quinta-feira, 27 de agosto de 2020

A volúpia das coincidências

Um aviso ao eventual leitor: estou sem assunto. Como não sofro da angústia da página em branco, talvez escreva sobre o magno problema das coincidências. Entre uma pilha de livros comprados, há uns anos, em segunda mão, ou terceira, sabe-se lá, encontro um romance com o título Volupia que Salva, obra de um tal T. Noronha. Quem é o autor ou por que razão possuo o romance não faço qualquer ideia. O livro chegou-me encadernado, em bom estado para a idade avançada. Folheio-o e deparo-me logo à entrada com duas citações de Safo e uma de Anacreonte. Leio as primeiras páginas e fico a saber que a Octavia Rodrigues Saavedra e a Valeria Prado têm um caso. Vejo que o livro tem quase cem anos e tento descobrir quem é o autor. Com esforço sou informado que o T. significa Tomás, portanto Tomás Noronha. Faço uma pesquisa por este nome e descubro que um conhecido locutor de televisão e escritor afamado tem como herói das aventuras com que ilumina o universo um Tomás Noronha. Bem, não será esse. Uma outra pesquisa diz-me que no século XVII houve um escritor, fiel escudeiro de D. Sebastião, com esse nome. Tanta fidelidade a D. Sebastião não lhe permitiria por certo tratar do affaire – estou mesmo velho – da Octavia e da Valeria, ainda por cima mulheres modernas. Coincidências, penso, mas quem no início do segundo quartel do século XX teria a ousadia de escrever um romance sobre os delíquios amorosos da Octavia e da Valeria? O que é espantoso, por falar em coincidências, é a seguinte informação, inscrita na última página impressa, que nos diz: Este livro acabou de se imprimir no dia 28 de Maio de 1926. No dia em que Portugal entrava naquele período em que qualquer volúpia, fosse de que cor fosse, deveria ser banida, e caso tivesse mesmo que ser, então que passasse à clandestinidade ou se desse no recôndito do leito matrimonial, com as excepções que todos sabemos, publicava-se um romance que proclamava a volúpia como salvação, talvez da alma, mas não posso assegurar. Independentemente de todas estas dramáticas coincidências, há uma coisa que me agrada em Tomás Noronha. Escreve crystal, condessa de Nellas, d’uma, etc. Portanto, um autêntico insurgente contra a pouco voluptuosa simplificação ortográfica de 1911. Um monárquico libertino.

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