quarta-feira, 14 de outubro de 2020

De perder uma alma

Antes de termos chegado ao lugar onde estamos, na escola aqui ao lado havia um conjunto musical, a que eu dava o nome de grupo de baile. Nas tardes de quarta-feira, a banda dedicava-se a ensaiar êxitos dos anos sessenta e setenta do século passado, num exercício de nostalgia que sempre achei estranho num sítio povoado por gente nascida depois do virar o milénio. O confinamento emudeceu aqueles bravos rapazes devotos da Nossa Senhora da Boa Memória, um deles, o único que identifico, chegou a estudar comigo. Este ano ainda não os ouvi, presumo que não recuperaram nem a voz nem a vontade de viajar para o tempo em que, conjecturo, terão sido felizes. Isto, contudo, sou eu a especular. Não os oiço, como não vejo há uns dias os anjos que vivem no telhado do prédio do lado. Imagino que se foram confinar para algum lugar longe dos homens, antes que sejam contaminados e lancem o caos nas urgências celestes, onde os anjos tratam as suas afecções mais persistentes, embora, como se sabe, eles não necessitem de ir para os cuidados intensivos. A sua condição não lhes permite grandes males e, por isso, não precisam de grandes remédios. O padre Lodo ligou-me esta manhã. Não devia ter escrito ontem, sublinhou o não, que os meus pecados eram insignificantes, que só Deus tem o metro para medir a significância pecaminosa de cada um. Estaria eu, disse-me ele, prestes a cair na tentação da blasfémia. Estava preocupado com a minha alma. Disse-lhe que não se preocupasse com ela, caso eu tivesse uma. Aqui faltou-me um módico de caridade e não consegui evitar um traço agnóstico suspenso sobre a conversa. Fora um exercício de pura humildade, declarei em tom compungido. Depois, acrescentei, quando for a Lisboa, ligo-lhe. Vamos jantar com o grupo habitual. Desta vez, respondeu com o seu português italianizado, tem de ser aquele que tem uns pastéis de massa tenra de fazer perder uma alma. Esse mesmo, respondi.

terça-feira, 13 de outubro de 2020

Tudo tem consequências

Por que razão gostamos daquilo que gostamos? Enquanto me entrego a uma corveia composta por gráficos, tabelas, análises de resultados e uma panóplia de coisas que, espero, me sejam averbadas no registo celeste para desconto dos meus insignificantes pecados, tenho estado a ouvir o que se chama música minimalista. Philip Glass, Steve Reich, John Adams, Terry Riley. Há quem deteste, mas sobre mim o movimento repetitivo de pequenos trechos musicais durante longo tempo tem um efeito encantatório. Quase que vejo nascerem mitos de dentro dessa música, histórias que irão ser contadas de geração em geração, os feitos de deuses ou as travessuras maldosas de seres gerados pela imaginação. É por isso que gosto dessa música. Não o sabia antes de o ter inventado para o escrever aqui. Não são poucas as coisas que só as sabemos na hora em que as escrevemos. Um sol outonal brilha sobre o pequeno bosque da escola ao lado, enquanto as folhas das acácias vão e vêm batidas por um vento que, parece-me, corre de norte. Daqui a pouco irei falar sobre a verdade e o cepticismo. Com tantas coisas cintilantes debaixo do sol, logo me haveria de calhar essa floração das trevas. Estou há horas para entrar na minha conta de homebanking. A cada tentativa, sou informado que é um erro, a página não existe. Algum deus desavindo com os mortais, nascido da música repetitiva que tenho estado a ouvir, terá feito desaparecer o banco. O meu amigo Rogélio bem me avisa. Cuidado, tudo o que se faça tem consequências. Nunca imaginei que o meu mau gosto musical fosse a causa de desaparecimento de um banco, mas é o que constato. Só espero que não seja preciso sacrificar nenhuma Ifigénia, para que o deus o devolva.

segunda-feira, 12 de outubro de 2020

Um Zé Ninguém em dia de S. Nunca

Quanto tempo faltará para estarmos outra vez todos confinados? Esta pergunta não me pertence. Escutei-a por acaso na rua, ao passar por duas pessoas que, sem máscara, trocavam palavras, preocupações, temores e, certamente, gotículas, como agora, de uma forma com ademanes de erudição, se chamam os populares perdigotos. Recebo uma mensagem a dizer urgente. Olho para ela e digo-me que bem pode esperar. Se fosse dar urgência a tudo o que se diz urgente, acabaria por morrer de exaustão. A maior parte das coisas urgentes bem se podem tratar no dia de S. Nunca à tarde. Este dia do calendário litúrgico tem um correspondente em personagem teatral. Quando perguntado quem é, o Romeiro diz Ninguém. Não se pense, todavia, que o senhor Ninguém se finou nas páginas do Frei Luís de Sousa. Os tradutores portugueses amam-no verdadeiramente, desde que se chame Zé. Escuta, Zé Ninguém, uma diatribe de Wilhelm Reich, e E Agora, Zé Ninguém?, um romance de Hans Fallada. Como o leitor compreenderá ser um Zé Ninguém é uma chatice. Ou se está a receber ordens ou a ser interrogado. Todavia a pergunta com que se abriu este texto merece uma resposta metafísica. Estamos confinados desde sempre. Essa é a condição humana, a história da caverna de Platão. O confinamento decretado é apenas um reconhecimento de direito daquilo que acontece de facto. O mais sensato será acabar o escrito por aqui. Ninguém vai perceber o que acabou de ser dito, nem sequer o narrador ou, em especial esse, o autor. Por mim, corrigiria o Garrett e quando o Romeiro, esmagado pela realidade do confinamento, escutasse a pergunta sacramental, diria Zé Ninguém, sou um Zé Ninguém. E isto estaria muito mais de acordo com a sua condição. Pena o Garrett ter-se esquecido de me telefonar.

domingo, 11 de outubro de 2020

Paramedicamento

Os domingos são dias propícios a uma sentimentalidade espúria, a qual deveria ser ferozmente erradicada. Umas vezes, é a melancolia do domingo à tarde, quando a sombra negra da segunda-feira, com a sua penosa corveia, se ergue no horizonte. Outras, é uma nostalgia pelo que passou, e os domingos são construídos na memória como dias em que se passavam coisas. Na verdade, pouco se passava ou, mesmo que se passasse muito, tudo isso era tão irrisório que dá vontade de sorrir. Há pouco, fiquei a ver o triunfo de um ciclista português numa etapa da Volta a Itália, do Giro, como dizem entendidos e aficionados. Nada sei de ciclismo, mas gosto. Isto deve-se a uma influência paterna que me levava a ver a passagem dos ciclistas da Volta a Portugal. Era um espectáculo veloz. O tempo que eles levavam a passar era assombrosamente pequeno comparado com aquele que se esvaía na espera, mas tratava-se sempre de um acontecimento colorido, e eu gostava imenso. Um dia o meu pai levou-me a ver ciclismo em pista, em Alpiarça. Estávamos em Santarém e fomos lá. O que se passou, quem ganhou e quem perdeu, já o esqueci há muito. Saí de casa ainda não tinha chegado o meio-dia. Estava calor. Fui a uma parafarmácia comprar um paramedicamento. Um paramedicamento é uma daquelas coisas que não servem para nada, mas que convém ter em casa. Nunca se sabe quando são precisos. O facto de as ter tranquiliza o espírito. Quando a menina me perguntou o que desejava, estive quase a responder queria um placebo para a urticária. Não respondi, pois tive medo que ela me dissesse que não sabia o que era um placebo e que eu tivesse de informar que também não fazia a mínima ideia do que fosse a urticária. Das velhas colunas da minha aparelhagem sai o som de Lontano, uma peça do compositor György Ligeti. Reconcilia-me com o domingo e com a menina que não saberia o que era um placebo. Chega-me um vídeo do meu neto a andar de trotineta. Ainda não tem idade, penso, mas quem não tem idade para isso sou eu.

sábado, 10 de outubro de 2020

Um ser imponderável

Hoje, lamento, mas nada tenho para contar. Levantei-me nem cedo nem tarde, a balança dos sábados esteve amena e devolveu-me um peso dentro do que houvera sido acordado. Minto. Como pode um narrador ter peso? Sou um ser imponderável, apenas um conjunto de caracteres no monitor. Seres virtuais não têm peso nem sofrem dos efeitos da gravidade. São como os anjos destituídos de corpo. O autor, esse tem peso. Talvez mais do que devia. Também tem corpo, mas sobre isso não faço comentários. Sou um narrador prudente. Hoje está de mau humor. Ouvi-o resmonear contra as calças. Por que raio continuava a comprar calças com botões em vez de fechos. Não faço ideia o que tem contra os botões, mas isto mostra o nível intelectual das suas preocupações. Tive de ir ao supermercado. Encontrei a Lu. Estava abatida. Apesar da máscara percebi que não era a velha Antígona pronta para desafiar a ordem de um qualquer Creonte. Nos seus olhos, havia uma sombra e não fogo. Estou preocupada com a minha irmã. A irmã é a Marília, a que era do Dirceu. Não anda nada bem, agora que parecia feliz. Fiz silêncio e ela especulou sobre o destino. Eu ouvi até que nos despedimos. Fui ainda comprar duas garrafas de vinho e dirigi-me para a caixa para pagar. A menina não me pareceu nenhuma Antígona, nem Ismene e muito menos uma Electra. Era apenas a menina da caixa e nisso estava toda a sua grandeza. Quando voltei o autor continuava a barafustar pelos cantos da casa contra a ordem do mundo e a desordem que ia na sua cabeça, digo eu.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Fora eu uma árvore

Cheguei cansado ao entardecer desta sexta-feira, mas também a semana está tão pouco vigorosa quanto eu. A correria a que ela se entrega mal nasce só pode ter como consequência chegar ao fim com a língua de fora. Tenho pena das pobres semanas ajoujadas a um ritmo que não escolheram. Alguém me disse que não deveria antropomorfizar os seres não humanos. Respondi apenas que seria redundante a antropomorfizar os humanos, além de não me parecer boa ideia tornar os humanos ainda mais humanos. Basta ver o rol interminável de maldades e patifarias a que eles se entregam sem esse reforço de humanidade. Apesar das ameaças que pesam no horizonte, os tempos parecem ter voltado à normalidade. Da praceta chegam gritos verrumantes que ferem o estado de estupor em que me encontro. A criançada anda por ali, corre, grita, berra, enquanto as acácias, sem um grito, se deixam embalar pelo vento, balançando os ramos para cima e para baixo. Com o passar dos anos aumenta a minha admiração pela sábia indiferença com que as árvores olham para as coisas que as envolvem. Agora, umas funções do meu teclado decidiram declarar greve. Disse-lhes que era uma greve selvagem. Não se comoveram. Fora eu uma árvore e não teria problemas com teclados.

quinta-feira, 8 de outubro de 2020

Contributos para a história do Rogélio

Perguntaram-me quem era o Rogélio que por aqui aparece. É sempre uma pergunta difícil de responder. Se me perguntarem quem sou eu, ver-me-ei em apuros para dar uma resposta com um módico de coerência, quanto mais quando se trata de uma terceira pessoa, e que pessoa. Conheci-o nos primeiros tempos da faculdade. Numa aula, fumava ele uma cigarrilha Café Creme, uma das suas imagens de marca, fez uma pergunta ao professor. Este perguntou-lhe o nome, ele debitou-o com tranquilidade, Rogélio. O professor então continuou dizendo ora veja Rogério… Aí o Rogélio interrompeu-o. Peço desculpa, professor, mas chamo-me Rogélio e não Rogério. Não me obrigue a contar a história do meu nome. O professor não obrigou, mas ele causou furor na turma com a lata da sua intervenção. Ficámos amigos. Ele é um autêntico coleccionador de ditos, máximas, apotegmas, aforismos e outras sentenças para uso diário e em situações extraordinárias. Os mais interessantes são da sua autoria. Acaba de ser anunciado a Nobel da literatura. Nunca li nada da senhora, mas a minha ignorância é infinita. O facto de muitos dos meus escritores favoritos, como Borges ou Kafka, não terem merecido a distinção deixa-me sempre de pé atrás. O remédio será pô-lo à frente, dir-me-ia o Rogélio, enquanto expelia uma baforada da sua inevitável cigarrilha. Não sem razão

quarta-feira, 7 de outubro de 2020

Os limites do magnésio

Outubro perfaz hoje uma semana. Não sei o que possa fazer com esta constatação. Há pessoas que de qualquer coisa retiram utilidade, prazer, fortuna. A minha natureza não se acorda com préstimos e serventias e até da mais útil das coisas fabrico uma inutilidade. Sou um inutilitarista, para além de um improficiente. Há quem venda Platão para infelizes e Aristóteles para competitivos, eu prefiro ir comer uma fartura ali ao lado. Também tomo magnésio para as cãibras. Muito gostava eu de ser um realista ingénuo, de olhar para aquelas acácias, ainda esplendorosas, e crer que aquilo que vejo é mesmo acácias, mas temo que aquelas imagens a que chamo realidade não sejam mais do que um feixe de impressões na minha mente, ou, pior, que eu não passe de um cérebro numa cuba, que está a ser estimulado por um supercomputador para imaginar que está a ver acácias. Estes pensamentos demonstram, todavia, uma coisa. Se o magnésio combate as cãibras, não me ajuda no pensamento. Fica turvo e eu ainda não comprei um purificador de pensamentos. A realidade continua a ser minha inimiga. Os dias estão difíceis e Outubro ainda só tem uma semana.

terça-feira, 6 de outubro de 2020

Questões de mérito

Um pouco antes do crepúsculo irei caminhar. Não sei se será um exercício saudável, pois os trajectos disponíveis são partilhados com os escapes fumarentos de carros que precisam, também eles, de fazer exercício e libertar-se das toxinas que lhes enxameiam os motores. Mais do que libertar a toxidade que há no meu corpo, preciso de libertar a que me invade o espírito. Cada visita à realidade é um exercício penoso, mais penoso do que dar de comer a quem não tem fome. Encho-me de toxinas e o pensamento enviesa-se para a malevolência. Penso coisas que até eu me julgaria capaz de pensar. Cada um tem o que merece, diz nestas ocasiões o meu amigo Rogélio. Eu acabo por anuir. Um dia talvez explique como o conheci e, caso me recorde, poderei mesmo explicar o motivo de tão inusitado nome. Um acaso, posso adiantar. Fui levantar uma encomenda nada literária e acabei a comprar a minha quarta versão em português da Eneida de Vergílio, a segunda em poucos meses. Depois de uma traduzida por um professor de clássicas de Coimbra, agora uma traduzida por professores de clássicas Lisboa. Talvez seja isto a concorrência ou uma luta pela sobrevivência. Olho para o início do poema e deixo-me tocar não pelas dores do troiano, mas por expressões como praia de Lavínio ou violência dos deuses supernos. Estes deuses não cultivariam em excesso o amor e a misericórdia. Cobravam as ofensas, e como eles se ofendiam por coisa pouca, a um preço que dificilmente seria de saldo. Talvez também para estes heróis o destino não fosse mais do que a retribuição do seu mérito.

segunda-feira, 5 de outubro de 2020

Dores de crescimento

Acordei com algumas dores nas pernas. Nada que me causasse mais do que um pequeno incómodo, se deitado. Era uma injunção a que me levantasse. Cumpri a ordem. Tenho estas dores desde que me lembro de existir. Vão e vêm, umas vezes mais violentes, outras menos. Durante a infância e a adolescência, os médicos diziam que eram dores de crescimento. Seriam. Quando chegou a altura de parar de crescer, elas continuaram. Por volta dos cinquenta pedi ao médico que me seguia que pesquisasse a origem do mal. Fiz exames a isto e àquilo. Nada. O mal continuaria a ser um mistério. Ele, porém, não se atreveu a dizer que eram dores de crescimento. Enganou-se. Redondamente. Quando se passou dos velhos bilhetes de identidade, em que a menina do registo civil nos batia com a craveira na cabeça para determinar a altura, para os cartões de cidadão, onde toda a medida é electrónica, cresci três centímetros. Prova feita em dois registos diferentes. Grande é o desalento quando penso em tudo isto em que estou a pensar. Hoje, um dia em que deveria ter pensamentos elevados e patrióticos, penso em dores de crescimento. Seja como for, posso adiantar que sempre fui republicano, embora ache isso uma miserável cobardia. Deveria ser monárquico. Republicano, apenas se vivesse numa monarquia. Não tenho, porém, coração de talassa, nem a minha origem plebeia o aconselharia. Contento-me com o ir crescendo sempre que se muda o método de determinar a altura do cidadão. Com a evolução contínua da tecnologia, não admira que as dores de crescimento não me passem.

domingo, 4 de outubro de 2020

Pura banalidade

Quando há pouco peguei num certo livro que tinha posto de lado tempos atrás verifiquei que havia nele vários marcadores. Não daqueles tradicionais, mas cartões e etiquetas que vou juntando para lhes fazer a vez. O cartão de uma churrasqueira take away, outro de um desentupidor de canos com o calendário de 2018, um terceiro de um restaurante nepalês em Lisboa, ainda outro que anuncia Charming rooms em Bilbau e, por fim, a etiqueta cartonada de uma marca de pólos, que ainda ostenta o tamanho, o preço e a loja onde o comprei. Por coisas como estas pode-se reconstruir uma vida e, como se vê, a minha é das mais banais que possam existir. Aliás, não se esperaria outra coisa. Há nos homens uma propensão para a distinção, mesmo o mais limitado se pretende distinto, diferenciado, pura singularidade. Ergue-se em heroísmos e a sua vida é repleta de feitos e façanhas. A imaginação não tem limites. Eu, pouco dotado de imaginação, não tenho proezas para apresentar no currículo, por isso colecciono numa caixa preta, ao lado de pilhas para comandos, tubos de cola seca, carregadores de telemóvel para mandar reciclar, colecciono, dizia, cartões com que marco os livros que outros escreveram. Hoje é domingo e as horas vão com tristeza pela avenida fora, cobertas de nuvens, atiçadas pelo vento, redemoinhando à volta das tílias, das acácias, dos jacarandás e de outras árvores cujo nome não me ocorre. Também elas, horas e árvores, fazem parte da banalidade que me envolve, e eu amo-as por isso.

sábado, 3 de outubro de 2020

Vestir o ânimo

Estou há longos minutos a observar as árvores dos espaços envolventes. Quase imóveis, parecem estátuas que um divino escultor terá esculpido como símbolo de tudo o que há de misterioso no mundo. Há no arvoredo uma dignidade que escapa ao mundo animal. Neste, a inquietação da morte e a necessidade cruel tornam a vida uma manta onde se cosem truques e armadilhas para matar e sobreviver, um circo romano onde todos são à vez feras e cristãos. Contrariamente à volubilidade da vida animal, a existência das árvores é marcada pela constância, por uma fidelidade ao lugar, por uma elevação contínua, pelo silêncio com que deixam passar por elas os anos e as peripécias, sem que se lhes oiço um grito, um queixume, uma imprecação. Morrem de pé, como é dito na peça do asturiano Alejandro Casona, ou são traiçoeiramente abatidas pelos homens. Este prolongado fim de semana começa neste registo de melancolia, não porque esteja melancólico, mas porque é a tonalidade de espírito que melhor se adequa ao dia. Há muitos anos, numa conversa que nunca esqueci, alguém disse que deveríamos revestir o ânimo com o mesmo cuidado com que vestimos o corpo. O essencial é ter em atenção o tempo e, desse modo, há dias que devemos estar alegres, outros tristes. Em alguns devemos vestir a farda da ira, outras vezes o mais indicado é uma capa de nostalgia. Com o passar dos anos, fui descobrindo a sabedoria do conselho. São muito desavisadas as pessoas que se preocupam com o que lhes veste o corpo, mas andam pelas ruas com o ânimo nu, como se fossem indigentes e não houvesse lá por casa uma camisa de angústia ou um casaco de júbilo. Daqui a pouco ponho a gravata da melancolia e vou às compras. Logo terei cá o meu neto, e isso é o mais importante.

sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Uma tarde entre parêntesis

Mais e menos, abrir e fechar parêntesis, unidades e fracções. A mais de cem quilómetros de distância a minha neta mais velha está ser submetida a uma provação. Em videoconferência a avó soma avisos e injunções, dita-lhe exercícios, subtrai-lhe umas horas de brincadeira. Ela vai-se submetendo ao mundo do cálculo, à estratégia de aplicação de algoritmos, enquanto a cabeça devaneia lá por aqueles sítios onde, às sextas-feiras à tarde, se reúnem os espíritos adolescentes. Não sei se todo este admirável mundo novo será coisa boa. Está um maravilhoso dia de Outono. Ora chove, ora faz sol. O vento sopra agreste, enrola-se nos ramos das árvores, nos cabelos e saias das mulheres, grasna e cochicha por tudo o que é canto. As folhas secas desenham espirais no ar, enquanto as fracções se multiplicam e os números negativos tentam anular os positivos. Não, não é King que estão a jogar. Quando chegarão as raízes quadradas, pergunto-me. Agora fez-se silêncio, talvez todos os parêntesis abertos tenham sido fechados e as fracções somadas sejam unidades puras, inteiras, imaculadas, virginais. Talvez seja apenas o descanso antes da segunda vaga. O sol reverbera no telhado do pavilhão da escola ao lado, o ramalhar das árvores prende-me a atenção, o dia escorrega para a noite e a minha vida desliza para o nada, que é o sítio aonde tudo vai dar, mais soma menos subtracção, mais número inteiro menos fracção.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Um dia octúbrico

Hoje está um dia verdadeiramente octúbrico, pensei enquanto uma chuva miúda descia sobre mim. Pena é que ainda não tenham inventado a palavra octúbrico, mas não vejo outra que possa designar a presença de Outubro neste primeiro dia do mês. Talvez alguém a tenha pronunciado ou mesmo escrito e eu não saiba. Muito vasta é a minha ignorância. Digo isto apenas para parecer humilde e não atrair sobre mim os maus espíritos que andam por aí a esvoaçar. Estive a oficiar durante duas horas ao ar livre. A máscara interpõe-se entre a minha voz e o mundo. Fico com a garganta arrasada. Chegado a casa, fui a uma das janelas para ver o que se passava na rua. Não se passava nada a não ser gente a passar, uns a pé e outros de carro. Olhei para os telhados dos prédios envolventes. Fiquei preocupado. Há uns dias que não vejo por lá os anjos que costumam poisar naqueles sítios. Talvez tenham ido em missão a algum sítio em dificuldade ou foram hospitalizados com o novo vírus. Nunca se sabe. Também é possível que se tenham disfarçado de pombos e andem por aí a esvoaçar, arrulhando por aqui e por ali. À saída do lugar de frutas e legumes onde entrei para comprar feijão-verde encontrei a Lu, a irmã da Marília do Dirceu. Estava risonha. Que a chuva a tinha impedido de acabar a caminhada. Disse isto com aquele seu ar de heroína grega, de Antígona que escapou às garras de Creonte, o que lhe diminui a faceta trágica, mas permitiu-lhe deixar um rasto de fogo no mundo. Tenho de me despachar e deixar de escrever idiotices. Esperam-me. Ainda tenho duas homilias para proferir. O pior é garganta.

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Também eu sou competitivo

Leio que uma universidade católica pátria vai ministrar um curso de filosofia aos quadros superiores de um grupo empresarial francês dedicado à construção civil. O objectivo é aumentar a competitividade. Os sacerdotes são pessoas admiráveis e além de admiráveis são muito competitivos, e ainda mais o são se caíram no caldeirão da poção mágica a que vulgarmente se dá o nome de filosofia. Nada de ócios meditabundos e contemplativos. Coisa de gregos dados às filosofices. Há que ajudar o produto interno bruto, há que pôr Platão a render, Aristóteles a negociar e Descartes a trautear se compito, logo existo. Ponham também Tomás de Aquino a meditar sobre o papel das casas de banho na maximização dos lucros e Agostinho a fazer confissões sobre o problema do tempo no fracasso das vendas. Como o leitor pode constatar tenho uma grande inclinação para pecar, mas o dia não começou da melhor maneira. A manhã ocupei-a a ler pornografia. Sim, leu bem. Uma pornografia muito especial, onde não existem cenas de sexo, mas um conjunto de ideias malucas de pessoas que gostavam de ter o talento dos padres católicos que vendem filosofia a gestores da construção. Não têm, não passaram os olhos sobre aqueles textos difíceis e que geram ideias muito mais interessantes do que aquela pornografia a que sou instado a ler por um diabrete malévolo, sobrinho do deus enganador do senhor Descartes. Caro leitor, esqueça tudo o que leu e finja que este narrador não narrou aquilo que narrou. Se houver aí uns pedreiros, ou mesmo uns ajudantes, disponíveis, eu faço também um seminário sobre a metafísica do tijolo e a ética da argamassa. Também eu sou competitivo.

terça-feira, 29 de setembro de 2020

Sniff Game

Numa fotografia de Alfred Eisenstadt vêem-se vários de pares de jovens à saída da adolescência entregues a um Sniff Game. A ideia é fazer transitar um Kleenex de nariz para nariz, dando uma volta ao grupo sem que o lenço caia. O que vale é que a foto é de 1948 e ainda estavam longe as restrições à partilha de snifadelas. O que se passaria depois do jogo não me perguntem, pois nessa altura nem tinha nascido e falece-me a imaginação. A seguir ao almoço, para não ficar a aboborar numa cadeira diante de uns gráficos coloridos com que entretenho nestes dias a existência, fui à farmácia comprar máscaras para poder oficiar no sítio onde prego aos peixes. Eu sei que nestes dias de inovação, um tempo em que uma pessoa dá um pontapé numa pedra e saltam de lá meia dúzia de inovadores, fica mal alguém andar a sermonar, tal como se faz há séculos. Paciência, sou um velho conservador. Um acontecimento estranho ocorreu esta manhã na varanda e nos canteiros que circundam as janelas do escritório. Os muros estavam cheios de jovens pássaros – se não os ofendesse com a minha ignorância, diria que eram andorinhas – que, tanto quanto consegui perceber, estavam na sua primeira lição de voo. Atiravam-se, sob a supervisão de uns maiores, para o abismo e começavam a bater as asas. Já é a segunda vez que este ano assisto a um acontecimento destes. Talvez esta actividade seja mais perigosa do que um Sniff Game, mas não tenho a certeza.

segunda-feira, 28 de setembro de 2020

Uma metafísica ociosa

Por vezes, num momento de alheamento, as coisas parecem iguais ao que eram, mas mal se olha para o lado descobre-se que não é assim. Mascarados, vindos de todos os lados, irrompem no campo visual e por ali ficam a apascentar as horas, arrostando na face o escudo que talvez os salve. Consta que é um problema para os vendedores de bâtons e negócios correlativos. Tudo se paga nesta vida, exclamou ontem o meu amigo Rogélio, com aquele seu ar de profeta folgazão, enquanto acendia uma nova cigarrilha Café Creme. A natureza cansou-se do narcisismo humano e, para nos humilhar, obriga toda a gente a tapar o rosto. Não foi rosto que ele disse, mas as fuças. O que não deixa de ter as suas vantagens, acrescentou, com o ar mais sério que se pode pôr neste mundo. Depois de tecer múltiplas considerações sobre a vantagem estética da ocultação da face, rematou o ditirambo em louvor da máscara dizendo que não a usamos porque existe um vírus ameaçador, mas existe um vírus ameaçador para que a usemos. Eis a verdade. Esta inversão da ordem das causas e dos efeitos foi sempre uma característica sua. Isso foi ontem à tarde, hoje, porém, não posso entregar-me a esta metafísica ociosa, pois muitos são os deveres cuja realização aguarda o beneplácito da minha vontade. Alguém perguntou-me por que razão não escrevo sobre coisas importantes. Respondi-lhe que se eu escrevesse sobre elas, deixariam de imediato de o ser. Fui feito para discorrer sobre bagatelas e nulidades. Deixo aos outros a preservação dos bons costumes e a salvação do mundo. A cada um a sua especialidade.

domingo, 27 de setembro de 2020

Um começo inusitado

Ainda não eram onze da manhã e recebo uma chamada da Emilia Bazán, a mulher de Hans Castorp, o antigo discípulo alemão do padre Lodovico. Que estavam outra vez em Portugal. Se nos poderíamos juntar. Pensei que ela ainda se regulava pelas horas de Madrid. Uma hora ao domingo faz muita diferença. Depois, perguntou-me se já tinha acabado de ler as Sonatas, do Valle-Inclán. Respondi-lhe que sim. Muito bem. E comentários? Disse-lhe que o autor era bastante inteligente e que conseguiu produzir verdadeiras obras-primas quase como se escrevesse novelas cor-de-rosa, embora o rosa fosse ao mesmo tempo jocoso e sombrio. Ela riu-se. Ele era louco e genial. Até perdeu um braço numa briga com um amigo, acrescentou. Muitos idiotas – a expressão é dela – ficam decepcionados com estes romances, pois confundem entretenimento com literatura e, ainda por cima, falta-lhes a inteligência para compreender o autor. Ri-me. Desta vez safei-me, foi o que me acudiu ao espírito. Deste modo inusitado, entrei verdadeiramente no domingo. Ainda não sei bem o que fazer com ele, mas julgo que vou pagar pelas compras que não fiz e por outras coisas que deveria ter feito durante a semana e que adiei, não pela sua dificuldade, não por um ataque de preguiça, apenas porque me fazem bocejar. Uma náusea. Os dias têm estado ventosos e hoje não é diferente. Nos loendros da escola ao lado são já poucas as flores que resistem. As acácias da praceta, porém, estão majestosas, toucadas a verde cerrado que o vento, ao levantar-lhe as folhas, faz parecer quase cinzento e prata. Tenho de me fazer à vida. Quando era adolescente, era hora de ir à missa, agora é tempo de ir fazer compras. Troca-se sempre uma religião por outra. Não passamos de uns pobres conversos.

sábado, 26 de setembro de 2020

Comigo me desavim

Comecei o sábado com uma desavença com a balança. Deu-me mais setecentos gramas do que aquilo que lhe tinha pedido. Disse-lhe que não os queria. Ela replicou que não me preocupasse, eram oferta dela, não tinha de pagar mais. Respondi-lhe que não queria ficar a dever favores a ninguém. Ela que desse os setecentos gramas a outro. Não chegámos a entendimento e acabei por trazer os gramas comigo. Depois, passei diante do friso das orquídeas e descobri que a branca ainda tem duas flores, mas caindo estas entrará em hibernação floral, como todas as outras. Que tenha estado florida mais de ano e meio é um enigma, pelo menos para mim que nunca tive qualquer inclinação para a botânica. Descobri ainda outra coisa. O livro que estava a ler foi mal montado e a partir de certa altura começa a repetir as páginas anteriores. Nem posso reclamar com o vendedor, pois nem sei bem quando e a quem o comprei. Vai para a reciclagem. Também eu me poria na reciclagem se viesse de lá transformado noutra coisa, mesmo que fosse ainda pior do que já sou. Nunca deixo de louvar quem não se cansa de si mesmo, pois recebeu uma graça invejável. A mim foi dado o funesto destino de ter de viver comigo cansado de mim. Bem percebo o Sá de Miranda. Comigo me desavim, Sou posto em todo perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. Talvez ele, como eu, fosse dado ao exagero. Lá em baixo, uma criança exerce os seus poderes fácticos gritando até dobrar a cerviz da mãe, orgulhosa dos pulmões do príncipe. O mundo está a tornar-se-me incompreensível.

sexta-feira, 25 de setembro de 2020

Onanismo respiratório

No sítio onde pela mais estrita necessidade oficio, para um rebanho de fiéis sem fé, uma liturgia espúria, como se fora um sacerdote cujos rituais tivessem sido determinados por um colégio cardinalício ignoto e malévolo, ao serviço de um deus galhofeiro e abscôndito, é parte obrigatória do paramento a máscara. É um exercício terrível proferir homilia atrás de homilia, sermão após sermão, com aquela coisa diante da boca e do nariz. Quando tenho oportunidade, escapo-me para o ar livre e procuro um sítio onde não esteja ninguém. Aí retiro o adorno e snifo, não encontro outra expressão, em longas inspirações, ar puro, um ar que não esteja contaminado pela minha própria respiração. Usar a máscara é um exercício de onanismo respiratório. Respiro o meu ar, respiro-me. Eu sei que há coisas bem piores e que elas acontecem sem que para elas seja preciso aduzir explicações. Isso não invalida tudo o que há de tenebroso neste entrudo chocarreiro que nos caiu em cima, neste carnaval que mais parece uma quarta-feira de cinzas ou o dia dos fiéis defuntos. Descarregado o fel, aliviada a bílis, olho para a sexta-feira e peço-lhe que suspenda o seu rápido curso para sábado, que retenha este sol outonal que brilha sobre a copa das árvores e aquece o vento que sopra de norte. Ela olha para mim divertida, volta-me as costas e continua impávida a sua viagem em direcção ao crepúsculo. Omito a palavra que me ficou retida na cercadura dos dentes. Também nesta frase há algum plágio.