quarta-feira, 26 de agosto de 2020

A bailarina alemã

Depois da minha tarefa matinal de abrir e fechar persianas para conter os raios enviados pelos cacarejos do Sol, um exercício militar que executo com afinco, a primeira coisa com que me deparei, ao sentar-me à secretária e dar um giro pelos sites abertos no browser, foi com uma fotografia de uma bailarina alemã. Segundo a investigação que fiz, ela teria, no momento em que foi fotografada, no ano de 1910, dezoito anos. Tinha uma daquelas belezas que deixam o espírito perplexo e tomado por uma profunda dúvida. É um ser enviado do céu ou uma agente dos poderes infernais? Só uma mente ingénua – e ser ingénuo depois dos quarenta não é ingenuidade, mas burrice, como não se cansava de repetir há muitos anos uma amiga – poderia conceber a tortuosa ideia de que o belo e o bem são a mesma coisa. Independentemente daquela bailarina ter descido do céu para nossa salvação ou subido do inferno para a nossa perdição, a verdade é que uma beleza como a dela não merece o castigo que o passar dos anos impõe. Quando uma mulher é bela, a sua beleza, no momento em que atinge o zénite, deveria ser preservada dos efeitos do tempo, mesmo que vivesse cem anos. Chegada a hora da morte, seria arrebatada da vida ainda esplendorosa. Entre os vários homúnculos que habitam na caverna da minha consciência, há um com propensões igualitárias que, mal formulei o meu pensamento sobre o destino das mulheres belas, começa uma cantilena onde me acusa de injustiça, de ser um agente da discriminação, um racista estético. E por que razão os homens ou as outras mulheres, as que não receberam a graça da tua bailarinazinha, não deveriam ter a mesma sorte, interrogou-me. Não são todos iguais perante a lei ou, se quiseres, não são todos filhos de Deus, continuou ele. Respondi-lhe que não me interessava discutir as consequências da revolução francesa nem enredar-me em estéreis discussões teológicas. Que fosse para o fundo da caverna e se mantivesse invisível e inaudível. E, para o calar de vez, acrescentei que a verdadeira justiça é tratar como excepção aquilo que é excepcional. Ele lá se recolheu a murmurar slogans igualitários, enquanto eu dava uma última vista de olhos pela bailarina alemã e passava para o site da meteorologia.

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