Deixei passar a tarde como água que se esvai entre os dedos. A imagem não é extraordinária e muito menos inédita. Talvez devesse ser acusado de plágio. Contudo, tenho uma teoria sobre o plágio e os plagiadores. O facto de usarmos palavras que foram criadas muito antes de sabermos falar é um exercício de plágio. Para designarmos uma laranja dizemos a palavra laranja roubada sabe-se lá a quem. Só não haveria plágio se inventássemos todas as palavras que usamos. Isso conduziria a uma cacofonia universal e a uma radical incomunicabilidade. Conclusão: o plágio é a condição de possibilidade da comunicação humana. Quanto mais plagiamos, melhor comunicamos. Há ainda o problema dos plagiadores, aqueles que são censurados moralmente e, talvez, juridicamente. Esses, em vez de censura, merecem piedade. Porquê? Porque têm um grande azar. Eu uso laranja, mesa, intervalo, tudo palavras que plagiei, mas ninguém me censura. Ora, os pobres plagiadores sofrem de falta de sorte. Imaginemos que alguém, numa tese de doutoramento, tem toda a tese ou parte substancial dela igual a uma outra que foi escrita antes por outra pessoa. O plagiador consegue um feito notável: escreve as mesmas palavras e na mesma ordem que o plagiado. Querem azar maior? Uma pessoa senta-se para escrever e, na sua inocência, escreve um texto exactamente — nos casos mais radicalmente azarados — igual a um outro que já existia. Com tantas combinações de palavras possíveis, é preciso mesmo grande falta de sorte para sair um texto igual, mas essas coisas acontecem. Todos conhecemos pessoas que têm azar. Ainda há pouco, ao passar por um canal desportivo, vi uma guarda-redes — era um jogo de futebol feminino — deixar escapar uma bola das mãos, vê-la passar sorrateira entre as pernas e entrar vagarosamente na baliza. Um azar. Acontece o mesmo com os plagiadores: deixam passar, por entre as mãos, as palavras organizadas por outros, e estas caem no seu texto.
terça-feira, 16 de setembro de 2025
segunda-feira, 15 de setembro de 2025
Meia efeméride
Efeméride. Chegou-se ao meio de Setembro. Então, não é uma efeméride, mas apenas meia efeméride. Concordo, pois hoje estou virado para a concórdia, mas não tanto para a concordância, o que é um perigo para quem escreve, ainda que coisas sem sentido. Não convém exagerar, e há que assegurar, por exemplo, a concordância entre sujeito e predicado. Discutível, oiço-me dizer. Imagine-se a frase: Ela corremos todos os dias. Uma frase lamentável, onde o sujeito não concorda em pessoa e número com o verbo. Contudo, a frase pode ser lida de modo mais fundo, percebendo-se que o eu está subentendido: ela (e eu) corremos todos os dias. As regras gramaticais são impotentes para dar conta do uso da língua, pois é tão importante o que se explicita como o que se cala. Podemos imaginar que o eu tem prazer em correr com ela, mas pretende guardar segredo linguístico. A sua omissão no sujeito é uma máscara, mas o verbo na primeira pessoa do plural é uma pista para quem queira descobrir com quem ela corre. O verbo “correr”, na expressão “correr com ela”, é ingrato: pode significar que eu e ela nos deslocamos juntos com rapidez superior à marcha, mas também que o eu corre com ela, a expulsa, a põe a milhas. Também é plausível que seja ela a correr com o eu, mas aqui entra-se no domínio da ascese: ela liberta-se do seu eu na busca de realização do self. Esta foi a minha comemoração da efeméride – ou meia efeméride – de 15 de Setembro. Amanhã será 16, e a temperatura disparará.
sábado, 13 de setembro de 2025
Uma alegoria
Diante de mim tenho um pequeno romance de Hermann Hesse. Há muitas décadas, li várias obras do autor alemão. Li-as com verdadeiro prazer: desde Siddartha até a O Jogo das Contas de Vidro, passando por O Lobo das Estepes ou Narciso e Goldmundo. Por volta dos trinta, tentei voltar ao autor, mas, ao fim de algumas páginas, abandonava enfastiado a obra. Vou tentar de novo: começo com o primeiro romance, Peter Camenzind, que nunca li. Se conseguir ler a obra romanesca de Hesse, então sei que estou já num processo de regressão. Ficarei a aguardar o momento em que procurarei as edições antigas da Romano Torres das Aventuras de Pinóquio, tendo antes passado por Enid Blyton e por outros autores que não vêm agora ao caso, sem esquecer as aventuras de Jaime Eduardo de Cook e Alvega, o famoso Major Alvega da colecção Falcão. Do Pinóquio aos grandes autores da literatura universal, e retorno à casa da partida: eis uma alegoria sobre as limitações do mito do progresso.
sexta-feira, 12 de setembro de 2025
Meditação
A semana útil termina hoje, mas para mim a utilidade desvaneceu-se. Entrei pela casa da inutilidade e estou nela como quem está numa casa de repouso, embora não saiba que tipo de casa é esta, pois nunca me repousei por lá. Talvez já não existam casas de repouso. Há estabelecimentos – ou designações de estabelecimentos – que o tempo, com os seus dentes aguçados, devorou. Uma dessas designações desaparecidas é a de casa de pasto. Não havia vila ou cidade que não tivesse a sua casa de pasto. Depois, sem me darem qualquer explicação, desapareceram. Seriam uma solução intermédia entre a taberna e o restaurante, um lugar onde se comia barato. Hoje, os portugueses já não têm onde pastar, mas também os seus gostos começam nos restaurantes com estrelas Michelin e terminam sabe-se lá onde. Estou a cometer uma falácia, a da generalização precipitada, mas este é um tempo de falácias. Quanto mais falácias um indivíduo mobilizar nas suas arengas, e quantas mais mentiras contar, mais digno de crédito se torna no auditório universal. Universal referente aos portugueses. Não é que os outros auditórios sejam diferentes, mas conheço melhor o nacional. E este é o que é. Não há nada que uma boa tautologia não resolva, e «é o que é» será a melhor de todas as tautologias. Em vez de explicar, afirma a existência. E se existe, então não precisa de explicação ou de justificação. Isto recordou-me uma antiga idiossincrasia pátria coeva das casas de pasto. Para certos – e não seriam poucos – assuntos de ordem burocrático-legal, não bastava o bilhete de identidade: era preciso uma certidão de nascimento passada no registo civil. A medida justificava-se plenamente, não fosse o portador do bilhete de identidade estar ali e não ter nascido. Era uma coisa frequente, naqueles dias, andarem por aí pessoas que, apesar de devidamente identificadas, não tinham nascido. Eram os chamados vivos não nascidos. Hoje, o Estado português já não se importa que possam existir pessoas que não tenham nascido: deixa-as andar por aí e não exige certidão de nascimento. Se se descobre algum cidadão não nascido, é obrigado a pagar uma coima, pois ninguém imagina como seria possível obrigar a nascer alguém que existe mas não nasceu. A coima é mais sensata e rentável. Perdi-me na meditação. Vou repousar e, depois, procurar uma casa de pasto.
quinta-feira, 11 de setembro de 2025
O filho do sapateiro
Ontem referi o estranho caso de Manuel Ribeiro. Protelei na revelação da sua estranheza. Nasceu em 1878, em Albernoa, filho de um sapateiro, e morreu em 1941. Por norma, conta-se que foi um dos fundadores do Partido Comunista Português e que, posteriormente, se converteu ao cristianismo. Ora, a história é mais complexa. É um facto que foi eleito, em 1920, para a comissão organizadora do Partido Comunista. Em 1921, foi eleito para a Junta Nacional do Partido e, imagine-se, foi enviado a Moscovo, ao III Congresso do Comintern (Internacional Comunista), como delegado da Secção Portuguesa. Antes disso, tinha escrito no jornal anarquista A Batalha e fora secretário da Comissão Executiva da Federação Maximalista Portuguesa e director do jornal A Bandeira Vermelha. A lista da sua actividade revolucionária é maior, incluindo o sindicalismo revolucionário. É provável que seja após 1921 que ele se desliga deste mundo, mas a sua atracção pelo cristianismo e pela vida espiritual católica é bem anterior. Em 1920, publica o romance A Catedral, onde é muito clara essa aproximação. No ano de 1916, publica no jornal A Capital artigos sobre literatura monástica. A estranheza reside nesta dupla atracção – pelos valores do cristianismo e pelos ideais revolucionários – num tempo em que a adesão a uns implicava a negação dos outros. Quem ler A Catedral, sem saber estes traços biográficos, nunca imaginará que o autor é um dos fundadores do Partido Comunista Português, que também é um estranho caso, e que, de algum modo, se liga a Manuel Ribeiro. Enquanto a generalidade dos partidos comunistas nasceu de cisões nos partidos sociais-democratas, o português nasceu a partir de um grupo de anarquistas, como o terá sido Manuel Ribeiro. Se se deixar de lado a espuma dos dias, o caso de Manuel Ribeiro deixa de ser estranho. Os credos anarquista e comunista são laicizações do credo cristão, devendo-lhe muitas das suas ideias. Manuel Ribeiro terá pressentido isso. Descobriu, porém, que o original era preferível aos sucedâneos – simulacros poderá ser o termo mais exacto – e abandonou a ideia de um paraíso na Terra. É pena que já não seja lido. Também é verdade que um leitor actual teria de o ler com um dicionário à mão, tal a riqueza do vocabulário deste filho de um sapateiro.
quarta-feira, 10 de setembro de 2025
Uma visita a Lisboa
Chegado hoje a casa, em fuga do mau tempo na Figueira, encontro na caixa do correio um livro que tinha comprado num alfarrabista online. Não se trata, na realidade, de um verdadeiro livro, tal como o imaginamos, mas de uma brochura, de pouco mais de trinta páginas. Foi publicada em 1922 e contém uma novela de Manuel Ribeiro, A Madona do Convento. Faz parte de uma colecção lançada pela revista mensal Contemporânea, que parece ter tido notoriedade naqueles anos. Talvez um dia, caso me lembre, escreva sobre o estranho caso de Manuel Ribeiro. A brochura apresenta na capa a identificação do comprador. Um certo António, cujo apelido omito, apesar de explícito, comprou-a em 1923. Custou, segundo a indicação da badana da capa, um escudo, o preço de qualquer uma das novelas da colecção lançada pela revista. Do proprietário, não consigo descobrir mais nada. Terá lido a novela? Nada há que permite dizer que sim ou que não. Descobrem-se, porém, coisas interessantes. Há uma lista de autores de novelas e nessa lista, de acordo com uma prática antiga, os licenciados surgem com o título de dr. no nome. Por exemplo, a novela número 2 é do Dr. Feliciano Santos. Descubro, também, que o melhor chocolate é o da Leitaria Portugália, na Rua do Ouro, que também tem a melhor doçaria regional. Por outro lado, se alguém quisesse mandar imprimir livros de luxo ou revistas ilustradas, podia ia à Imprensa Libânio da Silva, na Travessa do Fala-Só. E fotogravuras? Na Fotogravura Nacional Ld.ª, na Rua da Rosa. Se o problema era comprar um relógio ou um anel, uma jóia, na Praça dos Restauradores, Júlio Rei, Ld.ª seria um destino a ponderar. Contudo, se o problema era barbear-se ou tratar das unhas, o Salão Modelo de Pereira & Brio esperava o cliente no número 94 da Rua dos Fanqueiros. Isto no ano de 1922, há 103 anos. E também se descobre onde era a sede da Contemporânea. No segundo andar do 53 da Rua Nova do Almada. Lisboa era pequena, os portugueses eram, em grande percentagem analfabetos, mas os romances de Manuel Ribeiro – tanto A Catedral como O Deserto – já iam na terceira edição, o equivalente a oito milhares. E o que trata a novela? De uma Madona, claro.
terça-feira, 9 de setembro de 2025
Outros mundos
Procurei, durante o dia, um poema que fosse pequeno e que nele contivesse uma porta para outro mundo. Encontrei-o há pouco, de Emily Dickinson: Uma sépala, uma pétala e um espinho / Numa vulgar manhã de Verão — / Um frasco de Orvalho — uma ou duas Abelhas — / Uma Aragem — um volteio nas árvores — / E sou uma Rosa! Mas este não será o nosso mundo? Claro que não. Este é o mundo onde o sujeito do poema – como é insuportável a expressão sujeito lírico – é um ser do mundo vegetal. Entramos nele e vemos rosas que não as nossas rosas, mas seres dotados de consciência, pensamento e linguagem. Não são mudas nem surdas, e não estão presas ao solo. Pelo contrário, caminham e voam, talvez nadem, mas não tive tempo de averiguar. A estadia nesse lugar é excessivamente cara, alguns minutos ainda se podem comprar, mas há que ter cuidado para não se ficar falido para o resto da vida. De resto, a contabilidade sempre teve um contencioso com a poesia e ainda mais com a poesia dos mundos possíveis. Vi o que me foi possível e paguei o que pude. Agora, estou sentado no quarto de hotel, olho o mar e recito baixo o poema da Dickinson. Espero uma rosa, ou uma Emily, ou uma poetisa vinda de um outro mundo possível.
segunda-feira, 8 de setembro de 2025
Coincidência
Sentado na varanda do hotel, olho o mar. Este, porém, está longe, pois o areal parece não ter fim. A nortada agita o arvoredo, fustiga as bandeiras que nunca faltam em lugares de veraneio, o sol hesita entre o vigor de Junho e o cansaço de Novembro. Imagino que um dos encantos da Figueira da Foz seja esse: uma promessa de oceano que parece retroceder a cada passo. Daqui a pouco irei caminhar, talvez me aproxime das águas, se os passadiços me levarem até lá. Respiro o ar marítimo trazido pelo vento, observo o movimento na marginal e penso que Setembro deixou de ser um dos meses de férias, apesar de ainda haver pessoas a fazer a grande travessia das areias até chegarem perto do mar. Hoje, sabe-se lá porquê, tenho-me lembrado dos tempos de escola, dessas férias grandes, tão grandes que só o Outono, e não de imediato, lhes punha fim. Gostava particularmente do mês de Setembro, mas não me lembro das razões. Talvez não as tivesse ou ainda não me preocupasse com elas. Gostava porque gostava, e isso era tudo. Coincidia comigo, na inocência que me cabia naqueles dias. Perde-se a inocência quando se descobre que não se coincide consigo mesmo ou, para ser mais exacto, quando a coincidência consigo se torna um projecto, ou uma doença, o que será a mesma coisa.
domingo, 7 de setembro de 2025
Tempo
Sem se dar por isso, a primeira semana de Setembro – sete dias exactos – está consumada. Faltam ainda umas horas, é certo, mas elas apressar-se-ão a esgotar-se. Talvez o tempo não exista. Para onde vão os dias que acabam? Nunca ninguém encontrou vestígio de nenhum. É certo que não é prova suficiente para negar a existência do tempo o facto de ninguém ter encontrado vestígios de um dia que passou; contudo, pode ser razão suficiente para tornar plausível a sua inexistência. Fomos habituados a pensar na existência do tempo. Esse hábito, todavia, não se deve a uma experiência real do tempo, mas à necessidade de ordenar a nossa existência. Transferiu-se uma crença utilitária para uma crença ontológica. Isto quer dizer: transformou-se a utilidade para os nossos negócios de ordenar as coisas em sequências – umas vêm antes de outras, outras acontecem em simultâneo e outras, depois – numa realidade a que se dá o nome de tempo, mas essa transformação é subjectiva e pode não corresponder a nada de efectivamente real. Não devia pensar nestas coisas ao domingo. É dia de descanso e o pensamento – por fútil e incompetente que seja – também precisa de sossego, mesmo que, durante o resto da semana, seja pouco dado ao trabalho. O dia, por aqui, nasceu chuvoso, mas agora debita uma luz açucarada que banha o telhado do pavilhão desportivo da escola aqui ao lado, que responde com uma reverberação anémica. Na avenida, os carros passam devagar, sem motivação para chegar a segunda-feira, enquanto os peões seguem a sua transumância habitual dos domingos. Caminham para aqui e para ali, sem destino, mas apenas porque é domingo e eles não sabem o que fazer com esse dia. Nem eu.
sábado, 6 de setembro de 2025
Hábitos
O sábado começou com uma ruptura com as rotinas ultimamente instaladas. Levantei-me demasiado tarde para ir caminhar. Portanto, a rotina ainda não é um verdadeiro hábito. Se o fosse, ter-me-ia levantado mais cedo, apesar das razões que tive para o não fazer. Aristóteles definiu o hábito como uma segunda natureza. Como muitas coisas que provêm de Aristóteles, também esta ideia deveria fazer parte do senso-comum da época. Ele registou-a, dando-lhe um relevo que, sem esse acto de registo, não existiria. Diante de mim tenho um livro publicado no final do século XVIII. Questiona duas coisas: o fundamento da autoridade e o dever de obediência. A resposta que o autor dá não vem para o caso, mas eu poderia dizer que ambos se devem ao hábito. Uns habituam-se a mandar e outros a obedecer. O que conduz a uma conclusão inesperada: não há uma humanidade, mas duas humanidades, a humanidade que manda e a humanidade que obedece. A pergunta que surge é se essas espécies, caso se cruzem, darão origem a um novo ser ou se esses eventuais cruzamentos serão estéreis. Imagino, mas imagino apenas, que ainda não serão completamente estéreis. As razões, porém, não são fundadas em dados empíricos, mas numa intuição. A educação daqueles que se habituaram a mandar destina-se a que os novos membros da espécie evitem cruzar-se com alguém que esteja habituado a obedecer. Seja como for, é muito possível — contam-se histórias — que existam híbridos, o que será sempre um problema, mais para quem pertence à espécie obediente do que para quem pertence à espécie mandante. A hibridação, caso seja verdade, mostra, porém, que a teoria aristotélica do hábito apresenta alguns problemas. Confesso que me falta assunto. Poderia falar do romance Ave do Paraíso, de Carlos Selvagem, mas nunca o li.
sexta-feira, 5 de setembro de 2025
Caminhar
Começo, agora, os dias com uma caminhada. Saio ainda o ar da manhã está fresco e são poucas as pessoas em circulação. Se me atraso um pouco, porém, já encontro pais a deixarem crianças nos infantários e algum movimento perto dos cafés. Num dos parques da cidade, deparo-me todos os dias com um grupo de imigrantes vindos da Ásia, talvez do Paquistão, mas não sei. Estão divididos em duas equipas e jogam futsal, num campo para o efeito mas a céu aberto. É a sua preparação para o dia de trabalho. A forma como gritam durante o jogo é em tudo idêntica ao que fazem os portugueses, só que a letra é, para mim, incompreensível. Pela música que emana da disputa, porém, quase sei o que estão a dizer. Quando caminho ao anoitecer, também se joga no mesmo campo, mas agora é gente mais nova, em idade escolar, e muito misturada: portugueses, brasileiros, angolanos. Enquanto o jogo matinal é exclusivista, o vespertino é abrangente, pois não só alberga múltiplas nacionalidades – mas apenas uma língua – como existe sempre uma rapariga, por vezes duas, entre os jogadores, bem como um atleta de cadeira de rodas, que toma parte no jogo, umas vezes como guarda-redes, outras como jogador de campo. Enquanto caminho, deixo que a cidade invada os meus olhos e descubro-a sempre diferente, apesar da aparente imutabilidade com que ela se apresenta à razão. Este é o velho conflito entre Parménides e Heraclito: onde o primeiro vê a imutabilidade do ser, o segundo considera tudo em devir, um fluxo perpétuo. Enquanto caminho, sou os dois ao mesmo tempo. Os meus olhos são os de Heraclito; o pensamento, porém, está fidelizado – tal como um cliente a uma operadora de telecomunicações – a Parménides.
quarta-feira, 3 de setembro de 2025
Descobertas tardias
Hoje passei pela Biblioteca Municipal. Descobri que ali havia a velha tradução de Paulo Quintela de Os Cadernos de Malte Laurids Brigge, de Rainer Maria Rilke – sim, Rilke mais uma vez. Eu tenho uma outra tradução da obra, a de Maria Teresa Dias Furtado, para a Relógio d’Água. A do professor Paulo Quintela foi publicada pela Editorial Inova, do Porto. Percorro-lhe as páginas e irrito-me. Existem sublinhados e anotações nas margens. É certo que são feitos a lápis, mas o livro é público e o seu utilizador não tem o direito de o conspurcar com os seus pensamentos, se é que são pensamentos. Eu sei que existe, na mesma biblioteca, um outro exemplar. Faz parte do espólio deixado por alguém que conheci. De súbito, retornou, vinda de um tempo arcaico, a sua imagem de mulher, um pouco descompassada das imagens das outras mulheres – raparigas, quero eu dizer – que por aqui havia. Enquanto viveu, nunca soube que lia Rilke e, agora que o sei, desconfio que esse meu não saber talvez tenha sido uma perda irremediável. Há coisas que se descobrem demasiado tarde. Se fosse o seu exemplar que estivesse nas minhas mãos, aquelas podiam ser as suas palavras, e eu haveria de as ler como se fossem uma revelação.
terça-feira, 2 de setembro de 2025
Doença, morte, política
Recebi hoje um grosso volume com as cartas de Rainer Maria Rilke sobre política. A primeira carta, enviada de Praga, é de 29 de Janeiro de 1896, e a última, enviada da clínica de Val-Mont, s/Terriet, p. Glion (Vaud), no dia 21 de Dezembro de 1926. O poeta morrerá oito dias depois, a 29 de Dezembro. A carta — apenas algumas linhas — é dirigida ao poeta Jules Supervielle, como agradecimento de algo não especificado. Não há, em momento algum, qualquer alusão à política. A carta começa dizendo: Gravemente doente, dolorosamente, miseravelmente, humildemente doente… O que há nela é a declinação em vários tons da doença, o pressentimento da iminência da morte. Dir-se-á que, no âmbito de uma biopolítica, nem a doença nem a morte estão fora da política. Pelo contrário, estão no seu centro, são o seu tema decisivo. Mesmo a doença e a morte privadas de um poeta são casos políticos. Não encontro outra explicação para que os editores tenham integrado a mensagem para Supervielle no âmbito da correspondência rilkeana sobre política. Muito provavelmente, Rilke terá morrido na clínica. Esta, porém, ainda existe. Comemora os 120 anos. As instituições são mais duradouras do que os homens. Isso é uma coisa boa, pois, quando um ser humano vem ao mundo, precisa de instituições que o acolham e dêem um significado, mas não um sentido, a essa vinda à existência.
segunda-feira, 1 de setembro de 2025
Um regresso
De regresso a casa, escutava a Antena 2. Um programa sobre a música no cinema. O de hoje era dedicado a uma obra extraordinária, a Flauta Mágica, de Ingmar Bergman. Um filme que faz cinquenta anos. Ora, vi-o pela primeira vez, ainda nos anos setenta do século passado, no cine teatro daqui, num ciclo dedicado ao cinema do realizador sueco. Bergman não se limitou a gravar uma ópera, produziu uma obra de arte onde a ópera de Mozart, a encenação teatral e a sua linguagem cinematográfica se conjugaram para produzir qualquer coisa que me deixou completamente perplexo. Claro, a célebre ária onde a Rainha da Noite, Birgit Nordin, atormenta Pamina, a filha, mas também as figuras de Papageno e de Sarastro, ou o próprio conteúdo iniciático da ópera de Mozart. Foi também nesse ciclo que vi, pela primeira vez, Morangos Silvestres, talvez o filme de Bergman que mais vezes vi. Já não consigo precisar o ano em que isso aconteceu e uma pesquisa online não me forneceu qualquer indicação. Talvez porque um ciclo de Bergman numa vila de província seja uma coisa inverosímil, uma espécie de sonho ou uma fantasia. Caminho para a idade de Isak Borg, o protagonista de Morangos Silvestres, mas ainda não terei atingido a sabedoria de Sarastro, da Flauta Mágica. A cada um os seus limites e também as suas perfeições.
domingo, 31 de agosto de 2025
Mar de Setembro
Na esplanada, via-se, na linha do horizonte, o mar fundir-se com o céu, nessa zona de indistinção onde qualquer mundo se torna possível. O sol dardejava, a espaços, a areia, para logo se ocultar atrás de nuvens viandantes, nuvens de cinza, neve e alcatrão que se dirigiam para aquele lugar onde todas as nuvens se reúnem. Está um mar de Setembro, disseram-me. Concordei, o mar de Setembro tem uma natureza própria, ondula de outra maneira, mistura o branco da espuma e o turquesa das águas como se fosse uma anunciação. Não de um deus por vir, mas do fim de uma estação ou a aproximação de uma outra. Fiquei ali, diante daquele mar setembrino, contemplando o ir e vir das ondas, o exercício dos surfistas, a passagem de algum barco em direcção a um porto que desconheço. Talvez, pensei, venha de um daqueles mundos possíveis e se dirija para um porto num mundo impossível. Devemos esperar que as coisas mais inusitadas aconteçam, pois se nós próprios, com a vinda à existência, somos uma prova de coisa inusitada, por que não esperar que outras – talvez, menos inverosímeis – possam acontecer? Claro que podem, murmurei, enquanto o sol rompia, de novo, a muralha das nuvens.
terça-feira, 26 de agosto de 2025
Um mundo ruidoso
Retorno depois de prolongadas férias. Isso não significa que não continue em férias, pois a realidade deixou de solicitar a minha atenção. O mundo dispensa os meus afazeres e concede-me a graça de dispor do tempo que resta, seja lá ele qual for. Talvez devesse ter recomeçado de outra maneira: Vim da casa do silêncio e, agora, tomo a palavra. Diante de mim está um livro publicado pela Quetzal, com uma belíssima capa. O autor é Alain Corbin e o título, História do Silêncio. O Prelúdio da obra começa assim: O silêncio não é apenas ausência de ruído. Nós quase o esquecemos. As referências auditivas desnaturaram-se, enfraqueceram, dessacralizaram-se. Intensificaram-se o medo ou mesmo o terror suscitados pelo silêncio. Agora, estou envolvido pelo ruído. Máquinas em trabalho. Uma azáfama planeado no gabinete de algum demónio apostado em fazer perder a cabeça até a um santo. O mundo tornou-se num lugar em que o silêncio é um bem escasso e, por certo, haverá um mercado para o vender. Aquilo que inunda o mundo de ruído é também o que mercadeja o silêncio. Pode-se mesmo pensar que a omnipresença do estardalhaço foi uma estratégia para tornar o silêncio uma mercadoria mais valiosa do que qualquer outra. Se fosse economista, com ambições a crítico social, coisa que não sou, diria que houve uma apropriação por alguns de um bem que era de todos. O melhor é continuar a ler Corbin: No passado, os ocidentais desfrutavam a profundidade e o sabor do silêncio. Consideravam-no como condição do recolhimento, da escuta de si mesmo, da meditação, da oração, do devaneio, da criação; sobretudo como lugar íntimo do qual a palavra emerge. Uma máquina ronca, outra troa, uma outra estrondeia. Não tarda, e surgirá a que ribomba. O demónio ri no seu escritório, o plano de negócios cumpre-se com eficácia. As almas perdem-se no meio de tanto barulho. Ou não se encontram, para ser mais preciso, pois a condição de qualquer alma é de andar perdida à procura do caminho. Um súbito silêncio. Não, apenas uma pequena ausência de ruído.
domingo, 3 de agosto de 2025
Nevoeiro
Hoje é domingo. Escrevo-o para não me esquecer. Levantei-me cedo e fui caminhar também cedo. O molhe estava livre, mas o nevoeiro era tanto que não se via o farol que termina o espigão que dilacera o mar. Por aí fui, envolto numa penumbra que anunciava o regresso de D. Sebastião. O porto, logo ali, era um belo sítio para que o desgraçado rei chegasse à pátria que o viu partir para nunca mais regressar. Quero dizer: para ainda não ter chegado. Como é hábito seu, D. Sebastião recusou-se a voltar, continua emigrado, ninguém sabe onde, não se importando ele com o ódio tecido em volta dos imigrantes, pois, onde quer que esteja, o nosso rei é um imigrante, que haverá quem queira expulsar, pois não percebe que é um rei, daqueles antigos, um monarca garboso, cavaleiro como D. Quixote. Quando voltar, no dia que lhe der na veneta, vai descobrir que o trono dele foi ocupado por outro, por outros, até por três espanhóis com o mesmo nome — que é a mesma coisa do que não ter nome —, e que agora já não há tronos, que a potestade é republicana e, se ele quiser ser o número um, como era quando partiu, tem de ir a eleições, fazer-se eleger e ser proclamado Presidente da República e, caso tenha talento, estar dez anos a presidenciar, para depois se retirar para Alcácer Quibir ou, se tiver algum trauma com Quibir, poder ser mesmo ali mais abaixo, para Alcácer do Sal, para depois passear pelo litoral alentejano em vez de ir matar mouros e acabar morto, sabe-se lá onde, com o reino a definhar e ninguém sem saber dele, só promessas de que haveria de voltar — e ainda hoje estamos à espera —, e sempre que há grandes nevoeiros, vai tudo para as praias e diz: é desta. Mas nunca é desta. Resta-nos esperar, mesmo aos republicanos, pois também estes têm o seu fraco pelo rei que se perdeu no caminho, não sabe onde é a pátria de onde partiu, falta-lhe um bússola e um mapa, talvez um GPS ajudasse ou o Waze e o Google Maps. Tivesse ele uma Penélope, e faria como Ulisses: voltaria, apesar dos trabalhos, mataria os pretendentes e cairia nos braços da mulher amada, sem notar que o rosto desta já tinha algumas rugas, pois o desejo do seu corpo era tanto que não havia rugas que o matasse. Mas o pobre rei foi desavisado, embarcou para a sua Tróia sem uma Penélope e agora, como uma alma penada, anda perdido por esse mundo — e nós, sempre que há nevoeiro, vamos para as praias à espera dele —, mas ele não volta. Um incómodo, pois uma nação inteira não pode estar sempre a caminhar para a praia só porque está nevoeiro, isso dá cabo da produtividade nacional, o PIB não sobe só porque vamos para a praia, mal um nevoazinha surge no horizonte, e olhamos, olhamos, olhamos, mas se aparece algum barco, não nos traz um rei, apenas sardinha e pouca, ou é um veleiro de um americano em férias, ou é um navio fantasma de corsários mortos há muito. E o PIB fica sempre aquém da expectativas, tudo por causa desta mania de ir esperar um rei que não quer, ou não pode, ou não sabe como voltar.
sábado, 2 de agosto de 2025
Desastres naturais
Há por aqui festejos; ouvem-se vozes ampliadas por potentes colunas, também um foguetório sem fim, depois uma espécie de música ao gosto popular, cada uma pior do que a anterior. Um desastre, ou a combinação de múltiplos desastres. Para piorar as coisas, o molhe estava interdito a caminhantes e pescadores: preparavam-no como ponto de lançamento de fogo de artifício que há-de abrilhantar os festejos. Como encarar estes acontecimentos? Como se encaram as tempestades, os tufões, os ciclones, os tsunamis. São coisas da natureza que não se tem – ainda não se tem – o poder de evitar. Os festejos populares, mais do que acontecimentos culturais, devem ser interpretados como episódios naturais. Neles manifesta-se a natureza humana, e ainda não se descobriu como evitar tudo aquilo. Serão reminiscências de épocas arcaicas – talvez ainda pré-humanas – em que certos episódios geravam uma grande confusão, um enorme alarido, uma tremenda algazarra. Com o passar dos milénios, o processo foi-se suavizando, deu-se-lhe o nome de festa, mas ainda está longe – muito longe – de se ter tornado razoável. Talvez tenha dormido pouco, pois a açougada vai pela noite fora, não deixando dormir mesmo quem está longe. A inclinação misantropa incendiou-se – talvez seja do calor, que agora chega em vagas, uma espécie de ondas gigantescas feitas de temperaturas elevadas e que não param de crescer, de se elevar, desejosas de tocar nos céus. Enquanto o mundo arde, as festas continuam, com aquela música ronceira, o vozear aviltante da razão humana, o foguetório inútil, que há-de trazer um fogo de artifício cheio de lágrimas – as lágrimas de quem não pode dormir, dos animais assustados, das plantas que amam tanto o silêncio que se tornaram mudas.
sexta-feira, 1 de agosto de 2025
Correspondência
Julho despenhou-se no grande abismo onde todas as coisas se precipitam, mal chegue a hora da precipitação. Para o seu lugar, veio Agosto, um mês dedicado ao imperador Augusto, como aquele que acabou pagava tributo a Júlio César. Há meses atraídos por imperadores, outros por deuses, outros nem se sabe bem por quem. Recebi uma encomenda de livros vindos da Alemanha, comprados num alfarrabista online. São romances alemães. Como vou lê-los, eu que não sei alemão, pode perguntar-se. Irei lê-los, mas omito o processo. Não serão os primeiros, nem os segundos, nem… que lerei desse modo, aqui omitido. O importante, porém, é que num deles vinha um postal datado de 2 de Agosto de 2017. Fará amanhã oito anos que foi escrito por uma mulher alemã para uma amiga, também alemã, que, lido o postal, o guardou dentro de um livro que acabou por vender. A receptora tem o apelido de um importante músico do romantismo alemão, um compositor de que gosto bastante. O seu nome próprio é belíssimo em alemão e também é de bom gosto em português — por acaso, o nome de uma tia-avó minha e o feminino do nome de um dos meus bisavôs. O postal reproduz, em fotografia, duas focas-cinzentas e três ostraceiros (Haematopus ostralegus), sendo um deles um junior, ainda sem a belíssima aparência dos adultos. E o que diz o postal? Transcrevo, omitindo os nomes: Querida ..., A grande onda de calor passou; com 18º–20º, sol e vento, aguenta-se bem. Tomamos banho no mar todos os dias e já contornámos várias vezes o extremo norte da ilha. Com a … e o … tornou-se tudo mais animado, mas também mais cansativo. Agora, a última semana de férias está quase a terminar. Até breve, com muitas saudações luminosas da … E eu fico a imaginar quem será a mulher com nome musical e se aquela que lhe escreve está em férias familiares. Serão ainda todos vivos, as quatro pessoas envolvidas no postal? E elas continuarão amigas? A que escreve, por certo, está preocupada com o ambiente, pois o postal tem a seguinte mensagem: Com a aquisição deste postal, está a apoiar a protecção da natureza e das aves marinhas. Saiba mais sobre nós em… Também não é sem interesse o selo, com uma paisagem da Suíça Saxónica, que nada tem que ver com a Suíça. Um postal de férias, no primeiro dia em que entrei numas férias das quais não terei de regressar, pois agora só haverá férias diante de mim — férias ininterruptas das funções exercidas até que chegue o dia das férias eternas da existência, a hora de me precipitar no abismo em que Julho se precipitou.
quinta-feira, 31 de julho de 2025
Convicções
Alguém disse alguma coisa com a qual discordo. Há, na afirmação, um grande equívoco. Terei desfeito o equívoco? Não. Apenas encolhi os ombros, pois a convicção com que aquilo fora dito é ainda maior que o equívoco. A convicção não nos diz nada sobre a relação da crença com a verdade, mas diz-nos muito da relação da crença com a identidade da pessoa. Quem está disposto a uma crise de identidade só para adquirir uma crença verdadeira? Se tentamos descobrir quem somos, a única coisa com que nos deparamos são convicções. Se estas são postas em causa, ficamos ameaçados. Por isso, a ideia iluminista do esclarecimento, do desfazer dos equívocos, choca sempre com uma realidade que resiste em nome da existência. Por isso, mudar de ideias ocorre apenas naquilo a que se dá o nome de conversão. Veja-se o caso de Paulo de Tarso: de zeloso perseguidor de cristãos, por conversão transformou-se em zeloso pregador do cristianismo. A sua mudança de convicção – e Paulo era um homem de convicções – não se deveu a nenhum esclarecimento, apenas a um acontecimento inexplicável. O melhor que posso fazer por alguém que, convictamente, está errado é desejar que encontre a sua estrada de Damasco.