente a praticar windsurf, pensei com tristeza ao olhar o descolorido daquelas
velas. Depois, deu-se um curto-circuito e perguntei-me o que sucederia se o
vento desaparecesse e uma acalmia sem fim caísse sobre a lagoa. Haveria uma
Ifigénia para sacrificar por um Agamémnon exaltado? O carro rolava devagar e
dócil como as asas de uma borboleta ao sol da manhã. Ao perder o bando de
velejadores de vista, logo me esqueci de Ifigénia, de Agamémnon e do cruel
destino que foi o deles. A fidelidade é um exercício difícil, dissertei ao
recordar-me há pouco de tudo isso. O melhor será pensar noutra coisa.
quarta-feira, 4 de abril de 2018
Salvação
Ao fundo, os olhos param nas dunas de Salir. Depois rodam,
rodam e encontram a entrada da baía. O mar, para além do pórtico, está exaltado,
mas tudo na praia permanece tranquilo. Por vezes, vou a S. Martinho do Porto,
nos dias em que suspeito haver por lá pouca gente, e deixo-me cercar pela
lentidão com que as pessoas passeiam pela marginal. Olho as águas paradas, o
balançar quase imperceptível dos barcos, e deixo que o sol caia sobre mim. Ali,
enquanto caminho, posso quase conceber uma teoria da perfeição ou descobrir que
toda a virtude reside na imobilidade. Um pai e uma mãe, com duas crianças e um
cão, talvez alemães, passam por mim. O cão ladra, mas a família segue em
silêncio, ele sorumbático e ela espinafrada, como diria a minha neta mais nova.
E eu silencio-me dentro do silêncio deles. Espero um milagre qualquer, mas ele
não chega. Nunca sei qual é o caminho da salvação.
terça-feira, 3 de abril de 2018
Dias assim
Há dias assim. Ouve-se uma música, Sérgio Godinho e Ivan
Lins, uma nostalgia inútil desce sobre nós e lembra um tempo vivido, dias que
não voltarão e que não são mais que breves traços mnésicos de coisas encerradas
no cofre-forte do passado. A canção acabou e uma espécie de libertação abriu-se
no peito. O sol triste ainda não se livrou, para meu contentamento, da semana
santa. A vida decorre sem mácula ou perturbação, as pessoas passam apressadas
pela avenida, outras ficam em casa temerosas do tempo. Um casal vai devagar de
mão dada, enquanto dois pombos tracejam o céu mesmo em frente dos meus olhos.
Não sei que nome hei-de dar a dias assim. Cada vez sei menos coisas,
felizmente.
segunda-feira, 2 de abril de 2018
Abril
O dia convida a não sair de casa. Resisto à tentação e
submeto-me à necessidade de fazer parte do mundo. A cidade ainda não acordou do
longo fim-de-semana. Carros passam vagarosos, alguns param. Intermitente, o
símbolo de uma farmácia insiste em inundar-nos os olhos de verde, a esperança
nascida de uma química misteriosa, um milagre em cada receita. Uma mulher de
calças e sapatos altos encarnados sobe com dificuldade os seis degraus que a
hão-de levar a um dos bancos. Sigo-a com o olhar. Empurra a porta, depois de
passar o cartão, e é devorada pelo templo dos nossos dias. No rumor da rua não
soa qualquer requiem, a morte é uma banalidade que dispensa a música. Basta
entrar pela porta certa. Sigo pelo passeio. As árvores estão despidas e ameaça
chover. Abril é sempre um árduo exercício.
domingo, 1 de abril de 2018
Na rua
Oiço crianças a gritar. Estão lá em baixo, correm e gritam
como se fossem crianças a correr e a gritar. Nunca deixo de me espantar por
ainda existirem crianças a correr e a gritar nas ruas. A vida é tão asséptica
que o que era normal tornou-se excepção, acontecimento. O sol parece sofrer de
anemia, e assim não se ouve nenhuma mãe a ordenar que ponham o chapéu. Talvez
as mães já não se importem com chapéus e se ocupem de outra coisa sentadas à
mesa do café. Novos gritos. Espreito pela janela mas não vejo as crianças,
estarão do outro lado. Num canteiro relvado há um círculo de madeira no centro,
o que ficou de uma palmeira cortada rente ao chão. Uma nuvem mais forte passa
diante do sol e parece Sexta-feira de Paixão e não Domingo de Páscoa. O dia
levita e inclina-se sobre a cidade. Vai devorá-la, desconsolado, até que a
noite chegue e o liberte deste seu pesar. Gritaram, mas não percebi o quê. E tudo
se enrodilhou na ratoeira do silêncio.
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