sábado, 11 de janeiro de 2020

Um problema de listagens

Há quem faça listas de coisas a fazer, de livros a ler, autores a conhecer, lugares a visitar. Também eu fiz listas sobre coisas diversas. Nunca tiveram, tanto que me recordo, qualquer préstimo, pois no fim de feitas nunca mais olhava para elas. Isto não foi um acaso, mas tendo em conta a frequência com isso sucedeu, só pode ter sido fruto de uma natureza geneticamente fadada para o descuido e pouco preocupada com a verificação. Há dias em que penso, talvez por algum transtorno momentâneo, que deveria ter ficheiros completos dos livros, música e filmes que fui adquirindo. Disponível no telemóvel, evitaria compras repetidas e a consumação da minha inegável tendência para a iteração. Nunca me ocorreu, todavia, começar a fazer esse tipo de base de dados. Hoje continuo a fazer listas, mas apenas se vou às compras. Faço-as com a esperança de não me esquecer de nada. Senti um pingo no nariz. Passei a mão por ele e era sangue. Levanto-me e antes de me levar confirmo, ao espelho, que era mesmo sangue. Estancado o corrimento, sento-me e anoto numa agenda: não tornar a falar de listas para evitar sangramentos do nariz. Agora vou saber como está a tarde na rua.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2020

Ordens são ordens

Ordens são ordens, leio num livro que tenho em cima da secretária. Uma tautologia terá parecido ao autor destas palavras um início auspicioso para qualquer texto. O número de possibilidades é suficientemente grande para alimentar a escrita de textos anos a fio. Amanhã começaria outro dizendo maçãs são maçãs. No dia seguinte escreveria gritos são gritos. Não devias fazer-me utilizar a palavra tautologia, digo para o autor. Ele silencia-se como um cartuxo. Não resisto e continuo a catilinária contra ele. A palavra pode ter uma interpretação linguística e outra lógica, que não se deveria lançar a confusão na mente dos leitores. Ele olha-me com desprezo, enquanto eu acrescento usar tautologias não passa de um uso vicioso da linguagem. Cala-te, disse-me. O teu papel é o de narrador, portanto narra alguma coisa que mereça ser contado. Pensei que muitos são os eventos neste mundo, mas raramente encontro um que mereça ser narrado. O que gostaria de narrar seria não eventos. Por exemplo, falar daquele filho que não tive porque o espermatozóide se atrasou no encontro com o óvulo que estava à espera dele. Há desencontros assim que nos roubam a possibilidade de contar histórias interessantes. As sextas-feiras não ajudam a manter a razão num estado aceitável de sobriedade. O sol declina com rapidez e, de súbito, abrem-se os portões para as catacumbas da noite. Nestas soam as sete trombetas e as muralhas de Jericó do fim-de-semana desabam. Não tarda vem a segunda-feira, pois ninguém, apesar de assim ter sido ordenado, cuidou de fazer correr os filmes de sábado e domingo em câmara lenta. Alguém que não percebeu que ordens são ordens.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2020

Neblinas matinais

Durante a semana levanto-me todos os dias à mesma hora. O dia hoje mal tinha rompido. Ao abrir as persianas os meus olhos chocaram com a densa neblina que fazia o pequeno bosque da escola ao fundo parecer irreal, uma cortina incerta e escura sobreposta a outra cinzenta, misteriosa, feita de uma seda fina. O hospital e o colégio, onde gastei alguns, não muitos, anos da minha vida, tinham desaparecido, como se um taumaturgo os tivesse apagado, para gáudio de uma multidão embasbacada com a proeza. Percebi que na rua estaria frio e a minha memória genética rejubilou. Alguns dos meus genes devem ter vindo aos trambolhões dessa Europa fria, atravessada por nevoeiros densos e invernos rigorosos, pela qual o meu corpo suspira quando o Estio desalvora por estas terras, de onde os anjos fugiram há muito. Como todas as memórias, também esta há-de ser falsa, e os meus genes terão vindo de algumas tribos do sul. Um pombo decidiu vir arrulhar para o parapeito de uma das janelas. O som irrita-me, bato nos vidros e ele voa para outras paragens. Olho com atenção as árvores. Parecem um exército de gigantes marchando lentamente na planície. Às costas trazem mochilas e nas mãos metralhadoras que hão-de ser silenciosas. Sem barulho dispararão sobre o inimigo. Este resistirá com bravura mas, como acontece com todos os dias, acabará por se entregar, alçando uma bandeira branca para anunciar a noite. As botas cardadas ecoam nos meus ouvidos. Desligo-lhes o som e penso em tudo o que não me apetece mas tenho de fazer.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2020

Benchmarking

Vi muita coisa, disse para mim. Depois lembrei-me que a frase podia ser um plágio descarado e decidi esquecer-me dela. Se a deixei ficar onde estava foi porque não tinha outra para começar. Convém termos um armazém de frases para iniciarmos os textos, caso contrário ficamos com eles encravados na ponta dos dedos, à espera da frase inicial para saírem teclas fora e manifestarem-se como uma epifania na brancura imaculada do monitor. Só escrevo no portátil, note-se. Nada de coisas manuscritas. Sou uma pessoa moderna e sou-o há tanto tempo que a modernidade envelheceu em mim. Acabei de receber um convite para gostar de uma página do facebook. Vou ignorá-lo. Evite-se a poligamia ou, pelo menos, disfarce-se. Há quem esteja disposto a gostar de qualquer página que lhe apareça. São os militantes do gosto. Em certas alturas agarro a razão e prendo-a ali junto ao cérebro. Tenho sempre a esperança de escrever coisas sensatas. O que acontece, porém, é que nunca tive grande habilidade para fazer nós e a razão escapa-se-me quando menos espero. Hoje foi por causa de uma palavra que encontrei num documento que a realidade me mandou ler. A palavra era benchmarking. Mal a pobre razão deparou com o vocábulo eriçou-se, retesou-se, quebrou a frágil amarra que a prendia à massa cinzenta que ainda hei-de ter e fiquei neste estado. Sei uma quantidade de histórias terríveis, mas também isto é plágio e o melhor é não contá-las. O sol matinal reverbera e uma luz quente entra pela janela. Lá fora está frio e isto é tudo o que sei do mundo. As minhas histórias não pertencem a este mundo

terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Maldita realidade

O contacto com a realidade torna-me estúpido. Quero dizer mais estúpido do que estava programado nos meus genes e estes já continham uma dotação generosa de estupidez. A realidade é uma coisa tecida de fantasias, ilusões, jogos perversos, ideias gratuitas, pensamentos fúteis, acções vãs e o mais que não tenha pés nem cabeça. Quando tudo isto é misturado forma-se uma solução aquosa que faz lembrar um oceano revolto, continuamente alimentado por um turbilhão de coisas insensatas. Como num sonho caio lá dentro e farto-me de esbracejar para não ir ao fundo. Sou salvo pelo despertador. Encho os pulmões de ar, digo maldita realidade e tento recompor-me. O que quererá dizer esta alegoria, perguntará o leitor. A partir de certa idade começa-se a divagar e perde-se a capacidade de falar claro. Conheço casos mais radicais que o meu. Gente que começou a diminuir o número de palavras que usa. Os melhores chegaram ao silêncio. Não perguntam, não respondem, não dizem. Só abrem a boca para comer, beber e bocejar. Foram directos ao assunto e, em vez de divagarem através de alusões inócuas e destituídas de sentido, calaram-se. Eu ainda preciso de emitir sons, embora quem os ouve há-de julgar que rifei a razão numa quermesse de festa de aldeia. Talvez não esteja completamente fora da verdade.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2020

Dia de Reis

De manhã, quando me dirigia para o reino da realidade, parei na passadeira que, descido o viaduto, antecede a rotunda que leva à marginal. Duas sílfides passavam lentamente, inseguras e graciosas, quase a dissolverem-se na atmosfera. Não deixei de as olhar nem mesmo quando chegaram ao passeio e começaram a dura subida que as esperava. O condutor de trás, de vocação menos contemplativa, buzinou, as sílfides evaporaram-se e eu arranquei em direcção ao destino. Enquanto conduzia, pensava que me tinha enganado na mitologia. Deveria ter visto Reis Magos ainda montados em camelos, turbantes nas cabeças, os presentes seguros nas mãos reais. As sílfides não fazem parte desta história e não deveriam andar por aí a confundir-me, a ponto de criar um engarrafamento. A avenida estava hoje mais exuberante do que ontem. Apesar do frio, as cores saltitavam na paisagem, as árvores revigoradas olhavam compassivas os transeuntes, abençoando-os com as ramadas despidas. Mais logo irei espreitar se os Magos sempre chegaram ao presépio. Só espero que nenhuma sílfide se interponha no caminho e me desvie para outro universo onde não exista Natal, nem Menino, nem Reis vindos do Oriente.

domingo, 5 de janeiro de 2020

Um domingo sem qualidades

Os netos têm o talento especial de deixar um buraco vazio na casa dos avós quando se vão embora. Ontem fui pôr as duas netas a Lisboa, depois da estadia de alguns dias aqui. Hoje tudo está mais calmo, a televisão calou umas vozes aguçadas que imitam crianças a entrar no labirinto da adolescência e ninguém me vem pedir folhas, minas de lapiseira ou um agrafador para não sei quê de secreto, jogo congeminado num quarto de porta fechada ou mesmo diante dos meus olhos, no escritório, em voz sussurrada. As raparigas quando nascem trazem consigo a competência de se rirem dos rapazes e uma aptidão natural para o murmúrio. O domingo nasceu sem qualidades. Não são só os homens que podem não ter qualidades, também os dias da semana estão capacitados para perder a adjectivação e serem apenas o domingo ou a terça-feira, substâncias puras sem acidentes. Antevendo o silêncio e para compensar a ida a Lisboa, uma Lisboa que me pareceu mais fria do que o habitual, comprei romances de Amos Oz, Ian McEwan e Leo Perutz. Deste nunca li nada. Pensando bem, agora que a tarde se aproxima, talvez este domingo possua algumas qualidades e, diria contristado, não particularmente agradáveis. É o túnel obscuro que liga a fantasia dos últimos dias à realidade que me espera amanhã. Os exércitos inimigos marcham já sobre o território imaculado que me cabe defender e ampliar. A minha falta de fé na causa cresce, mancha negra na pureza branca do linho. Talvez no próximo fim-de-semana o meu neto me venha ver.

sábado, 4 de janeiro de 2020

O quingentésimo primeiro texto

O texto de ontem foi o quingentésimo. Esta não é uma palavra que se use impunemente. Pensei que quinhentos era uma boa conta para dar por terminada a função. Como é habitual em mim, pus de lado a boa resolução e, tomando o pior dos caminhos possíveis, volto de novo a este simulacro de diário. Também é verdade que um narrador tem menos liberdade que um escravo. Ele é uma espécie de marioneta manipulada pelos humores do autor. Esta deriva pela teoria da literatura é a confissão de um fracasso. Se não é falso que o mundo fervilha de assuntos palpitantes sobre os quais escrever, também não o será a minha nula vontade de o fazer. A sombra da oliveira que vejo daqui não fervilha, nem traz nela qualquer lição e no entanto não consigo parar de contemplá-la. Move-se tão lentamente que parece eterna, e nesta aparência de eternidade se embala o olhar. Oiço, vindo de lá de dentro, uma injunção para que uma das netas vá tomar banho. Não oiço réplica, o que significa que o imperativo foi pronunciado no tom exacto. A exactidão do tom é uma sabedoria difícil, mas que, adquirida, evita que a realidade se entregue a derivas que turvam os ambientes e cansam os actores. E isto é tudo o que me apraz escrever no quingentésimo primeiro texto.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2020

O estado do mundo

Hoje acordei tarde e durante o pequeno-almoço senti que o estado do mundo me obsidiava. Enquanto comia, olhava a paisagem envolvente. Estava serena, apenas uma leve neblina toldava o sol. A escola aqui ao lado, o hospital mais ao longe, até as fumarolas habituais numa aldeia da serra ocupavam o lugar que é o seu. O estado do mundo, porém, não deixava de me assediar o pensamento. Tive de respirar fundo e lembrar-me de que a minha vocação não é a de salvador. Isso tranquilizou-me. Quando me sentei para escrever, estava apaziguado, embora pressinta no ar uma cólera esparsa, que se solta em borbotões e corre avulsa por mentes infectadas por algum tumor. Há pouco, bandos de crianças invadiram o parque infantil. Gritavam palavras que não consegui perceber, depois foram arrastadas para o lugar de onde tinham vindo e o silêncio cresceu emparelhado com a sombra projectada pelos cedros do pequeno bosque mais ao longe. Uma sirene anuncia que nos aproximamos da uma da tarde. Os dias são pequenos barcos a deslizarem rápidos, arrastados pela corrente turbulenta do tempo. Não há nada como metáforas mortas, pensei ao acabar a última frase. Não fora a morte das metáforas e ninguém se entendia. Talvez aquilo que me preocupava no estado do mundo fosse apenas o excesso de metáforas vivas em circulação. Há que enviar exércitos bem armados e matá-las sem dó nem piedade. Chegámos a sexta-feira, a esta, e não tenho palavras para o desconsolo.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

Um pouco de esperança


Tenho estado a ouvir o Helicopter Quartet, de Karlheinz Stockhausen. Se tivesse sido bafejado com algum tino, deveria abominar a obra, mas Epimeteu, quando chegou a minha vez de receber os dotes que restavam para os seres humanos, não encontrou a bolsa onde guardara o tino e despachou-me mesmo assim. Não há Prometeu que me valha. Estou com dificuldades de acertar com o dia da semana, parece-me, pela tristeza das ruas, que hoje é segunda-feira. Não sei bem por que razão, mas estou a começar a embirrar com a designação numérica do ano. Esta duplicação do vinte parece-me uma redundância inútil, já bastam as minhas iterações, pleonasmos, repetições e tautologias. Cheguei tarde para a duplicação do dezanove e demasiado cedo para a do vinte e um. Cada um tem a duplicação que merece. O efeito de ouvir Stockhausen é este tipo de discurso desconexo, com um certo laivo esotérico, como se tivesse sido convidado para uma loja maçónica. Não fui. Acabado o Helicopter Quartet, passei para os Hymnen. Os ruídos do mundo são a música das esferas celestes, ocorreu-me, antes que tivesse tido tempo de me autocensurar. Já não me lembro se nos desejos de passagem de ano – aquela coisa que deve acompanhar o mascar das passas de uva – incluí ter um pouco mais de sensatez. Tenho de consultar algum especialista no assunto para saber se os desejos esquecidos se mantêm válidos após a falência da memória. Talvez ainda haja esperança.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

O primeiro dia

Cheguei a 2020 cansado, o que não me parece lá muito boa ideia. O mais indicado era ter aterrado no novo ano em plena forma física, exuberante e cheio de prognósticos favoráveis. Na verdade a única coisa que me apetece, agora que o primeiro dia se está a escapulir, é bocejar. Terei dormido pouco, é verdade. No entanto, é isso que me acontece sempre e não ando por aí a abrir boca. Quanto ao resto, consta que o mundo não se alterou apesar dos réveillons e fogos-de-artifício. Chegado de Lisboa, sento-me à secretária e revejo a agenda para os próximos dias. A realidade, depois de uma semana de fantasia, começa a bater à porta. Bem tento fechá-la, mas faltam-me as forças. O dia esteve frio, nas ruas as pessoas vestiam-se como se estivessem no Inverno. Por uma vez não se enganaram na estação. O ideal, penso, seria eliminar as pessoas destes textos. Apagá-las sempre que se apresentam em cena ou talvez apagar-me a mim. Pegar numa borracha e sem pressa ir extinguindo cada um dos meus traços, até que não fique no texto nada a que possa chamar meu. A isto chamou-se em tempos ascese, o exercício de renunciar a si mesmo, coisa que caiu em desuso e é vista como uma grave patologia. 

terça-feira, 31 de dezembro de 2019

Calendários

Ao barbear-me, cortei-me no pescoço. Uma pequena mancha de sangue alastrou na pele, mas logo suspendeu a viagem, como se lhe faltasse energia e desistisse sem razão aparente do progresso. Vejo-a no espelho, contemplo-a por instantes, depois limpo os vestígios do crime e entro pelo dia. É uma entrada tardia na última etapa do ano. Este é um rally, um estranho rally com 365 etapas, mas em que todos os que chegam ao fim fazem-no ao mesmo tempo. Talvez seja por isso que se sentem obrigados a mostrarem-se alegres, numa insuspeitada celebração da mais pura igualdade. Se pudesse introduziria um princípio de diferenciação no calendário. Para uns o ano seria mais rápido, para outros, mais lento. Enquanto uns comemoravam a chegada de 2025, outros arrastavam os pés pelo ano de 2012, para não falar naqueles que ainda dormitavam pelo século passado. A cada um seria permitido escolher o seu ritmo ou, caso duvidemos do livre-arbítrio, cada um teria o ritmo que os seus genes determinariam. Desconfio que o calendário foi uma invenção de alguma seita proto comunista com a inconfessável finalidade de humilhar os mais rápidos e favorecer aqueles que se arrastam ano adentro sem vontade que o tempo passe. Não sei se é porque o ano está prestes a deixar-nos, mas o sol está lacrimoso, enviando-nos uma luz turva, anémica, impotente para alegrar corações. Só espero que logo se esqueçam do ritual das passas, que não suporto a função. Agora vou fazer a pequena lista das pessoas a quem tenho de ligar passada a fronteira do ano. Só para não haver esquecimentos.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

Desinteresses

Moribundo, o ano está a dar um ar da sua graça. Magníficos dias de Inverno, onde o sol e o frio se conjugam para alegrarem os pobres mortais. Durante algumas horas, a luz radiosa mostra-se exuberante, tornando manifesto aquilo que os dias sombrios esconderiam. À minha frente tenho o longo ensaio de Elias Canetti, Massa e Poder. Percorro-lhe o índice. Há nele muitas referências à Antropologia. Pergunto-me se valerá a pena, se poderá ajudar a interpretar o nebuloso tempo em que vivemos. Oiço os Gurre-Lieder, de Arnold Schoenberg, dirigidas por Zubin Mehta. É uma das obras a que volto com regularidade. Esqueço-me do ensaio de Canetti. O espírito humano é muito volúvel, pensei. Tão depressa se interessa por uma coisa, como, sem razão aparente, a deixa de lado. Tornei-me especialista em deixar coisas de lado, em retirar delas o meu interesse e deixá-las em paz. Imagino que o livro de Canetti me agradeça o desinteresse. Um dia também a vida me deixará de lado, desinteressada do meu desinteresse, cansada de mim. O sol começa a empalidecer, carros desfilam pela avenida Andrade Corvo, enquanto o tenor dá voz à desdita de Waldemar. “Nada o homem receia mais do que ser tocado pelo desconhecido.” É promissor o início da obra de Canetti. Depois dos Gurre-Lieder irei ouvir o Pierrot Lunaire.

domingo, 29 de dezembro de 2019

O rally dos idiotas

Um carro ronca furioso numa das avenidas aqui perto, os travões guincham, suspendem por instantes o gorgolejar do motor, mas logo este retoma o matraquear com que responde ao acelerador, pisado sem piedade. O condutor deve imaginar-se piloto de rallies em plena competição e sentirá toda a realidade da sua existência no ruído com que esfaqueia o silêncio dominical da província. O que não falta por aí são campeões destes, pequenos quixotes deslumbrados pela mecânica, que nunca competiram a não ser no rally da idiotice. A bazófia do condutor foi exibir-se para outro lado, pois caiu um silêncio sepulcral sobre as ruas. Lá em baixo, na Sá Carneiro, peões marcham decididos, enfrentam inimigos terríveis e procuram no caminhar a salvação para as desditas do corpo ou da alma. Um casal passeia-se de mão dada, cada um temeroso de que o outro fuja. Pela janela entra um raio de luz. Traça uma linha oblíqua no chão. Olho-a fascinado, depois volto para este texto. Hoje hei-de almoçar mais tarde. De novo, um carro roncante invade o meu território sonoro, mas será outro, já que o ronco se transforma num ronronar cordato até desaparecer dentro da cisterna do silêncio.

sábado, 28 de dezembro de 2019

O sábado declina

Estou à espera do meu neto, mas não vou poder pegar-lhe ao colo. Não que ele queira, pois isso impedi-lo-á de mexer onde não deve, não o deixará fazer uma sementeira de CD e livros pelo chão. A culpa deste impedimento é das netas e do malfadado jogo de badminton a que fui sujeito, como se tivesse de cumprir uma pena ou de pagar uma promessa. Com o passar das horas, as dores lombares parecem expandir-se e o voltaren, uma espécie de santo, está renitente em operar um dos seus milagres. Lá em baixo, com o retorno do tempo mais seco, as crianças invadiram o parque infantil e as suas vozes afiadas chegam até mim. Quando se calam, faz-se um grande silêncio. No horizonte, a serra é um vulto imóvel e cinzento, uma fronteira que separa dois mundos. O sábado progride em direcção à noite. Leva com ele a ilusão do fim-de-semana e ostenta orgulhoso no dorso o título de último sábado do ano. Está um sol convidativo e o mais assisado será levantar-me daqui e ir dar uma volta a apanhar sol. Não me posso afastar, pois não faltará muito para que o rapaz chegue.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2019

Aproximação à realidade

Ao acordar senti-me confuso, mais do que o habitual. Que dia é hoje? Sentei-me na cama a rememorar o calendário e lá consegui descobrir que era sexta-feira. Não se pense que este descolamento da realidade temporal se deve a alguma coisa que não à ocupação de parte destes dias com as actividades próprias à quadra. Descobrir a quanto estávamos na semana devolveu-me um sentido cruel de realidade. Como um punhal, esta atravessou-me o coração e não sem azedume lá me levantei. Um sol faceto e pirraceiro olhou para mim quando abri a janela. Observei-o de soslaio, com cara de pouco amigos, enquanto ele deitava de fora uma língua de fogo que lambia a serra, dando-me a ver uma paleta de cores que me recordaram que o Inverno já havia começado. O astro ainda tentou entabular conversa comigo, mas voltei-lhe as costas. Talvez mais logo me reconcilie com ele e lhe conte como vão as coisas aqui na Terra, o que não será da minha parte um gesto de boa vontade. O dia parece cheio de glória. A natureza nunca se poupa a estratagemas para enganar os incautos. Acabo de receber uma mensagem, mas não era para mim. O mundo está cheio destes equívocos. Pessoas a enviarem mensagens para quem não deviam e outras à espera da mensagem que ninguém lhe destina.

quinta-feira, 26 de dezembro de 2019

Uma tarde de badminton

Por uma estranha e não sei se malévola inspiração as minhas netas e uma prima acharam que eu era o parceiro indicado para completar um quarteto e assim poderem jogar badminton a pares. Ingénuo e desconhecedor do terreno, aceitei pegar na raquete e tentar acertar no volante. Não imaginava que naquele sítio a força da gravidade fosse muito maior do que nos lugares que costumo frequentar. Bem dava impulso ao corpo para saltar, mas os pés teimavam em não se despegar do chão, enquanto o cesto de penas que faz a vez de uma bola se obstinava a passar na estratosfera para logo cair atrás de mim. Argumentei que não estava habituado a enfrentar uma força da gravidade daquela dimensão, mas olharam para mim com condescendência e lá continuei a fazer par com uma delas, sem perder a esperança de conseguir acertar naquela coisa com inveja de ser pássaro. Agora que fui libertado do exercício estou com umas dores na lombar, tantas as vezes que tive de me curvar para apanhar o volante do chão. Há coisas que não deviam passar pela cabeça de pré-adolescentes ou, não sendo possível evitar esses devaneios, o melhor seria não ter ouvidos para este tipo de pedidos, mas ainda não sofro de surdez. Enquanto escrevo, elas teimam em mostrar que possuem uma reserva considerável de energia que nem o badminton da tarde consumiu.

quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

A coisa prossegue

Não tarda e esta parte das festividades estará consumada. Haverá o tardio almoço de Natal e, devido à natureza arborescente das famílias modernas, decorrerá ainda o jantar do dia de Natal. Há que contentar o máximo das partes e a partir de certa altura o jogo de ponderados equilíbrios torna-se num quebra-cabeças de difícil resolução. É nestas alturas que se percebe a importância da diplomacia. Compreendo bem que o Menino Jesus se interrogue se terá valido a pena as dores da encarnação e que suspire não sem desdém se alguém se atreve a responder-lhe tudo vale a pena se a alma não é pequena. Mais tarde ainda tentou reparar a situação ao dizer dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus. Entrevia já – ou talvez fosse a sua omnisciência a operar – que por causa do seu nascimento muita política e diplomacia deveria correr entre as margens escarpadas das famílias. O sol por aqui está raquítico. Na televisão o presidente da república continua a sua azáfama e as casas de apostas puseram em jogo o tempo que demorará sua excelência a tirar uma selfie com todos os portugueses. Estamos no Natal e há que evitar politiquices, pois as famílias tornaram-se tão plurais que nem em desacordarem conseguem estar de acordo. Aqui por casa alguém diz que tem de tomar um gurosan, oiço também falar em ben-u-ron. A mim não me dói nada nem estou indisposto, mas o melhor é fazer um ataque preventivo e tomar qualquer coisa, nem que seja um placebo, talvez me consiga enganar a mim mesmo. 

terça-feira, 24 de dezembro de 2019

Em contagem decrescente

Terei ainda de fazer uma ou outra compra, mas as coisas estão já encomendadas e espero que o dia e a noite deslizem com bonomia. Em tudo isto há um cansaço e ninguém consegue disfarçá-lo. Também é verdade que, com aquela mania de fazerem recenseamentos todos os anos, a Virgem e José, o carpinteiro, sofrem continuamente as peripécias de não encontrarem alojamento. É sempre a mesma coisa, diz o pai adoptivo do Menino. O mais sensato, passou-me pela cabeça, seria recorrerem, nos dias de hoje, a uma agência de viagens ou, em último caso, ao Booking. Marcavam hotel perto de uma maternidade e não corriam o risco de o Menino ser contaminado pelo bafo da vaca e do burro. Não pense o leitor que me tornei um jacobino pronto para fazer uma diatribe contra o Natal. Pelo contrário, eu gosto do Natal, do presépio, dos doces, até da Missa do Galo, apesar de nunca ter ido a nenhuma, mas imagino-a de uma grandeza exaltante, onde coros humanos e angélicos entoam um oratório de Bach. Talvez seja com medo de me defraudar que a evito, sabendo que Bach era protestante e que em vez da sua música tenha de ouvir sabe-se lá o quê. Os dias de Natal de antigamente eram de uma grande tristeza, pois não havia sítio onde se pudesse beber café. Hoje em dia, graças à Nespresso e às suas belas cápsulas de alumínio, toda a gente tem café em casa e as senhoras, enquanto bebericam, sempre podem imaginar que é o próprio George Clooney que as serve, mesmo que seja o burro do presépio ou o marido, cujo ressonar já não podem ouvir. A imaginação é a mãe de todas as coisas.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Fim de aboboramento

Nunca consegui justificar perante mim o facto de ter uma conta na plataforma LinkedIn. O certo é que um dia qualquer, por um desvario que já não consigo recordar, abri conta e por lá fiquei a aboborar. Esta palavra decepciona-me profundamente. Por impulso semântico, eu diria que significa tornar-se abóbora, mas não. É uma espécie de corruptela de abeberar. Seja como for fiquei por lá a aboborar, imóvel e desinteressado, respondendo com bonomia e a melhor vontade às solicitações de conexão, embora nunca tenha percebido a razão por que há pessoas que hão-de querer estabelecer uma conexão comigo numa plataforma como a LinkedIn. À maneira de Grouxo Marx, também não admitiria estabelecer qualquer conexão profissional comigo. O certo é que sem mexer uma palha, praticando com diligência o aboboramento, fui ficando conectado com conhecidos e desconhecidos, recebendo mensagens para parebenizar (palavra que me deixa logo com revoluções no estômago) este e aquele pelos novos empregos ou cargos a que tinham sido promovidos. Fui estranhando nunca ter recebido convites para dar os pêsames aos despedidos ou aos despromovidos, mas inferi desse silêncio que todas as minhas conexões eram com gente vencedora na vida. Hoje recebi um novo pedido de conexão. Abri a conta e com ela escancarada procurei como acabar com ela. Liquidei-a em três tempos. Recebi de imediato uma mensagem a dizer que sentiam muito pela minha saída. Eu, pelo contrário, sinto muito pela minha entrada. Nunca se deve entrar em sítios aonde não vamos fazer nada.