Acabo de ler que Rafael, o pintor renascentista, morreu
vítima de uma doença semelhante à provocada pelo coronavírus. Não contentes com
isto, os informadores ainda foram desenterrar as coscuvilhices do Vasari. Este
não precisou de redes sociais para registar e divulgar que o pintor de Urbino
não apenas saía de casa à noite, quando estava um frio de acender lareiras,
como o fazia para visitar as amantes. No plural, note-se. O amor à concorrência
e a valorização do mercado não são coisas de agora. Ainda por cima omitia
estes factos venturosos aos médicos e, quem sabe, aos confessores, o que seria mais
grave. Resultado? Morreu aos 37 anos, apesar dos cuidados que lhe foram
dispensados. Somos levados a imaginar que se ele não se tivesse dado a tanta
consolação nas noites frias, não teria tido uma morte tão desconsolada. Continuando
com a imprensa. O leitor talvez já não se recorde o que é a parusia. Os tempos
não andam bons para se manter uma sólida cultura religiosa, mesmo que seja
aquela em se foi educado. Apesar do termo ser um pouco esdrúxulo (na verdade, é
uma palavra grave de origem grega), refere-se a uma antiquíssima crença dos
cristãos. A segunda vinda – em glória – de Jesus. Expectativa iminente e sempre
adiada. Vejo agora na imprensa que a segunda vinda de Jesus está consumada. Não
há jornal ou site de informação que não proclame que Jesus voltou. Há
quem espere que seja em glória, mas sobre isso não me pronuncio. Confesso que
com o calor de hoje não me ocorreu mais nada. Podia ter contado o meu jantar de
ontem em Lisboa com o padre Lodovico Settembrini, o seu antigo aluno Hans
Castorp e a mulher deste, a espanhola Emilia Bazán, mas isso ficará para um dia
destes. Vou enviar um email ao padre para lhe perguntar o que acha ele da parusia
de Jesus.
sábado, 18 de julho de 2020
sexta-feira, 17 de julho de 2020
Do exercício da estultícia
A humanidade divide-se em três categorias. Os sagazes, os
estultos e os outros. Não me coube nem o estatuto dos outros nem o dos sagazes.
Restou-me entrar no clube dos que cultivam a estultícia. Como todos os
estultos, sou um praticante assíduo. Nunca falto a um treino e compito nos melhores
campeonatos de estultícia para seniores. Hoje entrei numa livraria para ver os
livros. Realizei plenamente o meu desígnio. Cumpri os objectivos, como agora se
diz. Cheguei lá, olhei para as estantes e vi que tinham umas coisas vagamente
parecidas com livros. Foi uma contemplação pura. Só um estulto entra numa
livraria sem óculos. Os sagazes são precavidos e, caso necessitem, terão sempre
uns à mão. Os outros nem precisam desses benévolos dispositivos pois não entram
em livrarias, espaços que são apenas frequentados por sagazes e estultos que se
pensam sagazes. Um funcionário perguntou-me se eu precisava de ajuda. Que não,
respondi e agradeci o empenho solícito. Não lhe ia pedir uns óculos emprestados
nem que me lesse as lombadas dos livros. Ainda não cheguei a essa fase. Como
todos os estultos insisti em comprar livros. Quando cheguei a casa descobri que,
caso tivesse óculos, não teria comprados dois dos que comprei. Sempre posso ir
trocá-los, mas está tanto calor e nada me garante que leve óculos e não acabe
por trazer os mesmos que teria devolvido. O que me valeu para disfarçar, aos
meus olhos, a estupidez natural foi uma cliente que estava em muito pior estado
de conservação do que eu. Ia conversando com os empregados e o dono da livraria
e acabou, entre pagamentos, considerações literárias e pedidos para guardar a
encomenda, a oferecer-lhes croquetes. Óptimos, asseverou, e como comprei seis e
sou só uma. Eles agradeceram. Ela saiu e eu fiquei a pensar quando será o dia
que entro numa livraria e, mesmo com óculos, acabo a oferecer croquetes ou
pastéis de nata à menina da caixa. Nunca se sabe para o que estamos guardados.
quinta-feira, 16 de julho de 2020
Falta de concorrência
Tudo se paga nesta vida. As coisas irritantes que não fiz
ontem fi-las hoje. Ao sair de casa, a atmosfera purgava grossas bagas de calor,
inundando ruas e avenidas com um ar tão quente que logo se imagina o dia
propício a um grande desvario. Pôr o carro a lavar, passar pela oficina e pagar
a bateria que ontem vieram colocar quase ao anoitecer, passar pelo seguro para
levantar a carta verde. Faltou-me apenas abastecer o depósito. Uma manhã
dedicada ao automóvel, ainda assim sem completar todas as tarefas. Tirando a
adolescência, que pela sua natureza não conta nestas considerações, a minha
relação com carros sempre foi enviesada. São coisas que me cansam, embora me
dêem algum jeito. Aquilo que eu gostaria mesmo era de teletransporte, mas ainda
não está disponível na gama de mercado a que posso aceder. Uma pessoa
fechava os olhos, concentrava-se no destino para onde queria ir e, passados
segundos, encontrava-se lá de carne e osso. Era uma grande vantagem. Perdia-se
menos tempo, a poluição baixava drasticamente e os milhões de empregos ligados
aos transportes seriam alocados – meu Deus, como é possível deixares-me escrever
esta palavra? – a coisas mais filantrópicas, cuja natureza agora não me ocorre.
De facto, o mundo foi muito mal construído. O arquitecto deveria ter um
espírito aberto e democrático e escutar a freguesia. Um amigo economista
confidenciou-me que isso se deve à falta de concorrência. Se os clientes
pudessem escolher entre vários mundos possíveis, os arquitectos em competição
preocupar-se-iam com os interesses dos consumidores. Sendo assim, é o que se vê. Um
mundo cheio de vírus e sem teletransporte. Uma pepineira.
quarta-feira, 15 de julho de 2020
Da perfeição
Tenho coisas irritantes a tratar na rua, mas o calor e toda
a coreografia implicada no sair de casa, descer à garagem, abrir e fechar
portas, carregar em botões e digitar códigos, tudo isso espalha em mim um véu
de cansaço. Protelo e espero por melhor altura. Antes de almoço peguei nas
obras completas de Mário Cesariny. O problema é que não tinha óculos. Na capa
ainda distinguia as palavras, mas os poemas não passavam de manchas. Em vez de
ir à procura dos óculos fiquei a ver a configuração espacial dos poemas, a
espreitar como a cinza textual se destacava da superfície bege do papel. Não se
deve desprezar na apreciação de um poema a forma como ele ocupa o espaço. Há
muitos anos, talvez há mais de vinte, mas não sei precisar, uma galeria local
organizou uma sessão com alguns membros do grupo surrealista português. Ia
jurar que o Cesariny esteve presente. Tudo aquilo pareceu-me anacrónico e
penoso, mas achei graça à apresentação que o organizador desta edição da poesia
de Cesariny, também presente, fez de si. Perfecto E. Cuadrado, uma redundância,
acrescentou, pois se se é quadrado já se é perfeito. Para além da sensação de
anacronismo, foi o que retive do evento. Se alguém, porém, me afiançar que tudo
isso é invenção, não serei eu que o hei-de contraditar. Bocejo, pego nos óculos
e entrego-me ao expediente. Também eu procuro a salvação.
terça-feira, 14 de julho de 2020
La Dernière Valse
Há uma eternidade ofereceram-me, trazido de Paris, um pequeno
caderno para anotações. Talvez tivesse sido uma agenda, já não consigo precisar.
Não sei se alguma vez escrevi nele ou nela alguma coisa, mas não o esqueci por
completo. Tinha na capa uma fotografia de 1949 da autoria de Robert Doisneau, La Dernière
Valse du 14 juillet. É uma fotografia extraordinária. Um par solitário
dança na rua. A noite caíra sobre os prédios. Só sombras silenciosas, inumanas,
vindas da caverna onde dorme a noite, assistiam ao espectáculo. Quem olha a
fotografia não vê apenas o que está nela, um homem e mulher fixados eternamente
numa posição imutável. Vê-os fluir, adivinha-lhes os passos de dança, ouve a valsa,
envolve-se na performance, sente
vontade de aplaudir. Há em tudo isto uma ironia. Como é que um acontecimento
irado e terrível com o passar dos anos se transforma numa valsa? Talvez todos
nós, enquanto vivos, valsemos sobre o cadáver de milhões de mortos e a valsa
seja um exercício de purificação da memória. Ou talvez a vida seja outra coisa,
como a bateria do carro que se apagou, a necessidade de ligar algum dispositivo que
arrefeça a casa, aquilo que não se pode esquecer quando se vai às compras. O
braço dele cinge-a pela cintura, a saia abre-se como uma flor e a noite não pára de cair sobre aquele par solitário que valsa há 71 anos.
segunda-feira, 13 de julho de 2020
Viver sitiado
Fecho-me em casa, escondo-me do calor como quem se esconde de
um vírus. Cerro as persianas e preparo-me para os dias de cerco que tenho pela
frente. Aqui, o sol é um inimigo implacável. Dardeja sem parar raios cheios de
rancor, desejoso de incendiar as cidades por ele sitiadas. Há nele uma sanha
incompreensível para pobres mortais como eu. É possível que a sua aversão tenha
nascido de algum despropósito nosso, de lhe termos negado a divindade ou,
terminadas as colheitas, de não lhe rendermos culto. Desconheço o que lhe move
o ódio. A serra, com os seus muros de calcário, impede o vento marítimo de vir
em socorro dos que são mártires da desmesurada ambição do astro. Não vale a
pena acusar-me de tratar o Sol como se fosse um ser dotado de razão, agindo por
motivos demasiado humanos. À falta de personagens reais, humanizo aquilo que me
vem à mão. O Sol, a Lua, uma pedra, até a mim, que não passo de um pensamento
no pensamento de outro que não sou eu. O telemóvel informa-me a hora e o dia.
Vejo que num dia 13 de Julho, Charlotte Corday assassinou Marat. Vejo retratos
de ambos e o dela parece-me de longe mais benevolente. Sempre achei o quadro de
David, La Mort de Marat, um exercício
de canonização do mal, mas sobre isso é melhor não me pronunciar e remeter-me
ao meu papel de simples narrador tiranizado pelo despotismo do autor, talvez um
discípulo de Marat. O calor não me faz bem. A 13 de Julho nasceu Júlio César,
reparo agora. Decididamente, é um dia que tem demasiado sangue nas mãos. Talvez
seja da temperatura. Nunca sabemos realmente a causa das coisas, admito.
domingo, 12 de julho de 2020
Do uso da máscara
As
coisas que se encontram sem serem procuradas. Não falo de objectos perdidos,
curiosidades da natureza, uma nota de cinco euros ou artefactos do engenho
humano. Caminha-se, caminha-se, e súbitas revelações explodem na consciência. Está
a tornar-se uma moda as pessoas usarem a máscara debaixo do queixo e no
pescoço. Qual a razão? Não se compreende, mas ao andarilhar mundo fora a mente
desprende-se de uma visão excessivamente racional e, subitamente, tem um insight que a faz perceber a verdade. As
pessoas protegem-se do vírus da papeira ou tentam evitar, à outrance, um resfriado na garganta e, para isso, não há melhor
defesa do que uma máscara. Descobri também, num caminhante inovador, que estes novos
dispositivos de protecção contra aerossóis se podem usar no braço para evitar a
dor de cotovelo. São muito eficazes, amortecem o impacto e poupam ao mundo a
dor daqueles que nunca deixam de se queixar da imoralidade do universo ou da
maldade humana. São estas pequenas iluminações que evitam o desespero com este
domingo. Promete uns refrescantes 38 graus. Talvez nos queira fazer lembrar que
por muito que os nossos antepassado tenham fugido de África, será a ela que
todos teremos de retornar. Espero que o autor não me censure este devaneio
meditativo. O calor justifica os maiores disparates e antes estes do que outros
ofensivos do decoro da sociedade.
sábado, 11 de julho de 2020
Uma ida ao café
Havia alguns clientes na esplanada, mas no interior o café
estava vazio. Sentei-me lá dentro rodeado pelo sossego da província, tirei a
máscara e arrumei-a longe da vista. A rapariga atendeu-me, e eu desmascarado
passei os olhos pela imprensa. Um estranho hábito. Julgo que o bebi na
infância. Café, pedia o meu pai, e abria os jornais que comprara. Sempre um de
informação geral e outro desportivo. Naqueles tempos havia matutinos e
vespertinos. Eu comia um pastel de nata à colher, embora não recorde a razão para
evitar a parte folhada. Uma das minhas idiossincrasias relativas a comida, a
qual era para mim, até aos dez anos, um poderoso inimigo e motivo de grandes
dissídios com a minha mãe. Odiava comer, coisa que me passou. Dispensava até
que tivesse sofrido uma transformação tão radical. Quando comecei a ler tinha
direito a um livro de aventuras, uma banda desenhada quase sempre centrada no
longínquo oeste. Sempre vivi rodeado de jornais, mas há muito que deixei de
comprar os desportivos. O assunto deixou de me interessar e aquilo tornou-se
uma leitura tóxica. Não é que a imprensa de referência não esteja cheia de
toxinas. Está, mas desenvolvi resistências e aquilo não me faz mal. Julgo,
todavia, que o país não desenvolveu imunidade de grupo. Um dos cafés a que o
meu pai me levava tinha umas cestinhas de figos secos em exposição e, se não
estou enganado, penduradas nas paredes. Os figos eram cobertos por um folha de
celofane amarelo, mas posso esta a inventar. Esse café desapareceu há décadas,
também o meu pai foi para um lugar onde não existe imprensa e onde não se
vendem livros de aventuras, e eu como pastéis de natas à mão e nem a parte
folhada deixo de lado. O sábado progride vagaroso, o silêncio do café
mistura-se com um artigo de opinião. Se gostasse, haveria de ir à praia. Deixei
de gostar. Para não incorrer numa falácia, não infira que não irei, embora eu
não vá.
sexta-feira, 10 de julho de 2020
O oblívio dos pontos cardio
Cobre-me o dia uma pouca vontade para que nele inscreva
qualquer coisa. Respiro fundo e sou invadido pela sensação de que sempre é
assim. Dias cobertos de vontades poucas. A manhã começou com uma caminhada.
Depois, entreguei-me com zelo a trivialidades, mas a existência é feita de
coisas triviais. Ninguém suportaria uma vida inteira preenchida, momento a
momento, de grandes acontecimentos, mesmo que fossem apenas privados. As manhãs
parecem-me sempre tecidas com o fio da inocência, que uma alma cândida terá
fiado durante a noite. O estado virginal, porém, vai-se maculando com o passar
das horas e o tecido do dia, de início tão branco e resplandecendo, encarde-se
e perde o fulgor. Quando caminho, levo o telemóvel para que este supervisione o
meu andamento e que me informe quantos pontos cardio acumulei. Aqui entre nós, confesso que não faço ideia do que
sejam pontos cardio, mas gosto do
nome, de uma certa musicalidade que há nele. Hoje nas deambulações matinais não
encontrei ninguém conhecido. Por vezes, algum outro caminhante passava por mim,
mas era uma sombra que se desvanecia, a caminho doutro santuário que não o meu.
A palavra oblívio começou a retinir em mim. É mais bela que cardio e não há melhor remédio para
muitos males do mundo que o oblívio. Pudera eu, até me obliviaria de mim.
quinta-feira, 9 de julho de 2020
Um buraco negro
Pela primeira vez, em meses, ouvi um bando de
pós-adolescentes algazarrear junto ao centro de línguas, na praceta aqui em
baixo. Não faço ideia se o centro reabriu ou se eles se juntaram ali para
descontrair de algum exame feito ou a fazer na escola ao lado. Estavam de
máscara, pareceu-me, mas as vozes elevavam-se com a força que só a inocência
lhes dá, mesmo que seja uma inocência que se julga culposa, crente de que uns
quantos desvios às regras lhes dá uma experiência mundana que porá todos os
velhos de boca à banda. Para aquelas idades, alguém com pouco mais de trinta
anos é um velho irremediável. Quando tiverem sessenta descobrirão que ainda não
são velhos. Continuam a florir os arbustos da escola. Ando há meses a tentar
recordar o nome daquelas plantas, mas ainda não o consegui. Talvez nunca o
tivesse sabido. Na casa de uma das minhas avós havia uma paliçada coberta por
umas trepadeiras que davam umas flores roxas que, abertas, tinham uma forma de
campânula ou sino. Que nome teriam elas? A Botânica não é o meu forte. Ontem o
meu neto veio visitar-me. Mal me vê puxa-me o dedo para vir para a secretária
onde não se cansa de bater no teclado. Depois, quer que eu o empurre na cadeira
do escritório. Estas viagens de cadeira de escritório já vão na terceira série.
Os dias deslizam para o buraco negro de onde, devido à intensidade do campo
gravitacional, nunca conseguem regressar. E com isto resolvi um dos grande
enigmas da humanidade. Por que razão não conseguimos viajar para o passado? A
resposta é simples. O passado não é um país estrangeiro onde as coisas se
fazem de forma diferente, como pensava o senhor Hartley, mas um buraco negro
onde tudo o que nele cai desaparece para sempre. Exausto por esta descoberta,
calo-me para não a estragar.
quarta-feira, 8 de julho de 2020
Carnaval eterno
Acordei ainda não eram sete da manhã. A temperatura na rua
tinha descido bastante, apressei-me a
abrir janelas e a pôr a casa sob o efeito de correntes de ar. Estava uma manhã
esplêndida. Cinzenta, fria. Um vento suave lavava o rosto da cidade encardido
pelo calor. As ruas pareciam transitáveis e dos prédios começavam a sair as
primeiras pessoas em direcção aos carros estacionados sob árvores, de onde se
desprende um fluido viscoso que se pega aos vidros. Um atleta paroquial,
equipado a rigor, passou na sua bicicleta de corredor, um homem de máscara
trazia um cão pequeno à tela, a vida mascarava-se de normalidade. Quando saí, o
feitiço tinha desaparecido. O Sol rompera as muralhas e tornara-se ameaçador.
Na esplanada do café da praceta, havia clientes nas três mesas que agora flutuam
distanciadas no estrado. Numa delas, a Marília conversava com o Zé Tó. Afinal
quem estava no outro dia a sambar para ela não era o Esteves nem o Lopes, mas o
Zé Tó, que, enquanto geólogo, andou por meio mundo à procura de petróleo. Esse
deambular é toda a metafísica que lhe coube, mas ninguém quer saber de
metafísica para coisa alguma. Os olhos já tiveram melhores dias, foi o que me
ocorreu, quando percebi o troca que fizera da outra vez. Passei por eles, olá,
olá, e continuei em direcção ao meu destino, pois hoje tinha um. Entrei nele
mascarado, estive por lá mascarado e saí mascarado. Embora a criatividade nos
disfarces ainda seja incipiente, o Carnaval está a tornar-se eterno. Não tarda
e todos sentiremos falta da Quarta-Feira de Cinzas.
terça-feira, 7 de julho de 2020
Perdido na floresta de calor
Almocei, depois de uma manhã entregue ao que o dever me
impõe. Agora, antes de continuar a dar atenção ao que me diz o imperativo
categórico, dou uma vista de olhos pela imprensa. Isto não vai acabar bem, foi
a ideia que se formou na minha mente. Não interessa o que é o isto. Seja o que for tem grandes
possibilidades de acabar mal. A temperatura está nos 38o e vai
continuar a subir. Lembrei-me da história do pastor e do lobo. Andamos desde
finais do XIX a gritar lobo, lobo, sem que se avistasse, talvez por cegueira ou
por não se gostar de abrir os olhos, lobo algum. O lobo guardou a sua visita
para estes dias. Está no meio do rabanho e ninguém acredita. Com este calor não
me ocorre nada mais edificante para partilhar ou, então, estou naquela fase da
existência em que as minhas referências existenciais são Esopo e os irmãos
Grimm. Há quem tenha opinião diferente. Um livro que tenho à minha frente, ao
abri-lo, enviou-me a seguinte mensagem: Acolhe-te
o paraíso dos loucos. Não devemos desdenhar os sinais. Se toda a gente
desse atenção aos sinais, talvez o lobo não andasse por aí e o rebanho pudesse
dormir mais descansado. As duas vezes que usei a palavra rebanho escrevi
rebalho. Isto preocupa-me. O que me levará a trocar o n pelo l? Desconfio que
há qualquer coisa a correr mal no convívio entre os meus neurónios. Talvez o
lobo já por lá ande e eu não tenha dado por isso. Tomo consciência do que me
espera nas próximas horas e enrolo-me no lençol da paciência e no cobertor da
piedade. É nestas alturas que perco a vergonha de ter pena até de mim mesmo.
Uma voz soletra age de tal maneira que
possas querer que a máxima da tua acção se torne em lei universal. Será a
autopiedade uma lei universal? Bocejo. Vou trabalhar.
segunda-feira, 6 de julho de 2020
Arrasto-me
Neste momento estão 38 graus, mas há a promessa de se chegar
aos 40. Não faço ideia como alguém consegue fazer alguma coisa que tenha
sentido, por pouco que seja. Se observo a minha mente, o que vejo é uma névoa
turva onde os parcos neurónios que não desertaram bóiam, mantendo uma distância
de segurança suficiente para cumprir as regras do combate à pandemia, sem
tentações de fazerem sinapses, conexões, de se entregarem a amplexos dos quais
haveria de nascer um sentido. O que me vale é não ser dado a fúrias
mediterrânicas e as minhas relações com a tragédia grega serem apenas as de um
leitor distante. O calor não fomenta em mim a inclinação para o crime, como
acontece com outros, mas o mérito que tenho nisso é nulo. Aconteceu ser assim.
Fico tolhido, olho o mundo com condescendência e arrasto-me na existência como
o mais impotentes dos seres que a vida se lembrou de retirar do nada para que
soubesse o que era uma tarde quente e seca. Toda esta conversa serve para dizer
que não tenho nada para contar, ao contrário de alguém que conversa no café da
praceta aqui ao lado. Não se cala e o som indistinto das palavras chega até a
mim. Uma outra voz, a espaços, corta-lhe interrompe e fala. Talvez seja a isto
que se chama conversar, mas não tenho a certeza. É em dias como o de hoje que
me lembro das sábias palavras, já aqui citadas, de Afonso X Se eu houvesse podido aconselhar Deus na
criação – atreveu-se ele a dizer – muitas
coisas teriam sido mais bem ordenadas. Queixo-me do mesmo, de Deus ter
criado as coisas sem me pedir opinião, ainda por cima com evidente propensão
para o igualitarismo mais prosaico, para não dizer rasteiro. Amemos ou odiemos o
calor tórrido, Ele envia-o em doses iguais para todos os que aportaram a esta cidade
esquecida pelo Céu. Consta que não fez o mesmo com o frio, pois a voz do povo
diz que Deus dá o frio conforme o
cobertor. Deveria evitar este recurso à cultura popular. Não abona a meu
favor. Só deveria ter grandes e nobres palavras, como pretendiam os gregos
antigos, que me elevassem e comigo ao leitor. Chega-me um vídeo. O meu neto de
braçadeiras amarelas dentro de água. Quase o invejo, mas tenho de acabar o
texto aqui.
domingo, 5 de julho de 2020
Expelir opiniões que ninguém pediu
Este parece-me um domingo dos antigos, daqueles que só
existiam no tempo imaginado da infância. O calor lança a tenaz sobre os seres
humanos e, enquanto estes esbracejam espavoridos, aperta-os lentamente até
sufocarem. Com a minha inclinação para a hipérbole, estou a dramatizar. As
pessoas, talvez a maioria, folgam com a chegada do tempo abrasador e usam-no
para poder partilhar um pouco dos seus corpos com os espectadores ocasionais. Afinal,
não fui a Lisboa. O alemão amigo do padre Lodo acabou por não vir, retido por
afazeres da mulher, uma espanhola. Não tardará, porém. Fiquei aliviado, pois
ainda não me apetece a capital. Tenho uma série de afazeres que guardei para este
domingo, contrariando o sábio conselho de não guardar para amanhã o que se pode
fazer hoje, dada por um astuto advogado a um camponês, num dos textos do livro
da segunda classe, talvez da terceira. Os livros dessa antiquíssima instrução
primária eram curiosos e deixaram uma legião de saudosos, que vão comprando as sucessivas reedições. Eram de tal maneira
verrumantes da consciência que, aí pela terceira ou quarta classes, pensava que
todos os nossos reis, rainhas e heróis nacionais eram não apenas seres dotados
de uma coragem superior, como de uma sabedoria sem fim e, acima de tudo,
juro-o, autênticos santos, todos com passaporte directo para o céu, sem terem
de passar num controlo de fronteiras nem fazer teste à COVID-19. Portanto, não
havia nenhuma ideologia nem condicionamento das consciência naqueles tempos,
mas estou impedido, enquanto simples narrador, de me meter em assuntos políticos,
e suspeitar que alguns daqueles heróis, se não a maioria, eram pouco dados à
santidade é um assunto perigoso nos dias de hoje. Só o calor teria poder para
destruir as minhas defesas e fazer com que eu me pusesse a expelir opiniões
que, a bem da verdade, ninguém me pediu nem quer saber. Passa do meio-dia, sombras
raquíticas escondem-se debaixo das árvores. Na Sá Carneiro, o trânsito é de um
domingo de Verão anterior ao surto epidémico. Tremo só de pensar que um dia se
dirá no ano vinte antes da pandemia ou o ano cinquenta e seis depois da
pandemia. Hoje o almoço será mais tarde. Tenho tempo para meditar na santidade
de todos aqueles heróis que foram morrer a Alcácer-Quibir, todos tão castos,
mas talvez a castidade ajude pouco em certos assuntos terrenos.
sábado, 4 de julho de 2020
Faltar à verdade
Entrei no café e depois de me sentar tirei a máscara. De
seguida, folheei a imprensa que tinha comprado. Uma columbina trouxe-me café e
o mais que omito para evitar comentários desassisados. Duas mulheres entram,
também elas convidadas de um baile de Carnaval, mas mal se sentam retiram o
disfarce. Fizeram bem, não precisam dele e o estarem a bater à porta dos trinta
apenas sublinha a sorte que a lotaria genética lhes decidiu conceder.
Embrenho-me na leitura das crónicas de uma plumitiva e depois de um plumitivo.
Ambos muito opiniosos, mas será para isso que lhes pagam as avenças. Cumprem o
contrato com palavras perfurantes e ademanes voluntariosos. Se o mundo a eles
tivesse sido entregue viveríamos todos no paraíso, concluo da leitura. De
súbito, percebi o erro que cometo quando evito frequentar espaços públicos. Uma
das minhas vizinhas bafejadas pela hereditariedade diz, numa ira contida, quase
sussurrada, ainda audível, que se ele mentisse ainda era perdoável, agora
faltar à verdade é inadmissível. Não sei quem é o ele, mas fico-lhe grato e a
dever-lhe a revelação mais importante da minha existência. A verdade é um
acontecimento. Uma pessoa pode faltar à verdade como falta ao trabalho, a uma
aula, à missa, a um jogo, ao jantar para que foi convidado, à festa de
aniversário a que não deve faltar. Elas continuam a conversa conspirativa, mas
eu penso sobre o que é mentir, esse mero desacordo entre o que se diz e o que
acontece, e faltar à verdade, uma falta de comparência, não estar no sítio em que
ela marca encontro. Olho a minha vizinha com atenção e achei-a ainda mais bela
e desejável, na roupa leve que a veste e na ira branda que lhe toca o rosto. Ela
levantou uma mão e com os dedos esguios compôs o cabelo, disfarcei o olhar,
fechei o jornal, coloquei a máscara, paguei e saí. Havia gratidão no meu andar
e até ao sol violento que me acolheu saudei como se fora um velho amigo, a quem
se perdoa uma travessura. Tenho de me apressar, a verdade espera-me em casa.
sexta-feira, 3 de julho de 2020
Caminhadas e caminhantes
Tenho de beber água. Foi o primeiro pensamento que me
ocorreu quando me sentei para escrever. Já fiz 6 quilómetros e não bebi
qualquer líquido. Sinto a boca seca e a energia esvai-se, envolvendo-me numa
nuvem sonolenta que, como uma ave de rapina, cai sobre o meu depauperado corpo.
Levantei-me cedo e aprontei-me rapidamente para ir caminhar. Os caminhantes,
uma espécie de penitentes que se flagelam por pecados triviais, diferenciam-se
pelas horas que escolhem para a penitência. Os da manhã querem lavar a alma das
aventuras oníricas que o sono lhes proporcionou. Os do entardecer são
trabalhadores esforçados que, ao mexer as pernas, se aliviam do peso das
responsabilidades. Os da noite são mais secretos e não são evidentes as razões
que os põem a caminho. Evito especular sobre aquilo que os move. Na caminhada
matinal encontrei a Lu. Sempre foi assim que foi conhecida a Lúcia, a irmã mais
velha da Marília do Dirceu. Olá, disse-me ela. Olá, respondi. Temos que lutar
contra o tempo, acrescentou e eu digo que sim, embora sem saber como se luta
contra tempo. Isto foi no instante de nos cruzarmos, depois ainda oiço uma voz
feminina a dizer bom-dia doutora e a voz da Lu a responder bom-dia, mas não
olho para trás e se a conversa continuou não dei por isso. A Lu, quando a
família foi para Brasil, decidiu ficar por cá, estava a acabar os estudos, como
se dizia, e participava com esmero na nova ordem, da qual o resto da família
fugia. Quando li a primeira vez a Antígona, foi sobre ela que construí a imagem
da desventurada heroína grega, só que o Creonte tinha sido deposto e ela não
tinha irmãos para pelejarem por bandos inimigos. A realidade nem sempre acompanha
a perfeição da arte, o que mostra o erro de certo filósofo que derramava
certezas sobre este ser o melhor dos mundos possíveis. Acima escrevi pecados
triviais. Como pude fazer uma coisa dessas? Não há pecados triviais. Podem ser
veniais, aqueles que merecem perdão, mas todos os pecados são extraordinários,
rompem com a ordem, embora uns desordenem mais que outros. Os mais amigos do
caos são pecados capitais aos quais se aplica pena também ela capital, embora a
relação entre uma coisa e outra não seja linear. Continuo com sede e a teologia
não é o meu forte, apesar de a minha rua – uma estranha rua em semicírculo com
nome de jornal local – ser habitada por não poucos anjos, mas também a eles não
lhes interessa a teologia e, por isso, se falam comigo não é sobre esse tipo de
assuntos, embora não deixem de ter uma certa curiosidade por palavras como
lascívia, luxúria, concupiscência, voluptuosidade. Eu tento desviar o assunto,
falo-lhes em pecados capitais como a ira, a avareza, a preguiça, mas elas dizem
que não querem saber disso para nada. Que lhes descreva uma mulher voluptuosa,
uma cena lasciva. Um dia, se a voltar a encontrar, hei-de perguntar à Lu como
se luta contra o tempo. Enquanto isso vou pensar como posso satisfazer o pedido
dos anjos meus vizinhos.
quinta-feira, 2 de julho de 2020
Desaguisados e protozoários
Não sei o que me deu hoje de manhã para pisar a balança. Irritou-se
e devolveu-me o peso em tom de ameaça. Saí de cima dela e ouvi-a rosnar. Se
tornas a pisar-me em dia útil, faço pior. Vai fazer alguma coisa pela vida.
Tentei serená-la com desculpas e promessas de que nada farei para estragar a
bela amizade que nos dias de confinamento – e restaurantes fechados – tinha
nascido entre nós. Não é a melhor coisa do mundo começar o dia com um
desaguisado. Quando me sentei à secretária, entreguei-me a escrever umas
patetices, mas agora estou livre delas e sinto-me aliviado do fígado. Oiço o
som insistente de uma sirene, mas não faço ideia se é fogo, desastre ou crime.
Talvez seja apenas alguém doente que urge levar para o hospital. Talvez seja
outra coisa qualquer, pois desconheço todas as razões que permitem ligar uma
sirene e encher a atmosfera com a angústia implorativa daqueles gritos mecânicos.
No outro dia fiquei a observar um carreiro de formigas, não das pequenas, mas
das outras que se encontram nos campos, mais encorpadas e apessoadas. Marchavam
com disciplina, como se tivessem uma alma militar. Nunca sabemos, na verdade,
que tipo de alma têm seres como os insectos, os pássaros e os protozoários. Não
tenho a certeza, mas julgo que a palavra protozoário foi a única coisa que
retive das lições de ciências naturais. Mesmo a palavra célula tenho dúvidas se
foi lá que a aprendi. Tenho de ir beber café e comer qualquer coisa, de
preferência sem calorias, sem sabor, sem odor, sem prazer.
quarta-feira, 1 de julho de 2020
Bocejo
Bocejo, não porque a realidade seja um tédio, mas porque
tenho sono. Às seis da manhã acordei com sede, o que me tirou da cama. Bebida
água, fiquei a ler, mas já não me lembro o quê. Quando voltei a adormecer fui
acordado pelo despertador. A manhã estava esplêndida, no céu não se prometia
uma invasão de calor e um vento suave refrescava a paisagem, fazendo tremer as
folhas que, mal ele se recolhia, ficavam em sossego, à espera da reverberação
matinal. Ainda não saí de casa, mas também ninguém espera por mim. O telemóvel
está sempre a dar-me informação. Chega ao cúmulo de partilhar comigo quais são
as aplicações que lhe estão a gastar bateria. Se eu quero que ele as feche,
pergunta-me. Ora, ora, se eu fosse fechar as aplicações que me gastam a bateria,
o que seria de mim? Tornei a bocejar, no exacto momento em que se ouviu uma
buzina agastada. O que quererá dizer esta coincidência? Abro a boca na mesma
hora que alguém carrega na buzina. Um acaso, diz-me o anjo benfazejo, não quer
dizer nada. Falso, grita irritado o amigo do capeta. Não há acasos, tudo está
milimetricamente determinado. Encolho os ombros e deixo os anjos a
digladiarem-se sobre questões metafísicas. Estão no território deles e o mais
avisado é não me meter. Vou dormir a sesta.
terça-feira, 30 de junho de 2020
Nada de sedições
Ir às compras é um filme, como agora oiço dizer, talvez
porque se suspeita no acto todo um enredo do qual se espera um desenlace feliz.
Noutros tempos talvez se dissesse é um romance, mas as pessoas só lêem livros
de auto-ajuda, como se quisessem descobrir em si o poder de uma graça que as
salvasse. Os compradores deambulam pela superfície comercial mascarados, mantêm
distâncias, tentam descobrir quem se esconde por detrás de uma máscara, se é
alguém conhecido, um Pierrot ou uma Columbina, se àqueles olhos
corresponderá um rosto adequado, se saberá usá-la, aumentando em muito as
possibilidades especulativas de quem por ali é obrigado a andar. A chegada a
casa também é um filme, mas tão cansativo que ninguém o quererá ver. Hoje
passarei a tarde em videoconferências. A necessidade é uma deusa cruel, à qual
nunca podemos furtar-nos a pagar o tributo. Recebi um email do padre Lodo,
aquele jesuíta de que falei ontem. Padre Lodo é assim que ele é conhecido na
Companhia e entre amigos, mesmo os que são pouco dados ao catolicismo, amigos esses
que ele cultiva com esmero, não sei se com a esperança de os converter. Sempre
é um jesuíta. Quer jantar comigo em Lisboa, para que eu conheça um antigo aluno
dele, um alemão de nome Hans Castorp. Não o esperava tão cedo em Portugal,
ainda ontem não sabia que ele vinha, escreve como se se desculpasse. Que não me
preocupe, ele fala muito bem espanhol e entre português e espanhol haveremos de
nos entender. Eu não me preocupo, mas não me apetece ir a Lisboa, não me
apetece todos estes rituais concebidos por um génio maligno. Pensarei no
assunto. Não vejo as netas há semanas e talvez deva aproveitar a ocasião. Logo
hei-de responder. Os termómetros começam a subir por estes lados. O calor
penetra na pele e sinto-a rasgar, abrir pequenas fendas que se vão dilatando,
para que o corpo se torne uma chaga viva. Se as pessoas não fogem daqui, não
tarda haverá procissões de ulcerados. Recuso-me a fazer de calendário, quero lá
saber que dia da semana ou do mês é hoje. O tempo é um contínuo sem fim e todas
as divisões que lhe inventamos são uma sedição contra a ordem natural do mundo,
a qual, pelo menos hoje, prezo muito. Amanhã, se verá.
segunda-feira, 29 de junho de 2020
Evitar a mentira
Ontem menti quando disse que me sentara à varanda e via
pássaros e anjos a voarem entre telhados. Não que seja infundada a ideia de
haver serafins e querubins pousados no topo dos edifícios da rua onde habito.
Qualquer um dos meus vizinhos, e não são poucos, corroborará o que digo. Anjos,
há-os e não poucas vezes vejo-os a conferenciar ou a deslocarem-se pelos ares
de um edifício para outro. A minha falta à verdade refere-se a estar sentado à
varanda, pois nem sequer estive em casa. Deambulava junto ao mar e foi aí,
quando passeava pela ilha do Baleal, como tantas vezes tenho feito, que
encontrei perto da casa dos jesuítas, um edifício sobre a falésia, excessivo
para o lugar, mas de onde se pode contemplar em sossego o Atlântico, que
encontrei, dizia, alguém que não via há muito, o velho Lodovico Settembrini,
que tantas vezes veio a minha casa. Como o conheci, graças a um padre jesuíta
que foi meu professor na Faculdade de Letras, e de como ele, na juventude um
inflamado iluminista e maçon, se converteu e entrou para a Companhia de Jesus,
talvez fale noutro dia. O mundo está cheio de metamorfoses e aquelas que se
passam no espírito dos homens não são as mais pequenas. Basta enumerar as
transfigurações do meu pensamento, se é que se pode chamar pensamento ao
arrebanhar de meia dúzia de ideias obscuras e mal cosidas, sem lastro
conceptual e esqueleto lógico. Há porém quem prefira dizer que não se trata de
mudanças no pensar, mas a prova de que possuo um carácter volúvel e a
volubilidade não dá boa fama a ninguém. Hoje não falarei do meu amigo jesuíta.
Tenho não poucas coisas práticas para resolver e foi-me dado, apesar da
volubilidade, uma inclinação para levar o dever a sério, como se tivesse sido
educado por pais pietistas, daqueles de extremo rigor como só os havia em
Conisberga, o que não foi o caso. Uma mensagem no telemóvel recorda-me que
esperam um texto que ainda hei-de inventar. Escrever um diário cansa, mais
valia que me dedicasse a apanhar borboletas. Hoje é segunda-feira, dia 29 de
Junho. A Terra continua a ser um planeta do sistema solar. Não faço ideia das
consequências desse facto, mas sinto-me mais tranquilo e conformado com a
realidade tal como é, fazendo a mim próprio a promessa de evitar mentir nestes
textos, mesmo que eles não passem de ficções de um narrador sem nada para
narrar.
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