sábado, 10 de agosto de 2024

Obrigações

Tive de ir à praia. Função de avô. Em tempos, que me parecem muito recuados, tinha prazer nesse ritual da ida à praia. Depois, foi desaparecendo. Nem ritual, nem areia, nem sol, nem água do mar salgado. Uma esplanada com vista para o mar ainda é uma coisa que me dá prazer, pois contemplar a linha do horizonte, onde o oceano e o céu se fundem na ilusão do olhar, abre o espírito à rêverie, a esse sonho acordado onde os mistérios do universo se fundem com os segredos ultramarinos. Devo estar a tornar-me uma pessoa insuportável, se não o era já. Não cultivo nem a praia e os banhos de sol e mar nem a viagem, turística ou outra. Estar onde se está e viajar na sua própria morada é a mais difícil e desafiante das viagens. Voltou-me o gosto pelas hipérboles. De tarde, consegui escapar-me à função da ida à praia, com a desculpa esfarrapada de ter de ir fazer compras, coisas que só eu sei o que são, embora não imagine o quê. É certo que fui olhado com condescendência, mas é coisa que suporto bem. Sobre este narrador, há duas teorias. Uma é que sofre de autismo. Outra é que falhou a vocação de monge eremita. Por mim, aceito qualquer uma. Talvez as duas sejam verdadeiras. Tenho de ir às compras. Um dia cheio de obrigações.

sexta-feira, 9 de agosto de 2024

Mudos e surdos

Não é devido à qualidade da escrita – que é desmesurada – que vou citar Flannery O’Connor, mas por uma motivação lateral à literatura. Quase no início de O Céu é dos Violentos, diz-se O seu tio ensinara-lhe Contas, Leitura, Escrita e História, a começar em Adão expulso do Jardim e seguindo por aí abaixo, passando por todos os presidentes até Herbert Hoover, e avançando especulativamente até à Segunda Vinda de Cristo e ao Dia do Juízo Final. Este tio era profeta e talvez devêssemos olhar para os próprios historiadores como profetas. Fazem profecias sobre o que se passou. O tio profeta não apenas profetizou acerca do futuro – ou do fim do futuro, para ser mais preciso – como profetizou sobre o passado, a história de Adão e a expulsão do paraíso. Dir-se-á que os historiadores, não têm no seu bornal metodológico a profecia, que se atêm aos factos e isso é diferente das especulações sobre o início da humanidade e o fim da mesma humanidade. Ora, o grande problema é que os factos são mudos, não dizem nada, não usam língua gestual ou comunicam através de sinais de fumo ou de maquinetas que usam o código de Morse. Perante a mudez factual, os historiadores, dissimuladamente, sacam, de um compartimento escondido no dito bornal, a profecia e, movidos pelo Espírito Santo, põe-se a profetizar sobre o passado. Isto coloca um problema teológico que me apresto, para ajuda da humanidade, a resolver. O problema é o seguinte: como entender que diversos historiadores, perante os mesmos factos mudos e movidos pelo mesmo Espírito Santo, profetizam coisas diferentes? A explicação é mais simples do que pode parecer. Os diversos historiadores têm graus diferentes acuidade auditiva ou, para ser mais claro, diferentes níveis de surdez. O que é dito é o mesmo a todos, mas cada um ouve o que pode. Este é o meu contributo, sem preço, para deslindar um tomentoso problema teológico e, também, epistemológico. Sobre factos mudos, profetizam historiadores surdos.

quinta-feira, 8 de agosto de 2024

O perigo do ócio

Por vezes, em momentos de ócio mais hiperbólicos, dou comigo a meditar um pensamento trivial sobre a possibilidade de o universo, depois de uma época de contínua expansão, ter um instante de suspensão e, de seguida, começar a contrair-se. O momento de suspensão, um momento desmesurado, se comparado com a escala da vida humana, seria destituído de tempo. Melhor, nele haveria o presente, mas não passado ou futuro. Tudo se suspendia, inclusive o movimento e a duração. Um acidente, porém, recolocava o universo em movimento, mas agora de contracção. Invertia-se o movimento que levara o universo ali, e este fazia o percurso em sentido contrário. Aqui, além do presente, sempre pontual como agora, haveria também passado e futuro, mas em sentido contrário. A certa altura, o universo chegava à configuração em que havia Terra e vida nesta, mas como se vinha do futuro para o passado, os seres vivos vinham da morte. Quem, na época de expansão, tivesse morrido velho, agora começava como velho e ia-se tornando cada vez mais novo, até desaparecer no útero materno, ou, melhor, até ao momento em que a cópula que lhe dera origem acontecia, começando do fim para o princípio com o intuito do óvulo fecundado expelir o espermatozóide fecundador, e este, juntamente com os irmãos falhados, regressar ao sítio de onde tinha partido, embora não seja fácil de conceber como a devolução à origem se daria. Talvez o órgão reprodutivo masculino possuísse, em vez de uma força para a emissão de material genético, uma força de sucção desse material, para o fazer desaparecer. Com tudo isto, se prova que a ociosidade é a mãe de todos os males e que convém manter as mentes sempre ocupadas para que não pensem em coisas destituídas de sentido.

quarta-feira, 7 de agosto de 2024

Um deus caprichoso

Por aqui, o tempo é particularmente volúvel. Altera-se segundo apetites de um deus desconhecido. Se observarmos de perto os deuses gregos e latinos, percebemos, de imediato, que são caprichosos e, também nisso, imitam os homens. Teve de vir de outro lado a ideia de um Deus único, e nessa unicidade esvaiu-se o capricho, a volubilidade, mas também a forma humana. Nesse esvair-se de tudo o que era humano, os seus desígnios tornaram-se insondáveis. O que será mais terrível para o animal humano, esse animal que sabe que vai morrer e tem a capacidade de pensar na imortalidade, a volubilidade dos deuses ou a insondabilidade de Deus? Imagino que tenha sido este dilema que levou Nietzsche, cuja formação não era filosofia, a anunciar que Deus está morto. Eis um modo fácil de se livrar de um dilema. Fácil e rendoso, pois os europeus adoptaram como verdadeira a proclamação daquele que, após algumas obras tonitruantes, enlouqueceu, entrando assim pela morte dentro. A morte de Deus trouxe, porém, um novo politeísmo, tão volúvel quanto o antigo. Os novos deuses são também caprichosos, mas não sabemos quem são. Eu não sei qual é aquele que aqui rege o clima, mas tem uma notável inclinação para a súbita variabilidade.

terça-feira, 6 de agosto de 2024

Um país estrangeiro

Abro um daqueles livros de autores portugueses quase desconhecidos que vou comprando em alfarrabistas. Não para os ler, alguns nem tentarei. Procuro, por vezes, alguma voz desconhecida que se manifeste nas páginas do livro, uma voz que não seja a do autor. Hoje, ao desfolhar, no original, um romance de 1911, de Virgínia de Castro e Almeida, deparei-me com inúmeras anotações a lápis. O romance denomina-se Fé. O anotador ou anotadora do livro, a certa altura, indigna-se: Saúde por salut é um galicismo intolerável. A auctora deixou-se arrastar pela saude [foi assim que a autora grafou a palavra] e fraternidade da Republica. Noutro ponto, perante uma visão imanente e não transcendente do divino, anota: Isto é o velho e sediço pantheismo. Quando uma personagem proclama que Todo o bom catholico deve combater pelo triumpho da sua Egreja!, anota-se: Tambem me parece. Na página 220, surge um extraordinário comentário: Esta scena de amor entre os dois veladores do cadaver do pobre Baby é repelente. Bernardo manifesta-se o (ilegível) sem escrupulos que quer roubar a mulher ao marido e aos filhos para se satisfazer, sem respeitar a camara mortuaria de um anjinho. Gabriella é uma qualquer (ilegível) ridícula do sentimento, a resvalar para cabra. A auctora que compara um beijo lascivo a uma primeira comunhão, ou nunca beijou, ou nunca comungou. Perante a afirmação que considera o cristianismo a religião de inercia ensinando a resignação e a atonia, empurrando a humanidade para o aniquilamento, a reacção é peremptória: Isto tudo já é velho e muito batido e já foi tudo rebatido. Tudo isto é palha, não presta para nada. D’aqui a pouco surge o super homem de Nietzsche. A partir deste ponto, nas últimas cem páginas, não há qualquer anotação, talvez o super-homem não tenha surgido. Apenas, abaixo da data Julho de 1911, que assinala o fim da escrita do romance, surge uma outra anotada a lápis: 13-12-1911. Na capa do livro, porém, encontra-se a sentença final, ainda a lápis: Não presta. Talvez existissem poucos leitores em 1911, o que não será completamente verdade, mas não os podemos acusar de serem passivos. Recorra-se à frase batida de L. P. Hartley: O passado é um país estrangeiro: lá, as coisas são feitas de maneira diferente.

segunda-feira, 5 de agosto de 2024

Narradores cruéis

Sou um narrador pacífico e incapaz de uma narrativa que me eleve. Por vezes, cultivo o riso sobre mim próprio, mas talvez isso seja um truque para esconder a minha impotência narrativa. Há narradores cruéis. Usam as palavras como estiletes. Por exemplo, aquele que narra Os criados estão contratados sob os auspícios da segurança social e perderam muitas das suas fraquezas que Swift tão bem descreveu. São funcionários e não lacaios queixosos e cheios de manhas. Raramente são vistos senão à hora das refeições e ninguém pode dizer que é possível pedir os seus favores nas horas tuteladas pelo sindicato hoteleiro ou coisa assim. Mas têm o mesmo olhar vingativo e sonolento que avalia melhor o hóspede do que um despachante da alfândega faria. Onde está a crueldade? Na anulação do valor do trânsito do mundo que levou certas pessoas de lacaios queixosos e cheios de manhas ao estatuto de funcionário, protegido pela segurança social e pelo sindicato hoteleiro. De que vale ter mudado de estatuto, de deixar de ser lacaio e passar a ser funcionário, se se tem o mesmo olhar vingativo e sonolento? Este é um narrador cruel. Quando o Conde, uma das três personagens que animam os entretiens das Soirées de Saint-Pétersbourg, fala dessa figura tenebrosa do Carrasco, procura nela a grandeza própria, apesar da distância que todos os homens, perante ela, sentem dever manter. Quem leu a autora, percebe de imediato que este narrador cruel só poderia ter sido criado por Agustina Bessa-Luís. Talvez o narrador de Agustina lamente o fim dos lacaios e a magnífica escrita da autora sirva apenas como um requiem de um mundo que acabou, como acabou uma certa casa de família transformada em hotel privado, isto é, em turismo de habitação. Os mundos perdem-se no tempo e não há narrativa que os salve.

domingo, 4 de agosto de 2024

Do reino e do império

Se se ouvir o título A Monarquia do Medo pensa-se de imediato numa série da Netflix, talvez ligada ao tráfico de droga e ao ajuste de contas entre cartéis ou entre a polícia e os traficantes. Contudo, é um belíssimo título de um livro de filosofia, de Martha C. Nussbaum. O título, na verdade, é The Monarchy of Fear – A Philosopher Looks at Our Political Crisis. O livro trata de um assunto que me está vedado, pois eu sou um narrador sem opinião, coisa imposta por um autor despótico. Em vez de A Monarquia do Medo, caso me tivessem perguntado, proporia O Império do Medo. Teria outra ressonância. Numa monarquia do medo, o medo reino sobre os súbditos, mas nem todos os reinos são reinos do medo. Podem ser reinos constitucionais. Num império do medo, aquilo que se escuta é o domínio absoluto do medo sobre aqueles que lhe estão sujeitos. Num império há sempre qualquer coisa de obsessivo, como o cineasta japonês Nagisa Oshima mostrou em Império dos Sentidos, embora seja em Império da Paixão que Oshima torna mais clara a ligação entre império e medo, onde o medo se torna senhor daqueles que lhe vão ficando sujeitos.

sábado, 3 de agosto de 2024

Histórias

O livro foi impresso em 1971, na Sociedade Astória, Ldª, de Lisboa. No talão, que o livreiro devia ter devolvido ao editor, mas que não o fez, constava o preço de 65$00. Contudo, rabiscado a lápis, no canto superior direito da primeira página, estava uma outra informação, que reproduzo: 65/81#50. Imagino que o livreiro terá, com o passar do tempo, adequado o valor de venda do livro. Quando e onde o livro foi vendido não sei. Há, contudo, uma informação na quinta página que mostra que o livro mudou de dono em 1975. Escrita a esferográfica preta está a seguinte informação: Moçâmedes e, debaixo da localidade, a data 4/11/75. Abaixo desta informação encontram-se dois traços grossos feitos a marcador preto que ocultam um nome, imagino que do proprietário original. Uma história possível é que o livro tenha sido comprado em Portugal e o proprietário o tenha levado para Angola, onde o terá cedido a um novo proprietário no dia 4 de Novembro de 1975. Este voltou a Portugal e trouxe com ele o livro. Os herdeiros venderam-no a um alfarrabista, onde o comprei. Contudo, a história pode ser outra. O livro foi vendido em Moçâmedes por 81$50. O proprietário trouxe-o para Portugal e quando ele ou os herdeiros decidiram vendê-lo a um alfarrabista ocultaram o nome, mas deixaram à vista o local e a data de compra. O livro é uma obra de Alejo Carpentier, com o título de O Século das Luzes. Foi traduzido por Alfredo Margarido para as Publicações Europa-América. Serão poucos os que hoje sabem o que foram as Publicações Europa-América e ainda menos quem foi Alfredo Margarido, um intelectual influente naquele tempo. A obra original foi publicada em 1962, o que significa que demorou nove anos a chegar a Portugal. Naquele tempo, tudo era mais vagaroso.

sexta-feira, 2 de agosto de 2024

Apetrechadas de asas

No canto XI, da Odisseia, Homero escreveu: Reconheceu-me a alma de Aquiles de pés velozes, neto de Éaco, / e chorando dirigiu-me palavras apetrechadas de asas. O segundo verso mostra a amargura de Ulisses com a sua sorte. Chora, mas mesmo assim as suas palavras são apetrechadas de asas. Elas não apenas voam, como são elevadas. As palavras voam de uma boca que as proferes para uns ouvidos que as escutam, mas a dimensão volátil talvez seja a menos importante na expressão metafórica usada, pois isso é o que acontece em qualquer situação de comunicação linguística. Ora o que distingue as grandes palavras das pequenas, é a capacidade de umas se elevarem, enquanto as outras voam baixo, um voo raso, perto do chão. Há nos gregos um culto desmedido das grandes palavras, dos discursos elevados, dessa capacidade de as palavras se elevarem, ao sair da boca de quem as profere, e dizerem um mundo que só do alto se observa: Filho de Laertes, criado por Zeus, Odisseu de mil ardis, / homem duro! Que coisa ainda maior irás congeminar? / Como ousaste descer até ao Hades, onde moram os mortos /sem entendimento, fantasmas de mortais estafados? A citação parece contrariar esta ideia de as palavras se elevarem. Ora, Aquiles fala dos mortos que não possuem entendimento, fantasmas de mortais estafados. Ao fazê-lo, ele que está morto e habita o Hades, exceptua-se dessa condição e pelas suas palavras mostra possuir entendimento. São as suas palavras que, ao elevarem-se, o raptam da condição da mortalidade dos homens comuns. Não é a velocidade dos seus pés ou a coragem no campo de batalha que o elevam, são as palavras que, ao erguerem-se e voarem para Ulisses, o erguem acima da condição mortal de todos os mortos.

quinta-feira, 1 de agosto de 2024

Aleijados

Em Sombra, o último livro de poemas de Maria Andresen, há dois poemas com referências ao último filme de Ingmar Bergman, Saraband. Em ambos surge Henrik, filho de Johan, mas não é referido o conflito intenso entre pai e filho. Há um momento, após uma tentativa falhada de suicídio de Henrik, em que este procura o pai e este diz-lhe que nem aquilo (o suicídio) foi capaz de realizar. Maria Andresen prefere a constatação de Henrik … sinto uma dor / constante, / sou um aleijado. O filme centra-se na relação de Johan (Erland Josephon) com Marianne (Liv Ullmann). Discute-se se Saraband é ou não uma continuação de Cenas da Vida Conjugal. Bergman defendeu que não. Ele é o autor, mas, como qualquer autor, a sua interpretação da obra vale tanto quanto qualquer outra, pois aquilo que está em causa não são as intenções que presidiram ao filme, mas o próprio filme. Voltando atrás, se o filme se centra na relação, após 30 anos de separação, entre Johan e Marianne, a tensão entre pai e filho é obsidiante. Que ilusões um pai alimentou acerca de um filho para que tamanho ódio nasce dentro dele? Talvez o pai fosse um aleijado e procurasse no filho o ser saudável que não era. Por aqui, está um começo de Agosto nublado e fresco. Julho entrou na vasta terra do nada. Fê-lo em silêncio, e o silêncio é toda a dignidade que resta a quem abandona a existência para entrar ali onde nada é ou sequer parece ser.

quarta-feira, 31 de julho de 2024

Preocupação

Estou quase preocupado comigo. Imagino que seja um efeito estival, mas dei por mim a comprar livros de ficção científica. Isaac Azimov, Robert Heinlein, Philip Dick, Ursula Le Guin, Frank Herbert, Ray Bradbury. O ano passado, por esta altura, comprei e li uma série de aventuras de Arsène Lupin, da autoria de Maurice Leblanc. Passado o tempo quente, e ainda durante ele, voltei à literatura não adjectivada e a outras leituras mais sérias. A minha preocupação centra-se na interpretação destas inclinações. Será que estou a regredir e não tardará estarei a ler a Enid Blyton? Depois, serão as aventuras, em banda desenhada, de Texas Jack e do Major Alvega, para descer, de seguida, às adaptações infantis das aventuras do Pinóquio? É evidente que, para me proteger de mim mesmo, tenho na secretária, bem à minha vista, a Teoría de la Constitución, de Carl Schmitt, e os Discursos à Nação Alemã, de Johann Gottlieb Fichte. Mais de um século separam estas obras, mas não será inútil para compreender muito do que se passa neste mundo – e talvez fora dele, quem sabe – dar alguma atenção aos autores e a estas obras, em particular. Se, por vezes, a coisa se mostrar um pouco árida, abre-se um romance de ficção científica, deixa-se este mundo, e entra-se noutros mundos possíveis, piores do que este, por certo, mas que nos aliviam do peso que este tem em si.

terça-feira, 30 de julho de 2024

Uma doença nos olhos

Uma senhora milanesa escrevia – por certo, desesperada – a 28 de Setembro de 1938, numa carta a Benito Mussolini, o seguinte: É impossível que uma mente divina, sobrenatural, como a vossa não consiga encontrar uma solução pacífica para o desentendimento. A segunda grande guerra estava à porta e a aflição explica a hipérbole na consideração da mente do Duce. Há, ainda uma outra coisa. A pobre senhora não percebia que quando alguém, num lugar de poder, julga que possui uma mente divina, sobrenatural, então os homens podem esperar o pior. E o pior é a guerra. O homem comum que reconhece as suas limitações, quando está no poder é prudente. Contudo, outro homem comum, mas sem sentido das suas limitações, perde a prudência e alimentado pela húbris arrasta os outros para o inferno. São inúmeras as cartas de mulheres que, naquele Setembro de 1938, incensando o ditador italiano, pedem com ardor maternal que ele salve o país da guerra. Elas não percebiam que estavam a pedir ao diabo para acabar com o inferno. Isso acontece não poucas vezes na vida dos homens e não apenas em assuntos ligados ao poder. Quantas vezes as vítimas vêem no algoz um salvador? Que doença distorcerá o olhar dos seres humanos para que tão mal saibam julgar aquilo com que lidam? E isto não é uma questão de educação, de acréscimo no ciclo de estudos ou de colecção de diplomas. Talvez seja um problema de oftalmologia, uma doença nos olhos. À falta de melhor, esta parece uma boa explicação.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

Contra a realidade

Está uma segunda-feira de sonolência, tecida no nublado dos céus e no calor que teima em descer sobre a Terra, sem que o vento decida intervir para restabelecer a temperatura. O ideal seria uma tempestade. Chuva abundante, raios e coriscos, mas a realidade nunca está pelos ajustes e as excepcionais ideias que me ocorrem são desperdiçadas, sem sequer existir uma explicação. Por isto se percebe que a realidade não pertence a um tempo em que o espírito crítico reina. Está, essa realidade, em desacordo com as minhas ideias? Muito bem, mas tem a obrigação de dizer as razões desse desacordo. A realidade tem uma índole inclinada para o absolutismo. Ignora essa coisa de dar explicações, como se fosse uma rainha absoluta, que aliasse a uma beleza imaculada a frieza do mais insensível dos entes que povoam este universo. Faz o que quer porque pode e o poder é a única explicação para as suas decisões. Muito bem andaria essa realidade que se nega, sem explicação, em realizar as minhas mais elevadas cogitações em ler o que o senhor Immanuel Kant escreveu, no ano de 1781, no prefácio à primeira edição da Crítica da Razão Pura: A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A religião, pela sua santidade, e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente subtrair-se a ela. Mas então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar o seu livre e público exame. Assim como a religião e a legislação, também a realidade não quer submeter-se ao livre e público exame das razões que a assistem quando nega as minhas pretensões e ignora as ideias brilhantes que me ocorrem para salvação do mundo. Não apenas a realidade suscita justificadas suspeitas, como cria a certeza de que não está interessada na salvação do mundo. Agora, dito o que disse, posso continuar a minha sesta, neste dia sonolento, sem tempestades, nem raios e coriscos. Bocejo, é o que a realidade me permite, ela que se recusa a ler Kant, sabe-se lá a razão.

domingo, 28 de julho de 2024

Confiar

Nunca tinha lido e comecei ontem a ler o meu conterrâneo Claudio Magris, disse-me hoje, ao telemóvel, o padre Lodo. É brilhante, ouvi. Concordei de boa vontade. Logo no começo de Danúbio, perante a possibilidade de uma exposição sobre A arquitectura da viagem: história e utopia dos hotéis, ele – referia-se a Magris – escreve O projecto junto – redigido por professores das universidades de Tübingen e de Pádua, articulado segundo uma rigorosa lógica e acompanhado de bibliografia – quer levar à ordem inexorável do tratado a imprevisibilidade da viagem, a confusão e a dispersão dos caminhos, o acaso das paragens, a incerteza das noites, a assimetria de todos os trajecto. Isto é notável, exclamou o padre, pois fala da essência da vida. Não o sabia um essencialista, comentei. Devia, pelo menos, ter desconfiado, respondeu-me. Seja como for, continuou, e Magris nota-o de seguida, a existência é uma viagem, uma peregrinação. Sim, disse eu, uma peregrinatio ad loca infecta. Continua a desconfiar da bondade divina, devolveu-me. Não tanto da vontade divina, mas da qualidade dos materiais do mundo, a começar pelos humanos. Esse cepticismo não lhe faz bem, avisou-me. O cepticismo, caso não seja doentiamente pirrónico, é um modo de estar alerta. Há que desconfiar. Pois, respondeu-me o meu amigo, está enganado. Há que confiar. A confiança é fundamental. Voltei à citação de Magris e chamei-lhe a atenção de que o comentário do autor reflecte uma desconfiança estrutural no projecto académico, desconfia da redução do borbulhar existencial à arquitectura de um tratado ou mesmo à ponderada organização de uma exposição. É verdade, mas ele fá-lo porque confia mais no borbulhar da existência. Talvez tenha a esperança, acrescentei eu, que Leibniz tivesse razão ao afirmar que este é o melhor dos mundos possíveis. O padre riu e acrescentou que em breve estará por aqui, onde me encontro, e que no melhor dos mundos possíveis está aquela brasserie junto ao mar, uma das melhores mesas deste país. Para que dia marco o jantar, perguntei.

sexta-feira, 26 de julho de 2024

Jogos

Leio, num livro que não vem ao caso, a frase Não foi o homem que inventou o jogo. E esperei de imediato uma revelação extraordinária. Porém, apenas tive direito a uma citação de Schiller, é o jogo, e apenas o jogo, que torna o homem completo. Há coisas piores do que citações de Schiller, claro. Eu preferiria, contudo, uma continuação mais ousada, como afirmar foi o jogo que inventou o homem. Embora se saiba que não é possível encontrar uma essência – isto é, uma característica comum – partilhada por todos os jogos, essência cuja presença nos anunciaria de imediato estarmos perante um jogo, podemos afirmar que um elemento essencial dos jogos é o acaso. Ora aquilo que nós somos, as nossas características físicas e, possivelmente, não só, recebemo-las através da chamada lotaria genética. O espermatozóide paterno que fecundou o óvulo materno, por acaso disponível, foi aquele, mas poderia ter sido outro. Se assim fosse, já não teríamos vindo à existência, mas um outro cuja existência lhe pareceria tão natural como a nossa nos parece. Se isto é assim quanto aos indivíduos, talvez ainda seja mais quanto às espécies. Há aquela história darwiniana da evolução para adaptação ao meio. Parece fornecer uma regra, mas, na verdade, não elimina o acaso. O caminho adaptativo foi este, mas é plausível pensar que poderia ter sido outro, um caminho, por exemplo, que tivesse poupado a Terra à presença de uma espécie como a nossa. Imaginemos o futebol. A princípio um conjunto de seres humanos brincam com uma bola, correm, chutam, agarram-na, tudo de um modo caótico. Depois, lentamente, começam a introduzir regras. A ideia é eliminar o caos original, embora o acaso, por mais regulado por leis do jogo e tácticas competitivas que esteja, nunca desaparecerá. O mesmo acontece com cada um de nós e com a espécie a que pertencemos. Somos fruto desse acaso e este não é mais do que o jogo que a natureza joga consigo mesma. O jogo só torna o homem completo, como pensava Schiller, porque nós somos uma invenção do jogo. No fundo de nós, por mais que lutemos contra isso, existe um princípio de arbitrariedade. Antigamente, um homem de carácter era aquele que aparentava ter eliminado de si essa arbitrariedade originária, o que mostra que as antigas modas educacionais estavam assentes em puras aparências.

quinta-feira, 25 de julho de 2024

Traduções

A Áustria foi, no final do século XIX e no início do XX, um vespeiro de grandes escritores. Eis uma metáfora de péssimo gosto, como se os grandes escritores austríacos fossem vespas ou pessoas traiçoeiras e de má índole. Imagino, todavia, que um grande escritor austríaco posterior, Thomas Bernhard, não desdenharia da metáfora, aplicada não aos grandes escritores, mas aos austríacos em geral. Bernhard sofria dos pulmões, chegou a viver em Portugal por causa disso, mas sofria ainda mais pela a natureza da sociedade austríaca, que ele via composta por nazis dissimulados pelo catolicismo e a social-democracia. Não era de Bernhard que queria falar, mas de um poeta, um grande poeta que morreu jovem, aos 27 anos, de overdose de cocaína. Georg Trakl. Há uma tradução de poemas seus, mas que desconhecia até há pouco. Hoje, mergulhado na ociosidade, decidi fazer experiências e, usando o DeepL, o ChatGPT e um dicionário alemão-português, traduzir alguns poemas, entre eles o ciclo de A Jovem Criada (Die junge Magd). A experiência não me desagradou e, confirmei, o decisivo não é a tecnologia usada, mas a experiência pessoal, no caso a experiência de leitor de poesia, de quem a usa. Nos poemas assim lidos, consegui aproximar-me – tenho essa ilusão – da atmosfera poética que se desprende da obra de Trakl, talvez mais do que se os lesse na tradução portuguesa publicada. A razão é simples. Fui obrigado a reconstruir as traduções, sempre diferentes, que o tradutor automático e o chatbot ofereciam. Quando se está perante um texto traduzido por um ser humano e publicado em livro há uma tentação de conformismo perante o que está apresentado, o que gera uma leitura passiva, ao contrário daquela que me senti obrigado a fazer. Um dia, os dispositivos de tradução substituirão com vantagem o tradutor humano, porque terão mais capacidade, e mais velocidade, para apreender o espírito de uma obra do que um ser humano, mesmo especialista, e vertê-lo, ao espírito da obra, para outro idioma. Esse dia, imagino, ainda estará longe, mas a cada dia que passa estou menos certo dessa lonjura.

quarta-feira, 24 de julho de 2024

A génese

Por vezes, talvez não poucas, perpassam em mim pensamentos completamente parvos. Ao deparar-me com a data de hoje, 24 de Julho, pensei que coisa tão estranha haver um dia com nome de uma avenida de Lisboa. Este pensamento, porém, é mais aceitável do que pensar que existe um dia com o nome de uma praça, a praça 5 de Outubro, por exemplo. O 5 de Outubro ainda se vai sabendo as razões de haver ruas e praças com o seu nome, mas o 24 de Julho é mais associado a uma certa vida nocturna de há tempos. Contudo, foi a 24 de Julho que as tropas liberais, depois de derrotarem as miguelistas na Cova da Piedade, entraram em Lisboa. Daí haver uma avenida com esse nome na capital, que era absolutista e se tornou liberal. Imagino que não exista uma 24 de Julho no Porto ou em Aveiro. Mesmo em Coimbra ou Setúbal seria uma anormalidade. Contudo, como estamos em Portugal, podemos esperar toda a espécie de anormalidades, pois não nos falta talento para o anormal. Por exemplo, o meu talento para a anormalidade consiste em ter pensamentos parvos, isto é, não apenas insignificantes, mas também pequenos. A explicação deste texto reside nas temperaturas assombrosas que tive de suportar neste 24 de Julho. Os graus são tantos que começaram a infiltrar-se no corpo, passaram para a corrente sanguínea e quando chegara, há pouco, ao cérebro transformaram-se neste texto. Eis a génese da coisa.

terça-feira, 23 de julho de 2024

Tudo tem um tempo

Retenhamos a abertura de Vida à Venda, de Yukio Mishima. Quando Hanio recuperou a consciência, tudo resplandecia à sua volta com um brilho tão intenso que pensou estar no céu. Mas sentia uma forte dor na zona da nuca. E não é possível ter dores de cabeça no céu. É o último período que me atormenta. Mesmo numa obra de ficção, será ultrapassar os limites da experiência possível e fazer afirmações peremptórias sobre lugares onde nunca se esteve. Deixemos de lado a questão de saber se existe ou não um céu. Imaginemos que existe, mas o seu acesso é só possível acabada a vida por aqui. Aceitemos, pois essa é a melhor explicação, que aqueles que chegam ao céu, jamais voltam aqui para contar a realidade do além. Ora, como podemos afirmar que não é possível ter dores de cabeça no céu? Um argumento seria afirmar que no céu não se tem corpo, o que implica não ter cabeça. Depois, conclui-se que não pode doer aquilo que não se tem. Contudo, este argumento esbarra na experiência trivial das pessoas que sofreram amputações de membros, as quais continuam a queixar-se, muito tempo depois, de dores no membro que não têm. Isto abre uma janela para a compreensão da morte. Morrer seria uma amputação global do corpo. Se assim é, então, mesmo no céu, pode-se ter dor de cabeça, de barriga, de peito e até de cotovelo. Esta, todavia, por simbolizar a inveja, pode não ser muito bem vista no paraíso celeste e, talvez, não seja conveniente levá-la para lá. Retornando a Hanio, Mishima diz-nos que ele, ao sentir dor de cabeça, percebeu que falhara a sua tentativa de suicídio. São coisas que acontecem. As pessoas querem apressar a amputação do corpo e, na precipitação, falham. Não perceberam uma questão essencial da vida fora do paraíso. Tudo tem um tempo.

segunda-feira, 22 de julho de 2024

Prazo de validade

Precisava de um medicamento para tomar ao jantar. Fui à farmácia e decidi trazer dois. Cheguei a casa e descobri que nenhum deles era o que estava em falta. Nas manipulações da receita electrónica, no vai e vem do pin de acesso e do pin de opção, na multiplicação de receitas que se acumulam na aplicação, lá troquei um Olmesartan medoxomilo por um Hidroclorotiazida + Amilorida. A coisa podia ser pior, caso tivesse trocado o meu nome por outro qualquer ou me tivesse esquecido do número de contribuinte, baptizado há muito pelo pomposo nome de número de identificação fiscal. O truque é interessante. Passei de contribuinte para alguém com identidade fiscal. Este upgrade na relação com o Estado não foi acompanhado, porém, com um upgrade do meu hardware neuronal e ainda menos pela afinação das competências do software intelectual. Pelo contrário. Isto não é tudo na saga da decadência deste narrador sem narrativa. Desde há dois dias que um mistério vinha a assolar a minha relação com o computador. Do nada, onde quer que escrevesse, começavam a aparecer sequências de pontos finais. Querem ver que fui atacado por um vírus, pensei. Fiz pesquisa, mas não colhi informações sobre um vírus em forma de sequências de pontos finais. Reinicio o computador, mudo de browser, faço isto e aquilo. Por vezes, parece que a coisa pára, mas, quando menos espero, lá voltam as sequências de pontos finais. Tenho de comprar um novo teclado, pensei. Deve haver um problema com a tecla onde se encontra o ponto final. De aparência, porém, parecia de boa saúde. Até que se me fez luz. Tinha colocado uma série de coisas em cima do portátil e como o tenho ligado a um monitor e a um teclado, não me apercebia que essas coisas, em cima daquela espécie de tapete que serve de rato, me estavam a enviar sinais. Que as tirasse dali, guinchavam em forma de pontos. Com o hardware e o software pessoais desactualizados, levei mais de dois dias a compreender uma coisa básica. Isto é muito pior do que trocar o Olmesartan pela Hidroclorotiazida. Um dia destes tenho de verificar o prazo de validade, o meu, claro.

domingo, 21 de julho de 2024

Grande literatura

Samuel Johnson, o Dr. Johnson que terá dito, mas não escrito, o patriotismo é o último refúgio dos canalhas, escreveu inúmeros ensaios, merecedores de leitura, daquela leitura que se faz por prazer e não por dever. O ensaio não é, por norma considerado, como uma das manifestações mais elevadas da literatura, se comparado com a poesia, o teatro ou, a partir dos tempos modernos, o romance. Isso, porém, é um erro. Samuel Johnson, no ensaio Melindre e Rabugice escreve Quando a velhice ou a solidão amargam o espírito das mulheres, a sua malevolência normalmente é exercida numa supervisão rigorosa e odiosa de insignificâncias domésticas. Depois de exemplificar com a conduta de Eriphile ao longo de vinte anos, prossegue escrevendo Ela vive unicamente para manter em ordem a casa e o jardim, não sente nenhuma inclinação para o prazer, nem nenhuma aspiração à virtude, enquanto está absorvida na grande tarefa de conservar a gravilha sem erva e o rodapé sem pó. Perante o grande drama de encontrar o que ler durante as férias deste infausto, caso o seja, ano de 2024, há uma solução. Ler os Ensaios sobre a Virtude & a Felicidade, de Samuel Johnson, publicados pela E-Primatur em Junho deste ano, seleccionados e traduzidos por Pedro Galvão, professor na Faculdade Letras de Lisboa, no departamento de Filosofia. O primeiro ensaio tem por título Esperança Vã. Começa com uma observação pertinente: Túlio observou há muito que nenhum homem, por mais enfraquecido que esteja pelo tempo que já viveu, está ciente da sua própria decrepitude a ponto de supor que poderá não conservar o seu lugar no mundo por mais um ano. E o ensaio discorre sobre o tema por pouco mais de cinco páginas, dando lugar a um novo ensaio, também de curta dimensão e de grande talento. Não se trata de Filosofia, mas de grande literatura.