quarta-feira, 10 de julho de 2019

Cirurgia ocular

Passei a manhã como acompanhante – honni soit qui mal y pense! – de paciente que, na ânsia, sabe-se lá se fundada, de ver melhor o mundo, decidiu submeter-se a uma cirurgia aos olhos, a um, para ser mais exacto. A exactidão, nestas coisas da medicina, é essencial, como logo nos apercebemos mal entramos em contacto com um desses seres mitológicos a que, por reverência, se dá o nome de médico. E enquanto aguardava o desenrolar das operações, para poder executar a função a que me propusera, fui adentrando-me na vida dos outros. Coscuvilhar, para ser mais fiel à atitude que foi, durante a manhã, a minha. Preocupei-me, não sem condescendência, com as hesitações e as dores das primas Garman, Rachel e Madeleine. Cansado de desventuras no feminino, passei para o destino do garboso e recém promovido capitão Giovanni Drogo. Quando o rescaldo da intervenção cirúrgica terminou, estava eu a pensar que este interesse pela vida de terceiros, ainda por cima gente de papel, não prognostica nada de bom sobre a minha índole. Uma pessoa decente, por parcos que fossem os seus talentos, empregá-los-ia na criação de riqueza, ou na libertação da humanidade ou, mesmo, na salvação do mundo. Todas estas nobres actividades, porém, não estão no meu horizonte. Olho-as e não consigo ver nada. Talvez também eu precise de uma cirurgia ocular.

2 comentários:

  1. Também já fiz de acompanhante em cirurgia ocular, mas estava demasiado nervosa,
    preocupada, não consegui ler um livro.
    Agora estou a assar em lume brando aqui na minha sala, virada a sul e oeste, sem ar condicionado; pela temperatura reinante, diria que estou no Deserto dos Tártaros, mas não, estou mesmo em Portugal, na raia beirã.
    Será que vou conseguir sair daqui? Humm, parece-me que vou ser como o capitão Giovanni Drogo.

    Maria

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    1. Portugal está a torna-se um deserto dos tártaros. E não sei se haverá lugar para onde ir.

      HV

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