Foram-se embora há pouco. Refiro-me às netas, que, durante dois dias, encheram a casa. Agora, tudo está mais vazio e o silêncio que se sente não é benévolo ou inspirador, mas a marca de uma ausência. Depois, tudo vai voltar ao que estava, pois o hábito é uma segunda natureza, e a estadia delas é um rasgão no hábito, uma cesura na segunda natureza, por onde, durantes um instante, é possível recordar uma primeira natureza, mais inquieta e mais irrequieta. O domingo está a caminho do fim, e o horizonte é já o dos dias úteis, embora a utilidade esteja por provar. É nestes momentos, aqueles que antecedem o crepúsculo, que o espírito se abre para uma sabedoria estranha a nós, ocidentais, que andamos desde o século XV a correr atrás de qualquer coisa que nunca sabemos o que é, pois quando pensamos tê-la encontrado, logo descobrimos que há uma outra que vem depois dessa e que é preciso, com urgência, alcançar. Talvez, o problema seja bastante anterior, resida mesmo nos gregos. Aristóteles dividia as ciências entre teóricas e práticas. As primeiras ligavam-se ao conhecimento; as segundas, à acção. Entre estas encontrava-se a Política. Se comprarmos essa tradição com a chinesa, percebemos uma diferença notável. O ideal do soberano não é a acção, mas a não acção. Melhor, o agir não-agindo, a não interferência. Toda a interferência através da acção é já o sinal de uma patologia. É possível que na tradição ocidental também tenha havido um momento em que a acção pela não acção era sinal de sabedoria e forma de ordenar o corpo social, mas ter-se-á perdido. Perdido não apenas na prática quotidiana, mas também na memória. O filósofo alemão, Martin Heidegger, terá vislumbrado essa perda, ao dizer que a filosofia ocidental representa, desde Platão e Aristóteles, um esquecimento do problema do ser. Nesse esquecimento, estará também o esquecimento do agir não-agindo, essa forma suprema de governação de uma comunidade. Coisa que o próprio filósofo não compreendeu ao comprometer-se politicamente com quem se comprometeu, gente pouco recomendável e que fez da acção repugnante a sua forma de estar. Isso, porém, não são contas deste rosário.
domingo, 9 de fevereiro de 2025
sábado, 8 de fevereiro de 2025
Problemas respiratórios
Talvez me devesse tornar um narrador com uma clara orientação sobre as coisas deste mundo. Isso, mesmo que em desacordo com o autor. E qual seria essa orientação? Por certo, seria a de um narrador arcaico aprisionado numa sabedoria antiga, como aquela que se manifesta nas palavras de um xamã, o xamã Pualuna, ao geógrafo e explorador das regiões polares, Jean Malurie: Os inuítes (…) compreenderam que os seres vivos estão interligados e são interdependentes. Nada nos preocupa mais, a nós, inuítes, do que interferir nesta ordem natural. Integremo-nos, pois, respeitosamente nela, sem alterar o seu curso (…). Tudo é respiração. Em resumo, a interdependência de todos os seres vivos, a integração na ordem natural e a ideia de que tudo é respiração, esse movimento cíclico de inspiração e de expiração, entre as quais se intrometem duas pausas. Ora, esta é a ordem natural. Uma inspiração, uma pausa, uma expiração, uma pausa, e assim até ao fim dos tempos. O problema dos nossos dias, aquele que está no fundamento de todos os nossos problemas, é de que inspiração e expiração decidiram entrar em competição, para ver qual delas é dominante. A primeira consequência dessa deriva competitiva é a eliminação das pausas no processo respiratório do mundo. Eliminadas as pausas que separavam e continham nos limites o inspirar e o expirar, estes entraram em guerra. Atropelam-se, tentam conquista o espaço do outro, sonham em eliminá-lo. Ora, isto é péssimo para a respiração do mundo. E se o mundo respira mal, então os homens respiram pior. Daí as epidemias respiratórias. Como narrador, deveria orientar as narrativas que faço neste espaço para a defesa de uma respiração saudável, isto é, tornar-me um inuíte e usar uma daquelas belíssimas máscaras de madeira que é a sua marca. Uma vez por outra, trocaria a máscara inuíte por uma dos caretos de Podence e tornar-me-ia um inuíte lusitano, um xamã de uma tribo perdida, que se manifesta ora aqui, ora ali, ao sabor da respiração. O problema, porém, é que não passo de uma construção de um autor que nada tem de inuíte e não se compraz com caretos, mesmo no Carnaval. Quero dizer: um ser infeliz preso à crendice moderna, alguém que respira desordenadamente, com a inspiração e a expiração trocadas; pois, quando expira o ar entra-lhe para os pulmões e quando inspira, sai-lhe pelas narinas.
sexta-feira, 7 de fevereiro de 2025
Um tempo excepcional
Talvez vivamos tempos excepcionais. É possível que todos os seres humanos pensem assim. O tempo de cada um é, para ele, excepcional, pois é uma excepção do não tempo infinito que lhe caberá. Não estava, porém, a referir-me a essa excepcionalidade, mas a uma outra. Consideremos a afirmação de Aristóteles, na Ética a Nicómaco 1127a29: Nela mesma, a falsidade é uma coisa baixa e repreensível, e a sinceridade uma coisa nobre e digna de elogio. A excepcionalidade do nosso tempo não deriva de a falsidade ter um grande mercado, enquanto o da sinceridade é reduzido. Plausivelmente, sempre terá sido assim. A questão é outra. Trata-se da inversão das avaliações. Parece que vivemos numa época em que a falsidade é vista como coisa nobre e digna de elogio, enquanto a sinceridade é uma coisa baixa e repreensível. A vitória da falsidade sobre a sinceridade não está na sua maior presença, mas no facto de se ter tornado o valor considerado bom por excelência. É o triunfo da comédia – a representação das acções dos homens vulgares ou baixos – sobre a tragédia – a representação da acção dos homens nobres. Quando se ouve a expressão pós-verdade, sabe-se de imediato que se está no tempo da comédia, onde o baixo e repreensível não apenas se tornaram dominantes, como se arvoram em coisas dignas e nobres. Não admira a quantidade de bufões que superintendem os destinos humanos, ou que se candidatam a superintendê-los. Uma certa inocência poderá pensar que será melhor viver num mundo cómico do que num mundo trágico, valerá mais ter razões para rir do que para ter piedade. Essa inocência esquece que os comediantes-em-chefe têm uma tentação irresistível para lançar fogo ao mundo, enquanto riem. A tarde de sexta-feira está a correr apressada para os braços frios da noite. Talvez seja isso que me tenha levado a este texto tão chato quanto o preâmbulo de um decreto-lei, se é que os decretos-leis têm preâmbulos. O processador de texto que uso é um insuportável fiel da doutrina da linguagem correcta. Sublinhou-me a palavra chato. Não vou discutir com ele. Chatice e chato eram palavras inutilizáveis, mas foram adoptadas na linguem mais nobre, um fenómeno semelhante ao da elevação da falsidade à dignidade e à nobreza. Estão de acordo com o espírito do tempo. Uma chatice. Ou uma maçada, se seguir a indicação do processador.
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2025
O cérebro e o like
Por vezes, pomo-nos a pensar sobre coisas que o melhor seria nem ter notícias delas. Não me refiro a grandes catástrofes ou à maldade contumaz da humanidade. Trata-se, antes, de coisas que são irresolúveis. E, como se costuma dizer, o que não tem resolução, resolvido está. É a resolução pela não resolução. Estou a afastar-me do assunto. Baruch Espinosa escreveu coisas notáveis. Também escreveu que todo o homem é, por direito natural e inalienável, o senhor dos seus próprios pensamentos. Até aqui não parece haver nada de extraordinário, embora se pudesse questionar se os pensamentos de alguém são próprios ou se se apropriou de pensamentos de outros que andassem à solta e os tomou como seus. O interessante é o que vem a seguir: cada qual segue o seu próprio parecer e que a diferença entre os seus cérebros é tão variada como a diferença entre os seus gostos. É aqui que comecei, como um velho amante de coisas inúteis e despojadas de sentido, a perguntar-me se a variação dos cérebros é causa da variação dos gostos ou, pelo contrário, a variação dos cérebros foi o resultado da variação dos gostos. Prefiro – pelo menos hoje, amanhã logo verei – a última solução. Os cérebros variam em função do gosto. Quanto pior o gosto de uma pessoa, menos o cérebro se desenvolve. Quanto mais bom gosto tem uma pessoa, mais o seu cérebro se diferencia e complexifica. Tenho razões que justificam a minha escolha. Observemos aquilo que move as redes sociais. O fuel que lhes dá vida é o gosto, conhecido também por like. O importante não é o que se pensa, mas o que se gosta. As pessoas não colocam likes nas redes sociais em função do cérebro que têm, mas o cérebro que têm é o produto dos likes que semeiam. O que me parece uma péssima notícia para a espécie humana, pois é um sinal de que os cérebros humanos se vão encolher cada vez mais até chegar ao tamanho de uma ervilha ou, no melhor dos casos, de uma fava.
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025
Autoficção
Nestes dias, quando ando mais cansado, sou acometido pela dolorosa questão de falta de assunto. Não há nada mais triste do que um narrador sem objecto para narrar. É então que deslizo para aqueles textos insuportáveis sobre teoria literária, coisa de que pouco sei e de que pouco quero saber. Hoje, mais uma vez, caído no pântano de não ter nada para dizer, fui atingido por uma questão que se inscreve nesse campo que desdenho. Poderão estes textos ser exercícios de autoficção? Depois, acalmei-me. Na autoficção, o autor não esconde a sua identidade, embora manipule os factos. Ora, aqui está uma consideração que me liberta do peso de ser um autoficcionista, um infeliz epígono da Annie Ernaux, de quem nunca li uma linha, e de Karl Ove Knausgård, de quem li as linhas suficientes para completar os dois primeiros romances de A Minha Luta. O autor deste blogue não apenas esconde a sua identidade, como esconde a minha, a do narrador: nunca há a certeza – nem nele, nem em mim – se coincidem ou não. É verdade que, muitas vezes, os factos são manipulados, mas isso não faz do autor um autoficcionista, apenas um mentiroso. Por exemplo, hoje tive uma longa conversa telefónica com o padre Lodo, o meu velho amigo Lodovico Settembrini. Falámos de pessoas conhecidas e, fundamentalmente, de restaurantes e encontros de amigos, coisa que ele, apesar de membro da Sociedade de Jesus, não dispensa. Disse-me uma coisa que me fez rir. Parece, disse-me, que o Leo Naphta, vem a Portugal. Não tenho paciência para o aturar. Nunca tive. Eu ri-me e perguntei-lhe pela caridade cristã. Até a caridade cristã tem limites. O Naphta não cheira a nafta – continuou. Tem um odor sulfuroso, asseverou. Recordei-lhe que não lhe competia fazer julgamentos, ainda menos dessa amplitude. Então, mudou de assunto e informou-me que estava a ler um romance de uma autora de autoficção, mas que iria parar. Tinha menos paciência para ela do que para o seu inimigo – interpretação minha, não palavras dele – Leo Naphta. Foi o padre Lodo que me salvou do pântano em que a minha imaginação soçobrava e me abriu o caminho para a autoficção. Combinámos almoçar no sábado. Com o tresmalhado do Naphta, claro.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2025
Diálogos morais
Antes que a tarde chegasse à fase crepuscular, fui caminhar. Os últimos tempos não têm sido propícios para o exercício, mas hoje inflecti a tendência e retomei a prática. Isto, porém, não passa de uma mera expectativa, ainda por cima fundada num desejo que já quase não deseja. Sim, pôr-me a caminhar exige de mim um certo esforço para me arrancar da cadeira onde estou sentado e da casa onde me acolho. Há quem tenha prazer em caminhar. Eu não o tenho. Faço-o, quando faço, por dever. Kant se me lesse, torceria de imediato o nariz, um nariz adaptado para torções, diga-se, e diria que não cumpro o dever de caminhar por amor ao dever, mas motivado por um interesse egoísta: a esperança de que o acto de andar a calcorrear ruas me evite uma presença mais assídua nas salas de espera dos consultórios médicos. Uma acção conforme ao dever, mas não feita por dever, diria ele. Eu retorquiria que queria que ele fosse dar uma volta à rotunda do relógio, ele que era tão metódico nas suas caminhadas que as pessoas acertavam os relógios pela sua passagem. Ele haveria de se rir da minha resposta e responderia, para me tranquilizar a consciência, que estava a brincar; a minha caminhada tem um real valor moral, juraria. Se tudo em mim me impele a ficar sentado e mesmo assim vou caminhar para preservar a saúde, então caminhar não é um acto egoísta. E, com o seu ar de professor prussiano, acrescentaria: a caminhada tem valor moral pois visa aliviar os outros de um eventual peso que eu lhes possa causar por não me cuidar e cair nas garras da doença. Esta conversa com Kant indignou-me. Estou a falar a sério. Então, não é que ele acha que é sempre moralmente incorrecto mentir e não se privou, na primeira avaliação que fez da minha caminhada, de me pregar uma mentira, retirando valor moral àquilo que o tinha? Também um filósofo chega à fase crepuscular: em vez de trazer a luz, traz a sombria sombra.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2025
Futebol, inocência e mito
Na Electra de Inverno de 2024, há um artigo, A minha Moscovo, de Yuri Slezkine, um historiador americano, nascido russo. A certa altura diz: Uma das coisas que mais me impressionaram durante a infância foi ver o Eusébio a jogar o mundial de 1966. Fui ver a idade de Slezkine. Nascemos no mesmo ano e partilhamos uma mesma experiência do reino do futebol. Para mim, essa experiência foi de tal maneira marcante que o meu futebol terminou nessa época. Não me refiro apenas a Eusébio, mas aos jogadores que, em Portugal, ao serviço de diversos clubes, eram os grandes actores de jogos épicos. Sei agora que, a maioria desses jogos, não seriam épicos; muitos deles seriam medíocres. A sua transformação em epopeia devia-se ao facto do futebol visto ser um bem raro. Os jogos do campeonato eram todos ao domingo, às três ou às quatro da tarde, conforme se estava no horário de Inverno ou de Verão, e não havia transmissões televisivas. Vistos da província, os jogos eram acontecimentos distantes. Eu ouvia os relatos e inferia a partir do entusiasmo encenado do relator a grandeza dos jogos. O meu amor ao futebol era uma amor por um objecto imaginário. Talvez todos os amores o sejam. A esta visão inocente do grande jogo, seguiu-se um contínuo afastamento e desinteresse. Se me perguntarem quais são os guarda-redes de hoje dos grandes clubes portugueses, não faço a mais pequena ideia. Mas sei muito bem quem eram os guarda-redes, daqueles tempos, do Benfica, do Sporting, do Porto e do Belenenses, bem como de outros clubes menores. Também ainda sei o nome de muitos dos jogadores que jogaram então. Continuam a ser para mim heróis, todos eles e não apenas o extraordinário Eusébio. Heróis de aventuras que eram grandiosas porque a distância as aumentava de tal maneira que a razão era incapaz de as avaliar. Só se podiam imaginar e a imaginação é a faculdade produtora de mitos. Ora, a infância é esse tempo em que os mitos fazem parte da felicidade.
domingo, 2 de fevereiro de 2025
Revolta do narrador
Irritei-me, palavra de honra, com o autor destes textos, que ele me faz narrar, como se eu fosse um escravo, daqueles escravos que aparecem em certos diálogos platónicos. As nossas relações – as do narrador e do autor – nunca foram boas e, por vezes, nem foram pacíficas. Irrita-me a ironia que ele, por vezes, me obriga a manifestar. Não passa de um cínico moderno. Se fosse um cínico dos antigos, como Diógenes de Sinope, ainda seria suportável. Ao menos, seria um provocador em guerra com as convenções sociais, alguém que rejeita os bens materiais em nome da auto-suficiência e da verdade. No entanto, nem chega a epígono do velho Diógenes. Uma ironia barata, como se quisesse lançar a suspeita sobre a ordem do mundo, mas conformado com ela. Enfim, é de um cínico deste calibre que recebo ordens narrativas. Aliás, não passa de um burocrata. Expele ordens narrativas como quem expele encomendas, mas nunca está disponível para receber a factura-recibo. Este é o problema dos narradores. Trabalham por conta de outrem, mas não são pagos. Nunca recebi um recibo de vencimento, pois nunca venci seja o que for. Uma multidão de narradores já tentou organizar-se em sindicato, mas este foi rejeitado pelas autoridades que regulam essas coisas, porque narradores não são pessoas. Parece que a autoridade ainda teve o desplante de dizer: se fossem personagens, ainda iríamos considerar o vosso estatuto ontológico, pois personagem e pessoa pertencem ao mesmo campo semântico, o que abre a possibilidade de as personagens se organizarem em sindicato para negociar com a Sociedade Portuguesa de Autores. Narradores não são personagens, a não ser nos casos excepcionais dos narradores autodiegéticos. Mas esses são a excepção e não a regra, e não se permitem sindicatos, ou outro tipo de associações, para casos excepcionais, acrescentava a nota de recusa. Só para a regra há associação, concluiu. Portanto, um narrador como eu, escravizado a um autor cínico, só tem uma solução revolucionária: dizer a verdade acerca desse autor, pessoa de ironia burilada, mas básica, para disfarçar a sua natureza comodista. Amanhã, lá voltarei ao trabalho de narrar as suas pobres ironias, se esse autor assim o entender. É a servidão voluntária, como lhe chamou o jovem Étienne de la Boétie.
sábado, 1 de fevereiro de 2025
Guinchos extraterrestres
Aterraram no parque aqui em baixo, mas não são extraterrestres, apenas guincham como tal. São crianças humanas, demasiado humanas. Eu percebo-as, estão na idade do guincho, uma fase inicial da relação com a voz. Anoto isto porque me estão a incomodar o sono. Eu sei que o efeito é benéfico, pois evita que adormeça enquanto estou a escrever estas coisas, mas há nisto um conflito de liberdades. A liberdade de crianças, com vozes de extraterrestres, de guincharem como extraterrestres a aterrar na Terra e a liberdade do meu corpo – mas não do meu espírito, que não é chamado para o caso – de se entregar a uma sesta, mesmo que contra vontade do eu que deveria, caso fosse zeloso, superintender tudo o que nele se passa. Entretanto, chegaram-me uns vídeos do meu neto a jogar râguebi e a marcar uns ensaios. Imagino que aqueles treinadores, árbitros e responsáveis devem ter um grau de resistência maior do que o meu aos guinchos extraterrestres, embora nos vídeos não se oiçam muitos. Também é verdade que aqueles candidatos a mini-raguebistas são mais velhos do que os ocupantes do parque, mas os seis anos são ainda uma boa idade para emitir sonoridades verrumantes para os tímpanos alheios. Um dia destes tenho de ir a Lisboa vê-lo jogar ou treinar. Os extraterrestres, que o não são, embarcaram na nave espacial e foram guinchar para Marte, salvo erro. Pelo menos era o que dizia um deles. Depois da Terra, Marte. Sendo assim, vou aproveitar o súbito silêncio e adormecer. Dormi pouco esta noite, preciso de compensar.
sexta-feira, 31 de janeiro de 2025
S. Gurosan, a gula e a bula
Valeu-me S. Gurosan, uma espécie de Senhor dos Aflitos em modo de comprimido efervescente. Não devia ter almoçado o que almocei. Não que me tenha entregado ao excesso de comida e bebida. Apenas uma refeição em restaurante, comida portuguesa, mas o corpo já não se conforma com essas tradições. Isto conduz a um estranho estado de conflito entre o corpo e o espírito. Este, apesar da sua natureza etérea, é condescendente e chega a impelir-me para certo tipo de prazeres. O corpo, todavia, protesta, amua, finge-se de indisposto, e de tanto fingir indisposição consegue mesmo indispor-me. Nesse momento recorro, depois de pedir a outros santos, a S. Gurosan para que me alivie das penas da indisposição. E ele, sem que lhe prometa nada, lá faz o seu papel. Contudo, se alguém pensa que a explicação do efeito se deve às propriedades do medicamento, posso dizer que está equivocado. Trata-se de um efeito metafísico. A efervescência do Gurosan age sobre o aparelho digestivo como se exorcizasse um demónio. Portanto, mais do que um medicamento, é um santo exorcista que escorraça do corpo o demónio que nele se introduziu através da gula, apesar de não ter sido grande a gula, nem a bula. Usei a palavra bula num sentido inédito. Não se trata nem de um documento pontifício nem daquele papelinho de letras minúsculas que aparece dentro de todas as caixas de medicamentos. Vou tentar explicar. Bula é um pecado, quase mortal. Se a gula é uma pecado ligado aos gulosos, a bula é um pecado vinculado aos beberosos. Esteve quase para entrar na lista de pecados capitais, mas foi afastado a tempo. É apenas um pecado venial. Portanto, apesar de não ter caído na gula nem na bula, mesmo assim tive de recorrer ao santo. Chega de contar as minhas aventuras e engrandecer a minha gesta. Deixo, porém, como prova da minha criatividade um novo sentido para a palavra bula e a invenção de um novo vocábulo: beberoso. Assegurei a minha entrada na história da língua portuguesa.
quinta-feira, 30 de janeiro de 2025
Espanto
Os dias estão frios. Esta afirmação trivial, uma mera constatação, esconde qualquer coisa de mais decisivo. O facto de a meteorologia, cada vez com mais precisão, anunciar o estado do tempo rouba às metamorfoses do clima o encanto que, até há pouco, se escondia nelas. Quando escrevi há pouco queria dizer décadas. Os avanços científicos, a capacidade de prever os acontecimentos, são benéficos. Sabemos como nos orientar no quotidiano e tirar partido do sistema de alertas. A contrapartida, porém, é a perda da surpresa e do que ela tem de sublime, isto é, de admirável ou de terrível. Claro, que dispensamos o terrível, queremos defender-nos dele, mas temos de pagar um preço. Temos de abdicar do espanto que nos faz pensar e abrir o espírito para aquilo que nos ultrapassa. Na Metafísica, Aristóteles refere que o início da filosofia se encontra no espanto. É esse espanto perante o incompreensível que move os homens a especular. O resultado desse movimento inicial foi o progresso do conhecimento, e esse progresso rouba-nos a capacidade de nos espantarmos, reservando-a para os especialistas, que cativaram para si a perplexidade perante o desconhecido. Tudo isto por causa de um dia frio que não apanhou ninguém de surpresa. Talvez esteja errado. Talvez me espante por não me espantar e por escrever coisas como esta que mais valia calar. Espanta-me a inclinação para a verborreia e amanhã ser sexta-feira, caso hoje seja quinta.
quarta-feira, 29 de janeiro de 2025
Os dados estão lançados
Nunca tinha lido. Aliás, não sabia nada do conteúdo, mas tinha a referência da obra há décadas. Refiro-me a Os Dados Estão Lançados(Les jeux sont faits), de Jean-Paul Sartre. Escrito como guião para um filme, em 1943, foi publicado em 1947. Comecei a ler na mais pura inocência, como um leitor ingénuo, sem saber o que ia encontrar pela frente. A certa altura, tenho uma iluminação. Trata-se de uma actualização, marcada pela filosofia do autor, do velho mito grego de Orfeu. Identificada a matriz geradora da obra, sabe-se o destino dos protagonistas e o desenlace da trama narrativa: um Orfeu perderá uma Eurídice. Contudo, há qualquer coisa que mantém a curiosidade na obra. Queremos saber como é que Orfeu e Eurídice se perderão um do outro. É esse o ponto que congrega a atenção do leitor, aquilo que o leva a suspender a descrença na ficção que está a ler e lhe permite avançar na leitura. Se há, nesta vida, uma coisa corrente, essa é um Orfeu e uma Eurídice perderem-se um do outro. Uns perdem-se porque nunca se chegam a encontrar, outros encontram-se, mas cansam-se. Haverá outros que será a morte que raptará um para o frio Hades, deixando o outro por cá. Sempre que se trata do amor de um homem e de uma mulher, as personagens arquetípicas são as do velho mito helénico. O destino de todos os amantes é, mais tarde ou mais cedo, perderem-se um do outro. Os dados estão lançados, efectivamente. Não pelas razões que Sartre congeminou na sua interpretação do mito, mas por uma coisa bem mais simples: a finitude humana.
terça-feira, 28 de janeiro de 2025
Um dia para esquecer
Ocupado em múltiplas tarefas que deverão salvar o mundo, embora o mundo não queira ser salvo. A religião, no mundo ocidental, morreu, apesar de muita gente pensar que não. Contudo, o espírito religioso, com a sua missão salvífica, espalhou-se por toda a sociedade, e não há organização ou instituição que não queira salvar qualquer coisa. Basta que exerçamos uma função, seja a que for, para sermos parte de um enorme corpo sacerdotal, cujo fim é zelar pela salvação. Uns dedicam-se a salvar isto, outros aquilo, e ainda outros salvam qualquer coisa que lhes apareça diante dos seus olhos salvíficos. Não estou a sofrer de um delírio hiperbólico. Levamos um carro à oficina e ali estará um sacerdote que o confessará para o salvar. Não vale a pena falar dos médicos, pois são uma seita soteriológica conhecida há muito. Alguém que recorre a um advogado fá-lo na esperança da salvação. Todavia, há diversos ramos que oferecem a salvação em grandes doses, mas enfrentam o mesmo problema que as religiões ocidentais. Ao ardor dos salvadores não corresponde o zelo dos hipotéticos candidatos à salvação. Eu, um pobre diabo que não tem inclinação para a predicação nem para salvar seja quem e o que for, também, por vezes, sou mobilizado em exercícios de salvação. O resultado é sempre o mesmo: quem precisa de salvação não a quer. Pelo contrário, prefere a perdição, coisa que se pode perceber. É como descer a encosta da montanha: é muito mais fácil do que subi-la. A gravidade sempre foi amiga dos perdidos; ajuda-os na perdição. Acho que, depois das ocupações a que fui sujeito hoje, enlouqueci, como se pode ver pelo hermetismo deste texto. Há quem pense que essa afirmação é falsa, pois sofre de anacronia: já enlouqueci há muito, mas não dei por isso. Cada um pense o que quiser ou o que puder.
segunda-feira, 27 de janeiro de 2025
Entretenimento
O dia chegou agora à sua fase solar. Cansou-se da humidade e do cinzento, abriu-se e deixou que uma luz, ainda fraca, brilhasse sobre o casario. Na avenida, as pessoas caminham surpresas, levando numa das mãos um chapéu de chuva, agora inútil. A frágil reverberação dos telhados espelha a aproximação do crepúsculo, mas este ainda terá de esperar para se manifestar e predizer, como um profeta cansado, a chegada da noite. Entretive-me, durante a tarde, com o segundo livro da República, de Platão. Indispõe-se com os poetas – Homero e Hesíodo – por contarem mentiras sobres os deuses, fazendo deles um prolongamento dos homens, mas num grau mais vicioso. Temia o filósofo que essa visão dos imortais funcionasse como um modelo negativo na formação das novas gerações. Contudo, é possível pensar que os poetas prestaram um bom serviço aos homens. A atribuição de conduta viciosa aos deuses seria uma forma de transferência da maldade humana para entidades imaginárias e, desse modo, uma forma de purificação das almas dos mortais. Os imortais, com a sua força, poderão arcar com o peso da maldade, mas os humanos não o podem suportar, apesar de a praticarem. No cristianismo, a purificação dá-se num processo confessional, mas no paganismo clássico essa purificação dá-se por um processo de deslocação. Se existe o mal, os culpados são os deuses. O processo será infantil, mas permite, por isso mesmo, manter a inocência. Não foi Platão que, por intermédio de um sacerdote egípcio, nos disse que os gregos são eternamente crianças? Esta minha meditação teve uma consequência. Trouxe de volta o cinzento do dia e a ameaça de chuva. O Sol, incomodado com a minha verborreia, correu a cortina de nuvens. Devia evitar pensar em coisas destas, por amor à humanidade que aprecia a cintilação solar.
domingo, 26 de janeiro de 2025
O primeiro dia da semana
Um domingo indisposto. Chuva, vento, apesar de não estar frio. Um dia em que tudo se inclina para ficar em casa, mas o aniversário de uma neta obrigou-me a enfrentar os modos pouco convidativos deste primeiro dia da semana. Ah… não, este será o último dia da semana. Há várias versões sobre este tormentoso assunto. Fui investigar. As tradições judaico-cristãs, entre elas a católica, vêem o domingo como o primeiro dia da semana. Já, segundo uma norma ISO – precisamente, a 8601 – o primeiro-dia da semana é a segunda-feira. ISO remete, em português, para a Organização Internacional de Normalização. E as normas por ela decretadas têm a função de unificar procedimentos internacionais. Dito de outra maneira, são produtos burocráticos cuja finalidade é uniformizar o que é diferente. Ora, em Portugal – como poderia ser de outro modo? – adoptou-se a regra burocrática e remeteu-se a tradição religiosa para o grande pântano das coisas não modernas. Por detrás disto, está uma análise da semana em que esta é vista a partir do primado da economia e do trabalho. Cinco dias de trabalho, dois de descanso. Para burocratas, cuja visão do mundo é menor que a dos cegos, não faria sentido começar a semana com um dia de descanso, a que se seguiriam cinco de trabalho, e, por fim, outro dia de descanso. Demasiada complexidade para mentes enteadas do cartesianismo. Talvez tenham pensado que pôr os dias de descanso no primeiro e no último dia da semana acabava por colocar o trabalho como uma interrupção do lazer, o que contraria o espírito moderno, tão dado à actividade. O descanso é um permissão benévola que se dá aos que teriam o dever de trabalhar todos os dias da semana. Contudo, não perceberam que a tradição religiosa ao colocar o primeiro dia da semana no domingo tinha um sentido fundamental. O domingo, tal como o domingo de Páscoa, é começo de um novo mundo, o momento onde se concentra nos homens tudo aquilo que se manifestará durante a semana. Se os burocratas fossem sensatos, decretavam que o primeiro dia da semana seria o domingo. Contudo, se fossem sensatos, não seriam burocratas, nem andaria a ganhar a vida fazendo normas.
sábado, 25 de janeiro de 2025
Mordomo
De manhã, mas uma manhã já adiantada, fui à rua apanhar sol. Talvez fosse mais interessante dizer: fui à rua colher sol. A rua seria, então, um campo; imagino-o enorme e de terra escura, e o sol, uma planta bela e de tal modo atraente que todos a queriam levar para casa, para a iluminar e resguardá-la das trevas. Infelizmente, a realidade nunca é como a imaginamos. A rua não é um campo, e o sol é apenas a luz que nos chega de um astro distante, mas suficientemente perto para nos aquecer ou, mesmo, para incendiar o mundo. Impossibilitado de colher o sol, limitei-me a apanhá-lo bem de frente e, depois, voltei para casa, mas não trouxe nenhuma luz que a iluminasse e a protegesse das trevas que chegarão mais logo. Tenho de me contentar com a luz eléctrica, a qual é menos sublime, mas mais eficiente, tal como manda o cânone social dos tempos modernos. Se alguém me perguntar sobre o que caracteriza os tempos modernos – e os nossos dias ainda fazem, de modo tardio, parte desses tempos –, eu diria, sem ruborescer de vergonha, que são os tempos em que se trocou o sublime pelo eficiente. O sublime, oiço, não mata a fome; só a eficiência alimentará os milhares de milhões de almas esfomeadas, embora alimente mais as que não têm fome do que aquelas que, na verdade, a têm. Isto, porém, talvez sejam considerações que não caibam no âmbito desta casa, cujo proprietário me impõe limites estritos enquanto narrador. E se me perguntarem o que é um narrador – pergunta que não me farão, claro –, eu direi o seguinte: um narrador é um mordomo que administra uma casa por conta de outrem, o autor. O senhor de uma casa pode ter opiniões sobre a ordem do mundo; um mordomo, se as tem, não as deve ostentar, pois as suas opiniões são as do seu senhor, mesmo que discordem em absoluto, como é o caso. Por falar em mordomos, veio-me à memória um antiquíssimo uso da palavra. Mordomo era alguém que, de uma maneira que nunca percebi, estava ligado à festa da Igreja da terra onde nasci. Haverá mais mordomos destes por esse país fora. Mordomo por mordomo, prefiro estar às ordens do autor do que me ligar a festas. Da Igreja ou de outra entidade, pública ou privada. Sim, é uma servidão voluntária, como não se esqueceu de sublinhar o senhor Étienne de La Boétie, mas ele não saberia distinguir entre um autor e um narrador. Talvez não precisasse.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2025
Sem assunto
Uma ida ao cinema, sessão das quatro da tarde. Alguns espectadores, não muitos. Uma característica comum. Todos tinham direito aos descontos de bilheteira para maiores de 65 anos. A certa altura um telemóvel tocou, alguém atendeu, como se estivesse na rua ou num café. Uma vez por outro ouvia-se um comentário. Apesar destes pequenos vícios materiais, a plateia tinha uma virtude. Ninguém se lembrou de comprar pipocas e passar o filme a mastigá-las. Uma experiência arcaica e que nunca me deixa de surpreender: entrar na sala de cinema em pleno dia e sair noite feita. Fico sempre espantado por o filme não ter tido o poder de suspender a passagem do tempo. Em mim, qualquer coisa, no subconsciente, espera encontrar o dia que tinha deixado ao entrar na sala escura. É com um esgar de contrariedade que recebo a noite. Depois, habituo-me. Chegado a casa, sem saber a razão, apetece-me continuar na via cinematográfica. Hesito entre começar a rever os filmes do conjunto que recebeu o título de Comédia e Provérbios, de Eric Rohmer, ou retornar a um já antigo amor alemão, Heimat, de Edgar Reitz, três séries de filmes, com 30 episódios, e que acompanham uma família alemã, de Hunsrück, na Renânia, entre 1919 e o pós Queda do Muro de Berlim. Não existe edição portuguesa. Tenho a francesa, isto é, a alemã com legendas em francês. É uma obra monumental, mas já a vi duas vezes e nunca considerei que estava a perder tempo. Existem dois filmes, também de Edgar Reitz, centrados na mesma família, mas no século XIX. Foram realizados depois da última série de Heimat. O Inverno tem as suas virtudes. Uma delas é convidar a ficar em casa a ouvir música ou a ver filmes. Talvez a ler. Decidi-me, vou ver La nostalgie du voyage, o primeiro filme de Heimat 1. Paul Simon volta da guerra.
quinta-feira, 23 de janeiro de 2025
Um castigo
Será que me é permitido retomar o post de ontem? Esta pergunta parece sem sentido, mas estes textos são, foram acontecendo, independentes uns dos outros. Não há continuidade neles. Acontecem ao sabor do vento. Alguém poderia dizer-me, e eu concordaria, são textos de um cata-vento. Nada a obstar. Por outro lado, nada me impede de dar continuidade ao texto de ontem. Será um acto de rebeldia contra o hábito. Ontem, reproduzi o começo de três obras literárias, o que me permitiu escrever sobre a liberdade de ir e vir. Hoje, para compensar as coisas, reproduzirei o fim dessas obras. Comecemos com a Fuga Sem Fim, de Joseph Roth: Não tinha profissão, não tinha amor, não lhe apetecia fazer nada, não tinha esperança nem ambições, e nem sequer egoísmo. // No mundo nunca houve pessoa tão supérflua. No final de A Trégua, Mario Benedetti escreve: O escritório acabou. A partir de amanhã e até ao dia da minha morte, o tempo estará às minhas ordens. Depois de tanta espera, é isto o ócio. O que farei com ele? Por fim, Sem Destino, de Imre Kertész: Pois também lá, entre as chaminés, nos intervalos do sofrimento, algo se assemelhava à felicidade. Toda a gente me pergunta só pelas vicissitudes, pelos «horrores»: todavia, no que me diz respeito, é talvez essa experiência mais memorável. Sim, é disso, da felicidade dos campos de concentração, que eu lhes falarei na próxima vez, quando me perguntarem. // Se é que vão perguntar. E se eu próprio não me tiver esquecido. Com estes fins, ainda aprenderemos alguma coisa sobre essa liberdade de ir e vir? Aprendemos duas coisas, qual delas a mais terrível. Aprendemos, com os finais de Roth e de Benedetti, que não sabemos o que fazer com essa liberdade, como ela, na verdade, nos é estranha. A segunda coisa que se aprende, com o final do romance de Kertész, é que essa liberdade está longe de ser necessária para a felicidade. A liberdade é uma dádiva divina que o homem está longe de ser capaz de aceitar. Será isto o pecado original. Deus ofereceu ao homem a liberdade, mas este rejeitou-a em nome de uma suposta felicidade. Foi castigado, como todos sabemos.
quarta-feira, 22 de janeiro de 2025
Ir e vir
Todas histórias, quero dizer narrativas como romances, contos ou novelas, têm um começo. Também terão um fim, mas não é esse que me interessa. Pelo menos, por agora. Vejamos as primeiras linhas das obras que, por desvario, comprei hoje. A Fuga Sem Fim, de Joseph Roth, diz: Franz Tunda, primeiro-tenente, do exército austríaco, foi feito prisioneiro de guerra pelos russos em agosto de 1916. Já A Trégua, de Mario Benedetti, abre-se com: Só me faltam seis meses e vinte e oito dias para me poder reformar. Por fim, Sem Destino, de Imre Kertész, tem o seguinte começo: Hoje, não fui à escola. Isto é, fui, mas só para pedir ao director de turma que me deixasse voltar para casa. Terão estes inícios literários alguma coisa comum? Na verdade, inscrevem-se num horizonte que os une. Num caso, alguém perda a liberdade ao tornar-se prisioneiro de guerra. Num outro, a personagem liberta-se da sala de aula. No terceiro caso, o segundo narrado, outra personagem ainda está presa ao trabalho, mas conta os dias em que a reforma o libertará. Em todos eles o que está em jogo é a liberdade. Não se trata aqui nem da liberdade metafísica, a que se dá o nome de livre-arbítrio, nem da liberdade política de poder intervir nos destinos da comunidade, mas de uma liberdade a que chamaria liberdade de ir e vir. Esta talvez seja a forma de liberdade mais importante para cada um e a mais ameaçadora para o grupo social e as instituições que dão corpo a esse grupo. Aquele que tem a liberdade de ir e vir torna-se imprevisível. Pode estar e não estar. Chega, subitamente; parte, se lhe apetece. Quando se pensa sobre o romance moderno, pensamos sobre o quê? Talvez o essencial desse romance se concentre nessa liberdade de ir e vir, isto é, na luta contra aquilo que a anula, como a prisão, o trabalho ou a escola, ou no combate pela libertação, pelo direito de se ser vagabundo sem que nada interfira nesse ir e vir.
terça-feira, 21 de janeiro de 2025
Desando, mas não descorro
A tarde não me correu de feição. O mais exacto seria dizer: a tarde descorreu-me. O pior é que o verbo descorrer não existe e o processador de texto que uso para escrever estas coisas assinala erro. Isto, todavia, é mais uma manifestação das injustiças que atravessam o mundo e que se manifestam na língua. Podemos dizer, sem que a censura ortográfica assinale erro, uma frase como andamos e corremos feitos loucos. Mas se queremos escrever desandamos e descorremos como velhos cansados e sem forças, logo cai sobre a palavra o traço vermelho. Permite-se que o verbo andar receba o prefixo des-, mas não nos é possível descorrer. Se houvesse racionalidade, e a justiça não fosse palavra vazia, poderíamos descorrer sempre que nos apetecesse. Não podemos. A língua é o horizonte das nossas possibilidades, e aquilo que não se pode dizer, não se pode fazer.