quinta-feira, 10 de setembro de 2020

Meus pobres enganos

Levantei-me cedo para ir fazer análises. Isto não demora, pensei. É só atravessar a avenida. Assim fiz. Chegado ao local de colheita dos materiais a analisar, descubro que está fechado. Foi transformado em posto dedicado ao COVID-19. Tenho de ir ao centro da cidade. Omito aquilo que me saiu da boca. O que seria uma história de meia dúzia de minutos transformou-se num processo que demorou mais de uma hora. Os planos da manhã foram todos estilhaçados. Isto fez-me lembrar uma canção de Chico Buarque. Uma certa Rita Levou os meus planos / Meus pobres enganos. Aqui não foi nenhuma Rita, mas a verdade é que todos os meus planos não passam de pobres enganos que uma qualquer conspiração logo trata de desfazer. Para ser honesto, tenho de dizer que vivo num mundo cheio de planos, planeamentos, planificações. Nesse estranho país pensa-se que tudo se subordina a objectivos, os quais ao longo do tempo vão mudando de designação, e que estes devem ser perseguidos através do achatamento da realidade. Nesse país, a maior parte do esforço das pessoas é andar com martelo ou maça a bater na realidade para a tornar plana. É uma pátria muito ruidosa. Pego nos livros que as minhas netas me ofereceram. Omito a referência bibliográfica, pois estou impedido pelo autor destes textos de me meter em política, e eu sou um narrador obediente. Só conto aquilo que ele deixa. Seja como for, sempre posso dizer que um trata de pestes e pragas, e o outro faz o retrato de três personagens importantes neste jardim à beira-mar plantado, todas elas endeusados pelos seus e vistas como pestes e pragas pelos outros. Esperam-me uns planos e outros enganos. Já estou de martelo na mão.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

Um profeta falhado

Esta é a fase do ano em que começo o dia com a consulta das previsões meteorológicas. Cada um ilude-se como quer. Olho para as do dia, as da semana e as dos próximos catorze dias. Estas são um bálsamo, ao prometerem-me temperaturas sensatas, embora com grau de probabilidade quase nulo. Sempre achei as previsões económicas uma coisa ainda mais extraordinária do que as do tempo. Mais tarde descobri que nem depois dos factos ocorridos se consegue acertar no que se prevê a posteriori. Se eu fosse meteorologista ou economista, faria as previsões na linguagem obscura de um Nostradamo. Escreveria quadras decassilábicas, onde em código faria o prognóstico do raio que cairia ali, da nuvem que passaria acolá, ou, caso se tratasse de Economia, não haveria de falhar uma compra no índice do consumo ou um investimento em esferográficas e papel higiénico de uma empresa, pequena que fosse. Tudo estaria cifrado nos meus escritos e quem quisesse conhecer a realidade, bastaria passar a vida a decifrá-los. Não quis, porém, a natureza dotar-me do talento de profeta. Uma pena, pois não há coisa mais emocionante do que uma terrível profecia, cheia de provações, anjos e trombetas. Que eu saiba, não existe nenhuma que seja anunciada pela música de piano, mas nunca se sabe. A previsão indica-me que estão trinta graus. Respiro fundo, bebo água e volto para as coisas sérias que pautam a minha risível existência.

terça-feira, 8 de setembro de 2020

Fé e falta de fé

Uma longa cadeia de comando. Da mãe para a avó, desta para mim. Tive de ir abrir a janela e obrigar as minhas netas a saltarem da cama. Imagino que sejam exercícios de preparação para o ano lectivo, um corte ritual com o tempo de ócio. Houve tempos mais felizes. Na Grécia antiga o ócio e a aprendizagem andavam de mãos dadas. Hoje em dia são inimigos ferozes, combatem-se sem tréguas. Quando eu tinha a idade delas, Setembro era ainda um mês sem preocupações. A escola não passava de uma nuvem difusa, que chegaria quando o tempo estivesse mais temperado. Havia nisso um saber arcaico que tinha em consideração a inutilidade de tentar ensinar seja o que for nos meses de Verão. Agora faz-se da escola um local para aprender a viver quando a península for um imenso e irrevogável deserto. O ruído de máquinas em manobra ameaça o meu equilíbrio mental. Olho para a lista de coisas que tenho para fazer e bocejo. Não é sono, apenas falta de fé. Os crentes, aqueles que o são verdadeiramente, devem ter menos sono do que as outras pessoas, pois a crença mantém-nos em vigília. Os que são tímidos e mornos no crer – ou que descrêem por completo – sentem mais propensão para dormir. E não há, na lista dos meus afazeres, uma única coisa em que tenha fé, embora também eu tenha algumas crenças. Por exemplo, tenho uma fé profunda no Império Austro-Húngaro. Pena a História não ter tido fé nele, mas a quantidade de grandes escritores que produziu só pode ser motivo de adoração. Tudo isto vem a propósito de Leo Perutz, de quem estou a ler O Cavaleiro Sueco. O autor, um judeu sefardita nascido no Império, foi, além de escritor, matemático, trabalhando sobre o cálculo de probabilidades. Trabalhou na mesma companhia de seguros e ao mesmo tempo que Franz Kafka, de quem terá sido amigo. As minhas netas já estão bem acordadas, pelo que oiço, e entre as suas actividades e as minhas crenças parece não existir qualquer ligação. Felizmente.

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

Chegou a realidade

A realidade chegou pela manhã desta segunda-feira. Como todos sabemos ela é uma senhora muito elusiva, embora haja também quem a ache uma marafona, uma daquelas raparigas viciosas dadas ao desfrute, sempre pronta para pôr alguém em apuros. Quando começo a falar por enigmas é porque a coisa não está bem. As sombras já não são suficientes para suster o ataque desferido pelo Sol. Homens e mulheres arrastam-se pelos passeios, param sob a copa das árvores. Os carros passam devagar, revérberos ambulantes, movidos pelo desejo de alguém chegar ao destino. Os loendros da escola ao lado continuam pujantes e eu deixo-me levar pelo desvario da corrente de consciência, saltitando de assunto em assunto. Vejo o correio electrónico e sinto uma inesperada saudade do tempo em que chegavam cartas em papel, onde um envelope selado ocultava segredos e mistérios. Hoje em dia, pensei, já ninguém tem nada a velar e logo não é necessário esse ritual de desenhar as palavras em folhas de papel, aquelas palavras decisivas que mudam uma vida e que são escritas vezes sem conta, enquanto as folhas são rasgadas, e se pega noutra para recomeçar com mais precisão aquilo que se quer escrever. Muitos romances tomaram uma forma epistolográfica, mas é inverosímil que haja arte na redacção de emails e nada de decisivo pode por eles ser anunciado. A realidade chama por mim. Tenho de lhe dar alguma atenção, pois ela é um moscardo zumbidor que não se cala. Sensato seria comprar um insecticida.

domingo, 6 de setembro de 2020

O exsudar oleoso do tempo

Estou cansado, embora ainda não tenha feito nada. Basta o acinte do calor para me exaurir. Já vamos no sexto dia de Setembro, e este ainda não se mostrou uma única vez piedoso. É um mês violento, irascível, raivoso. Até os pássaros meus vizinhos andam calados. Talvez se tenham mudado para um lugar mais fresco. Fecho os olhos e deixo a música deslizar sobre mim. Oiço um CD, comprado há muito, de Reiko Kimura, Music for Koto. Há na música tradicional japonesa um grande poder para nos subtrair à marcha vexatória do tempo e dos acontecimentos e conduzir-nos a territórios nos quais as palavras não conseguem penetrar. Há que ouvir e esquecer-se de si. Ontem esteve cá o meu neto. Vimos a Masha e o Urso e brincámos com CD. Ele tirava-os do lugar e eu arrumava-os. Tenho já um longo treino nesse papel. Vai na terceira edição e ainda não percebi o fascínio que as crianças têm em desarrumar os CD. Sinto os neurónios a curvarem-se sobre si, como se se enroscassem na posição fetal para dormir. Eu bem lhes exijo sinapses, mas eles olham-me com desprezo. Bocejam e voltam-me as costas. Pudesse eu encontrar-me com Eliot e dir-lhe-ia o quanto estava enganado. Não, não é Abril o mais cruel dos meses. Setembro sim, pois nele nem há lugar para a crueldade de confundir memória e desejo, apenas o exsudar oleoso do tempo, apenas o punhal afilado da realidade cravado na garganta, apenas o uivo esfomeado do lobo perdido na floresta.

sábado, 5 de setembro de 2020

Como ser perfeito

Há um poema, How To Be Perfect, de Ron Padgett, um poeta americano, que se prolonga por nove páginas. Cada verso é um imperativo, embora não haja recurso ao ponto de exclamação. O primeiro diz apenas Dorme. Um imperativo categórico, ordena-nos absolutamente que durmamos. O último é um imperativo hipotético, pois aquilo que ele determina depende de uma condição. Transcrevo: Quando há tiros na rua, não vás para ao pé da janela. Quem quiser ser perfeito tem no poema um roteiro. Há vários imperativos interessantes. Por exemplo: Sê gentil com os objectos. Ou: Pergunta ‘Onde é a casa de banho?’ e não ‘Onde posso urinar?’. De todos os mandamentos – e são dezenas – necessários para chegarmos à perfeição aquele de que mais gosto é do segundo: Não dês conselhos. Há outra coisa que me agrada no poeta. Nasceu em Tulsa, no Oklahoma. Eu não faço ideia o que, enquanto lugar para nascer, seja Tulsa, nem nunca pus os pés no Oklahoma, mas a sonoridade de ambas as palavras fazem-me imaginar de imediato uma terrível intriga, que se desenvolve em torno do imperativo com que se encerra a primeira página do poema: Cuida primeiro das coisas que te são próximas. Arruma o quarto antes de salvares o mundo. Depois salva o mundo. Também eu posso oferecer um imperativo. Caso haja tiros na rua, não te ponhas a salvar o mundo, mesmo que já tenhas arrumado o quarto. A perfeição é um caminho difícil, pensei após ler o poema. O mais sensato é deixar-se afogar em imperfeições. Se for sábado e estiver um calor dos diabos, não te ponhas a escrever idiotices. Este foi o melhor imperativo que produzi para mim mesmo, mas nem a ele consigo dar cumprimento.

sexta-feira, 4 de setembro de 2020

O desaparecimento dos rituais

Os olhos secam, tal o calor que está por aqui. Bebo água para me hidratar, mas ninguém consegue usar os neurónios seja no que for com estas temperaturas. Já pensei em recorrer ao ar condicionado, mas aí tudo se complica. A garganta protesta, a voz enrouquece e o espírito começa a duvidar sobre se o corpo não se terá contaminado com o novo vírus que anima a realidade pelo mundo fora. Fui levantar umas encomendas a um posto dos CTT incrustado numa loja que vende livros e materiais escolares. Toda a gente de máscara, o que terá vantagens estéticas e sociais assinaláveis. A continuar assim, chegaremos ao dia em que teremos pudor em mostrar o rosto, mesmo os praticantes de nudismo hão-de fazê-lo de máscara. Uma das minhas leituras actuais é a de um filósofo de língua alemã, de origem sul-coreana, com o inusitado nome de Byung-Chul Han. A obra é Do Desaparecimento dos Rituais. Uma leitura suave e que não há-de agradar nem a gregos nem a troianos, os bandos rivais que enxameiam a praça da filosofia. Nem aqueles que vêem nela um cálculo lógico e transparente como o cristal, nem os que a julgam um exercício esotérico de linguagem indecifrável, que quer sempre dizer outra coisa. Isto, todavia, não interessa a ninguém e a verdade é que os rituais, com o seu jogo de repetições, estão mesmo a retirar-se do mundo. As encomendas que fui levantar eram sapatos que comprei online. O ritual de ir a uma sapataria, com o calça e descalça, o experimenta este e o outro, o abre e fecha caixas, foi substituído pelo relação digital e anónima de espreitar num monitor e de tratar tudo sentado numa secretária. A minha comodidade é um punhal cravado na garganta de um mundo decente. Como se sabe, tenho uma certa propensão para a hipérbole, a que convirá dar o devido desconto.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Aparência e realidade

Na demanda da caderneta militar, afinal chamada carta de identificação militar, acabei por descobrir um conjunto de velhos cartões que medeiam entre os doze e os vinte e quatro anos. Ao olhar as fotografias, não pude deixar de recorrer ao lugar-comum as aparências iludem. Entre aquilo que pareço naquelas que vão dos dezassete em diante e aquilo que era e fazia há uma tal incongruência que até eu tenho dificuldade em perceber. Talvez a vida de toda a gente não passe de um monte de desacertos e desconchavos entre o que a sua imagem diz e aquilo que se é e faz. Descoberto o documento militar, tive direito a mais duas descobertas. A primeira diz-me que ele não serve para nada. A segunda informa-me que aquilo de que preciso me vai dar um trabalho sem fim para saber aonde me devo dirigir para o obter. Portugal é um exercício difícil, um interminável quebra-cabeças feito de esquecimentos, omissões e segredos. Comecei a ler uma obra de Hermann Broch cujo título original é Die Schuldlosen. Os franceses traduziram como Les Irresponsables, os espanhóis como Los Inocentes. Os portugueses não traduziram. Optei pelo castelhano, o título francês parece-me demasiado interpretativo. A obra começa com a parábola da voz. Os discípulos do rabino Leví bar Chemjo, perguntaram-lhe, tendo em conta que nada existia que antes de ser criado por Deus, por que razão – não havendo quem O escutasse – o Senhor ergueu a voz ao começar a criação. A questão não deixa de ser astuciosa. O rabino, contrariado, respondeu: A linguagem do Senhor, gloriosa como o Seu Nome, é uma linguagem silenciosa e o Seu silêncio é a Sua linguagem. O Seu ver é cegueira e a Sua cegueira é ver. O Seu fazer é não-fazer e o Seu não-fazer é fazer. Voltai para vossas terras e meditai sobre isto. Também eu que não sou seu discípulo devo meditar por que razão a minha realidade e a minha aparência se desacertam, pois talvez a minha realidade seja apenas a minha aparência, e a minha aparência seja a minha realidade. Este calor enlouquece-me e tenho de sair para ir buscar a prescrição das análises que esqueci no consultório.

quarta-feira, 2 de setembro de 2020

Efeito Föhn

Hoje é o primeiro dia de oito em que as temperaturas estarão entre os 35 e os 38 graus. Há dias vi uma explicação sobre a razão de aqui estar um tempo quente e seco e do outro lado da serra ser mais fresco e húmido. A causa seria o efeito Föhn resultante da existência de uma cortina montanhosa – serras da Sintra, Lousã, Montejunto, Candeeiros e Aire – que se interpõe nos caminhos dos ventos vindos do mar, gerando o tempo típico do Oeste, de um dos lados, e a aproximação ao deserto deste lado. Como é assunto que me escapa e não tendo vocação para ser especialista em tudo, ou mesmo numa única coisa, acho a teoria esteticamente aprazível e tomo-a por verdadeira, mesmo que o não seja. Depois, sempre me permitiria escrever palavras como barlavento e sotavento, embora o não tenha feito para as poupar para um próximo texto. Setembro começa ao ataque. É um mês cruel, com instintos homicidas. Há nele um rancor que seria dispensável. Olha para nós e ri-se, enquanto arquitecta estratégias para nos submeter às suas humilhações. Reparo que tenho uma gaveta da secretária aberta e lembro-me que deveria procurar a minha caderneta militar. É verdade, apesar de não passar de um narrador sem narrativa, também possuo o documento que comprova que servi a pátria. Foi um mau serviço, a avaliar pela fotografia que lá se encontra. Um tipo ridículo, posso assegurar, sem o garbo de cavaleiro andante ou o aspecto feroz e implacável de um soldado de elite. Se eu fosse a pátria, ter-me-ia posto do lado de fora do quartel a pontapé. A pátria, porém, foi condescendente e disse-me vem, aqui também há lugar para gente grotesca, irrisória, caricata. Não te importas de endireitar a boina ou também tu sofres do efeito Föhn? Deveria evitar o recurso à prosopopeia, mas é o que se arranja. O que eu gostaria mesmo de saber era onde meti o raio da caderneta. Deve estar na outra gaveta.

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Um Janus bifronte

Se Setembro fosse apenas a anunciação de um Outono benévolo, se não passasse de um declinar lento do Estio mergulhado na fragilidade da velhice, hoje seria um belo dia. Foi com este pensamento que me levantei e me preparei para enfrentar o inevitável, que como um Janus bifronte, se estende inexplicavelmente para o passado e para o futuro, a tudo contaminando com o ranço da necessidade. Na comunicação social, devotos de várias confissões defrontam-se sobre festividades, rituais e liturgias, como se alguma coisa de decisivo se tratasse. Há nos seres humanos uma tendência inultrapassável para a hipérbole, esquecendo que a morte a tudo acaba por tornar igual. Aquilo que inflama os corações hoje, não merecerá mais do que um encolher de ombros amanhã e, daqui a umas semanas, só será lembrado por exaltados que ainda não descobriram toda a caridade que existe num tranquilizante. Hoje espreitei as torres do castelo, depois olhei para o friso das orquídeas, já quase todas sem flor. Exceptua-se a branca que está em floração contínua há mais de ano e meio. Na avenida, passa um casal. Vão presos na indiferença que os consome, fiéis ao destino com que a vida, escrava do imperativo da multiplicação, os enganou. O sol dispara raios de aço sobre as paredes da escola aqui ao lado, elas abrem gretas e sangram lentamente, cobrindo com o véu do silêncio a dor que as dilacera.

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Um país lento

Hoje percorri parte da cidade. Havia nela uma estranha combinação de tristeza e calor, como se uma coisa e outra se intensificassem mutuamente. Nas ruas, muita gente cobria essa tristeza com máscaras, muitas delas com cores que escapavam ao padrão cirúrgico. Os corpos incapazes de ocultações passavam devagar, esmagados pela atmosfera, fechados sobre si mesmos, como se o ar envolvente fosse pestilento. Prédios em ruínas, casario que o tempo submeteu ao seu juízo impiedoso. Tudo isto gera uma cultura de nostalgias, cheia de pequenos mitos, tentativas frustes de reencantar aquilo que só foi encantado pela inocência do olhar infantil ou pela ingenuidade dos primeiros amores. Chegado a casa, pensei que deveria evitar estas deambulações. Ir aonde tenho de ir, olhar o menos possível para a realidade e voltar pelo mais curto caminho que houver. Agosto encerra hoje a sua actividade. Está cansado e deixou cair a sua fadiga sobre tudo o que existe. Não é fácil viver num país que tem quase novecentos anos, que já viu coisas demais, que se saturou de Agostos tórridos, que sabe que qualquer inflamação acabará por passar, mesmo que os anti-inflamatórios não sejam grande coisa. É um país lento. Na passada segunda-feira, fiz duas encomendas. Uma em empresa portuguesa e outra numa sediada em Espanha. A enviada pelos nossos vizinhos já a recebi há vários dias, a outra talvez seja hoje que chegue. E tudo isto me maravilha, pois há uma sabedoria que fora daqui não existe e não se percebe. Há muito, muito tempo, numa loja de ferragens de uma outra cidade de província, no início da tarde, talvez porque eu tivesse dado sinais de alguma impaciência, a pessoa que me iria atender esclareceu-me sobre a essência da pátria: não tenha pressa, que eu só saio daqui quando forem sete horas.

domingo, 30 de agosto de 2020

Uma gota no oceano

É tão breve o tempo de suspensão entre o prazer e a realidade que acabo por não saber o que fazer com este domingo. Talvez por antecipar que estão a chegar os dias do ruído, descobri um álbum do Coro da Rádio da Letónia com o magnífico título O Fruto do Silêncio. É composto por sete peças de outros tantos compositores letões. De todos apenas conhecia Pēteris Vasks, cuja peça dá título ao álbum. É uma experiência desconcertante escutar música produzida por compositores dos países bálticos. Há neles uma profundidade espiritual, de coloração religiosa, que praticamente desapareceu da música erudita ocidental. A composição de Martins Vilums denomina-se O Tempo Cintila, a de Ēriks Ešenvalds, Uma Gota no Oceano. E isto diz tudo o que, neste momento de suspensão, posso dizer de mim, miserável narrador sem narrativa. Enquanto o tempo cintila, fruto do silêncio, não passo de uma gota no oceano, ou nem isso.

sábado, 29 de agosto de 2020

Vida de provinciano

O meu idílio com a balança não apenas se mantém, como se intensifica. Hoje, primeiro dia pós-férias, confidenciou-me que eu tinha menos dois quilos do que antes de as começar. Olhei-a embevecido, jurei-lhe amor eterno, que teria sempre muito cuidado quando a pisasse. Enquanto me desfazia nesta conversa pateta, como o são todas as conversas de amor, pensava com alívio que iria evitar o olhar reprovador do médico, o qual, como todos os médicos, fazem da saúde do paciente um exercício de virtude moral, à qual, muitos deles, se julgam no dever de se furtar. Hoje a empresa de jardinagem que tem por hábito, aos sábados de manhã, vir cortar a relva nas pracetas circundantes esqueceu-se da sua cruzada contra a preguiça e a eventual lascívia matinal dos moradores. Foi, porém, substituída por um cão da vizinhança que, talvez espantado por não ouvir os corta-relvas, decidiu ladrar até me acordar. A isto se resume a vida de um provinciano, pensei. Pendências com médicos, férias acabadas, preocupações com barulhos vindos do exterior. O que me está a valer é o romance do Tomás de Noronha, passado na capital, que ainda era do Império, em ambientes sublimes, onde há condessas e marquesas. Fiquei rendido quando, ao referir-se à técnica de selecção social de uma certa marquesa, escreveu: Quem lhe orientava o protocolo era a sua filha, uma trintona nevrotica, destrambelhada, que sabia como ninguém disfarçar o estonteante desejo de se franquear sob a apparencia artificial de ser dificil. Basta o estonteante desejo de se franquear para que a leitura não seja pura perda. Se o tempo fosse feminino, pensei então e sem ligação com o que pensara antes, seria uma górgona, que avançaria com o seu olhar petrificante e a cabeça envolta em serpentes. Sendo masculino, dá-se aparências menos teatrais, e em vez de nos transformar em pedra, desfaz-nos e às nossas vis pretensões em pó. A manhã vai alta, calo-me, para que o alarme de um carro possa ecoar no fundo do meu ser.

sexta-feira, 28 de agosto de 2020

A gestão do dia

O dia nasceu sombrio, e eu hesito em avaliar o fenómeno. Vestiu-se de luto pelo meu último dia de férias? Decidiu poupar-me aos transtornos físicos – e metafísicos, já agora – da canícula? Sinto no centro do peito uma estranha opressão vinda do futuro, mas entretenho-me com a gestão do dia. Um amigo enviou-me um conto publicado pela mulher, vou lê-lo. Outra pergunta-me se quero ir jantar com eles, o clã familiar. O padre Lodovico quer saber quando vou a Lisboa. Uma transportadora deixa-me à porta uma encomenda com o triciclo que comprei para o meu neto. Anoto que, quando for à capital, não posso esquecer-me de levar os hoverboards das netas. Continuo com a minha investigação sobre quem terá sido o T. Noronha que escreveu Volupia que Salva. Graças ao cruzamento dos catálogos de duas bibliotecas municipais cheguei a uma tese verosímil. Trata-se de D. Tomás de Noronha (1870-1934), autor de umas memórias com o título De capa e Batina sobre a estúrdia coimbrã do seu tempo. O fidalgo cursou letras e, depois, teologia, tendo-se formado em ambas. Para teólogo não estava mal. Consta que, juntamente com um tal Pad-Zé e um Vicente Arnoso, foi um dos grandes animadores, em Coimbra, da boémia estudantil. Também escreveu, entre outras coisas sem relevo, um livro de versos com o título Tempos Perdidos. Talvez um sinal de arrependimento. Acabados os cursos foi para o Oriente, para exercer como professor de inglês e alemão no Liceu Nova Goa. A fidalguia já andava, naqueles tempos, pelas ruas da amargura. Na biografia que descobri – um texto hagiográfico da personagem – não consta a referência ao romance que narra os amores de Octavia e Valeria, mas verifiquei que é publicado pela mesma editora – a J. Rodrigues & Cª, sediada no 186 da Rua do Ouro, em Lisboa – que dá à estampa, como se dizia, as tais memórias de estudante. Posso ainda informar que em 1906, ao voltar das Índias, foi recebido e louvado pelo rei D. Carlos e pela rainha D. Amélia, devido a uma iniciativa sobre a Assistência Escolar aos indígenas (a palavra não é minha). Uma coisa é certa, contínuo a ser um repositório de informações inúteis, mas a verdade é que, com a idade, a fronteira entre o útil e o inútil se diluiu. Vou fechar as persianas que o sol voltou a ameaçar.

quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A volúpia das coincidências

Um aviso ao eventual leitor: estou sem assunto. Como não sofro da angústia da página em branco, talvez escreva sobre o magno problema das coincidências. Entre uma pilha de livros comprados, há uns anos, em segunda mão, ou terceira, sabe-se lá, encontro um romance com o título Volupia que Salva, obra de um tal T. Noronha. Quem é o autor ou por que razão possuo o romance não faço qualquer ideia. O livro chegou-me encadernado, em bom estado para a idade avançada. Folheio-o e deparo-me logo à entrada com duas citações de Safo e uma de Anacreonte. Leio as primeiras páginas e fico a saber que a Octavia Rodrigues Saavedra e a Valeria Prado têm um caso. Vejo que o livro tem quase cem anos e tento descobrir quem é o autor. Com esforço sou informado que o T. significa Tomás, portanto Tomás Noronha. Faço uma pesquisa por este nome e descubro que um conhecido locutor de televisão e escritor afamado tem como herói das aventuras com que ilumina o universo um Tomás Noronha. Bem, não será esse. Uma outra pesquisa diz-me que no século XVII houve um escritor, fiel escudeiro de D. Sebastião, com esse nome. Tanta fidelidade a D. Sebastião não lhe permitiria por certo tratar do affaire – estou mesmo velho – da Octavia e da Valeria, ainda por cima mulheres modernas. Coincidências, penso, mas quem no início do segundo quartel do século XX teria a ousadia de escrever um romance sobre os delíquios amorosos da Octavia e da Valeria? O que é espantoso, por falar em coincidências, é a seguinte informação, inscrita na última página impressa, que nos diz: Este livro acabou de se imprimir no dia 28 de Maio de 1926. No dia em que Portugal entrava naquele período em que qualquer volúpia, fosse de que cor fosse, deveria ser banida, e caso tivesse mesmo que ser, então que passasse à clandestinidade ou se desse no recôndito do leito matrimonial, com as excepções que todos sabemos, publicava-se um romance que proclamava a volúpia como salvação, talvez da alma, mas não posso assegurar. Independentemente de todas estas dramáticas coincidências, há uma coisa que me agrada em Tomás Noronha. Escreve crystal, condessa de Nellas, d’uma, etc. Portanto, um autêntico insurgente contra a pouco voluptuosa simplificação ortográfica de 1911. Um monárquico libertino.

quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A bailarina alemã

Depois da minha tarefa matinal de abrir e fechar persianas para conter os raios enviados pelos cacarejos do Sol, um exercício militar que executo com afinco, a primeira coisa com que me deparei, ao sentar-me à secretária e dar um giro pelos sites abertos no browser, foi com uma fotografia de uma bailarina alemã. Segundo a investigação que fiz, ela teria, no momento em que foi fotografada, no ano de 1910, dezoito anos. Tinha uma daquelas belezas que deixam o espírito perplexo e tomado por uma profunda dúvida. É um ser enviado do céu ou uma agente dos poderes infernais? Só uma mente ingénua – e ser ingénuo depois dos quarenta não é ingenuidade, mas burrice, como não se cansava de repetir há muitos anos uma amiga – poderia conceber a tortuosa ideia de que o belo e o bem são a mesma coisa. Independentemente daquela bailarina ter descido do céu para nossa salvação ou subido do inferno para a nossa perdição, a verdade é que uma beleza como a dela não merece o castigo que o passar dos anos impõe. Quando uma mulher é bela, a sua beleza, no momento em que atinge o zénite, deveria ser preservada dos efeitos do tempo, mesmo que vivesse cem anos. Chegada a hora da morte, seria arrebatada da vida ainda esplendorosa. Entre os vários homúnculos que habitam na caverna da minha consciência, há um com propensões igualitárias que, mal formulei o meu pensamento sobre o destino das mulheres belas, começa uma cantilena onde me acusa de injustiça, de ser um agente da discriminação, um racista estético. E por que razão os homens ou as outras mulheres, as que não receberam a graça da tua bailarinazinha, não deveriam ter a mesma sorte, interrogou-me. Não são todos iguais perante a lei ou, se quiseres, não são todos filhos de Deus, continuou ele. Respondi-lhe que não me interessava discutir as consequências da revolução francesa nem enredar-me em estéreis discussões teológicas. Que fosse para o fundo da caverna e se mantivesse invisível e inaudível. E, para o calar de vez, acrescentei que a verdadeira justiça é tratar como excepção aquilo que é excepcional. Ele lá se recolheu a murmurar slogans igualitários, enquanto eu dava uma última vista de olhos pela bailarina alemã e passava para o site da meteorologia.

terça-feira, 25 de agosto de 2020

Redução vocabular


São poucos os dias que Agosto ainda tem, antes que a sua folha morta caia da árvore do calendário. Por vezes, a retórica que uso dá-me vómitos. Dedilho-os, aos dias, como se não soubera contar e franzo o sobrolho. Por vezes, escrevo de noite recados para que faça alguma coisa quando a próxima manhã chegar, com a luz que for a dela. Raramente, olho para eles. Chega-me um vídeo do meu neto. Há duas palavras que ele domina na perfeição. Não e pára. Parecem-me óptimas e as mais adequadas ao tempo que vivemos. Também, caso pudesse ou tivesse coragem para tanto, resumiria o meu vocabulário ao advérbio não e ao verbo parar. A primeira utilidade seria a que deixaria de escrever estes textos, as outras, e não seriam poucas, revelar-se-iam com o tempo. Há uns anos, um amigo contou-me que uma pessoa da sua família foi encurtando, pouco-a-pouco, o vocabulário que usava, até que chegou o momento em que se recusou a pronunciar qualquer palavra. Ouvia os clientes do seu estabelecimento, mas nunca usava a voz para lhes dizer fosse o que fosse. Gestos de mãos, expressões de rosto, meneios corporais. Os clientes habituaram-se, não o abandonaram, e talvez um ou outro lhe tenha seguido o exemplo. Como dizia esse meu amigo, os bons exemplos devem frutificar. Por agora, seria menos radical, usaria ainda o advérbio não e o verbo parar. Voltar-me-ia para este Agosto prestes a render-se a Setembro e dir-lhe-ia: Não. Pára! Ele responder-me-ia na mesma moeda: Não paro. É o que faz a falta de assunto numa tarde de Agosto.

segunda-feira, 24 de agosto de 2020

Um sonho cinematográfico

Em 1955, o fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson visitou Portugal e fez um conjunto de fotografias que tem tido ao longo dos anos uma enorme fortuna. Hoje deparei-me com uma delas, extraordinária como as demais. Nos Jerónimos, junto a uma coluna, um confessionário minimalista, apenas um tabique de madeira, certamente com uma abertura velada por um gradeado que permitia falar e escutar e, ao mesmo tempo, manter secreta, ou quase, a identidade das confessadas. Sob essa abertura havia de ambos os lados apoios para os braços. Sentado de pernas abertas, o sacerdote, de cabelos brancos e trajado com a respectiva batina, escutava a longa confidência de uma mulher ajoelhada, vestida de preto até aos pés, véu negro sobre a cabeça. Olho a fotografia demoradamente e imagino o que poderia fazer a partir dela caso fosse realizador de cinema. Filmaria a mulher a levantar-se do confessionário, haveria por certo um zoom que permitisse apreender a elegância dela e acabasse por se centrar na beleza do rosto, acompanhá-la-ia no trajecto em direcção a um altar para cumprir a penitência, enquanto mostrava, em fundo, o sacerdote a erguer-se da cadeira e espreitar a mulher, tomado por uma curiosidade invencível. Nesse momento, ela voltava-se sorridente para ele que, ao sentir os olhos dela nos dele, estremecia e deixava aflorar um esgar de terror no rosto. A mulher que confessara, descobria então, era a sua própria morte. Portugal, naqueles tempos, era um país escuro, muito escuro, pensei, enquanto ouvia o correr da água que alguém num andar próximo deixava cair sobre umas plantas exaustas pelo calor. Uma sirene lembrou-me que deveria ir almoçar, pois o cinema não é coisa que me diga respeito.

domingo, 23 de agosto de 2020

Uma aventura ao domingo de manhã

Uma corrente de ar, uma porta que se fecha e não se abre, alguma coisa se terá desconsertado no trinco que o desligou do puxador. De súbito uma pessoa vê-se metida num sarilho. Preso num quarto, sem ninguém em casa nos próximos dias que, do outro lado da porta, a pudesse abrir ou pedir auxílio, sem telemóvel, com a vizinhança em registo de férias, sem qualquer ferramenta para enfrentar o delíquio da fechadura, sem talento para a mecânica, sem ter sequer tomado o pequeno almoço, sem poder sair por uma janela, pois não será agradável saltar de um quinto andar, e, talvez o pior, sem óculos. Foi assim que começou a meu dia. Como saí do imbróglio, ainda estou para perceber. Consegui tirar um parafuso com as mãos e depois de manipular o puxador para trás e para a frente, completamente ao acaso, ele lá se ligou ao trinco e, milagre, vejo-me fora do quarto. A realidade está cheia de surpresas, foi o que pensei quando me sentei a tomar o pequeno almoço, aliviado por estar livre, sem ter de recorrer a medidas drásticas de partir a porta ou coisa que o valha. É em momentos destes que considero que deveria ter treinado mais as minhas competências mecânicas, que são tendencialmente nulas. Lembro-me bem do martírio que foi, aquando do exame da quarta classe, ter de apresentar um trabalho manual. Era uma construção de um moinho que se tinha de recortar de uma cartolina e depois montar, fazendo dobras e colagens. Já o corte foi um suplício. Quando chegou à altura de colar, a coisa ficou negra. Colava de um lado, descolava de outro. Queixo-me à professora de que não era capaz de colar, ele pede-me para ver a cola. A cola é muito boa, diz-me, e dá-me de imediato três estalos na cara. Literalmente. O problema só podia ser meu. Era meu. Como consegui acabar aquilo não faço ideia. Deve ter sido como hoje consegui sair do quarto onde o destino me quis encerrar. Ao acaso. O que me vale é que hoje em dia as professoras já não batem nos alunos.

sábado, 22 de agosto de 2020

Inimigos de sábado

Quando acordei, eram oito horas, nem queria crer que hoje é sábado. Uma fúria sonora entrava-me pelo quarto, vinda da praceta em baixo. A empresa responsável pelos espaços públicos acha que o dia adequado para cortar relva é o sábado. Talvez as lâminas deslizem melhor, as folhas estejam mais aptas para o corte ou, uma hipótese, considere imoral as pessoas, no início do fim-de-semana, prolongarem o sono pela manhã. Não é que me levante mais tarde, mas acordar ao som da metralha dos corta-relvas não faz parte do melhor dos mundos possíveis. Levantado, comecei a barricar-me dentro de casa, fechando todas as janelas por onde outro inimigo, o sol, possa entrar. O combate com o astro, pensei enquanto descia as persianas, ainda não saiu da idade média. Há que construir muralhas e evitar que o inimigo possa passar por elas. Entretanto, o afã ruidoso suspendeu o massacre dos inocentes moradores, mas a manhã apresta-se para pôr fim à sua curta existência. Oiço vozes na rua, talvez pessoas na esplanada, enquanto me envolvo no manto sombrio da escuridão. Não tarda terei de ir à rua. Reparo que o word me assinala uma incorrecção gramatical, mas o domínio da gramática é uma competência que o word ainda está longe de ter adquirido com sucesso. Talvez um efeito da pandemia. Necessitará de aulas de recuperação, suponho.