O domingo desliza sorrateiro em direcção ao meio-dia. Na rua, andam famílias em fuga ao confinamento. Trazem crianças pela mão e deixam-nas correr nas pracetas envolventes. Numa delas, um pai joga à bola com dois filhos pequenos. Tudo de máscara, exceptuando a bola. O parque infantil, porém, está vazio, interdito pelas autoridades, apesar de não haver autoridade por perto e os sinais de interdição se terem desvanecido. Um periquito poisou numa das varandas. Passa longo tempo a apanhar sol e a contemplar o abismo. Por mim, sinto uma vertigem, como se fora eu a olhar para o precipício, mas eu não sou pássaro e o meu elemento é a terra. Ontem, caminhei longamente por fora da cidade. O pior é o declive, as subidas às quais o corpo se desabituara. A vantagem está na rápida acumulação de pontos cardio, segundo uma aplicação do telemóvel que me vigia os minutos activos e talvez muitas outras coisas que nem imagino. Oiço as vozes lá em baixo, o Sol deixou-se cobrir por um véu ligeiro de nuvens esbranquiçadas e a luz perdeu a reverberação de há pouco, parecendo sofrer de súbita anemia. Consta que é dia de S. Valentim, mas esse é um santo estranho a qualquer devoção por aqui. Mais uns dias e começa a Quaresma, coisa que já não comove ninguém. Não é fácil manter um diário quando não se tem nada para dizer.
domingo, 14 de fevereiro de 2021
sábado, 13 de fevereiro de 2021
Meditação solar
Volto ao registo meteorológico. O sábado começou imerso em neblinas matinais. Prolongaram-se pela manhã dentro, mas a partir de certa altura o Sol subjugou os inimigos e coroou-se como um rei esplendoroso. Reverbera ainda, mas nesta exibição do seu poder, como em todas as exibições de poder, esconde-se uma ameaça. Virão dias em que o seu brilho será insuportável e o calor, mortal. Deflagrarão incêndios e toda uma tragédia tórrida emanará do seu brilho desmedido. Isso, porém, será lá mais para a frente. Agora, a sua vinda merece celebração. Depois do meio-dia fui às compras. As ruas quase pareciam as de um sábado desconfinado, com muitos carros a circularem. Na superfície comercial – nem sei como conseguem inventar estas designações – não havia muita gente. A aproximação da hora de almoço retrai a vontade de fazer compras, pensei. Agora, preparo-me para ir fazer uma caminhada. É um exercício para me imaginar uma pessoa livre, que não está em prisão domiciliária. Espero que os caminhos que irei eleger estejam sem gente e que possa desmascarar-me e sorver o ar, como se tudo estivesse como imaginávamos que estava há um ano, embora já não o estivesse. A vida está cheia de ilusões e armadilhas.
sexta-feira, 12 de fevereiro de 2021
Tempo de Carnaval
Está um tempo de Carnaval. Olho para a frase e não posso deixar de me rir. Se estivesse a chover, também poderia dizer que estava um dia de Carnaval. Dito de outra maneira, qualquer tempo é tempo de Carnaval. Este ano não haverá corso, o país será poupado àqueles desfiles constrangedores, à pobre alegria dos foliões, às raparigas cheias de frio a abanarem-se como se estivessem no Rio de Janeiro, à falsificação que tudo aquilo representa. Certamente, haverá um psicólogo caridoso que virá explicar que essa terrível ausência dos festejos terá um impacto na saúde mental dos portugueses, que ficarão mais ansiosos e deprimidos, a sonhar com ansiolíticos e antidepressivos. Como observador longínquo do fenómeno, sempre achei que era uma manifestação depressiva de uma doença mental que ataca os portugueses entre o Natal e a Páscoa. Com um dia tão primaveril, nem consigo compreender o motivo por que me pus com esta diatribe contra tão preclara instituição. Eu que me mascaro para ir à rua e mal chego a casa tiro a máscara que usei e fico com aquela com que nasci e foi envelhecendo. Os dias já são maiores, crescem languidamente e, não tarda, hão-de precipitar-se para o solstício de Verão. Depois, começarão a encolher. Não há nada de novo sob o Sol. Talvez tenha dormido mal.
quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021
Da necessidade
De manhã, tornei à farmácia. O médico decidiu inovar e introduziu uma nova substância na ementa, a qual não apresenta opções, apenas preceitos a cumprir. Muito gostamos de pensar que a vida está cheia de possibilidades alternativas, mas começo a desconfiar que sob essa capa se esconde um feroz preceituário de regras a que não nos podemos furtar. A terrível necessidade dos gregos antigos. Estes diziam tudo com uma beleza de que perdemos a capacidade de imitar. Ananke era a deusa da inevitabilidade e mãe das Moiras. Eram sensatos, os gregos, ao prestar-lhe culto. Nunca se sabe se o inevitável não pode ser evitado. Haverá uma inevitabilidade na chuva que cai, pergunto-me. Talvez lhe seja possível não se precipitar e apenas o faça por um exercício de liberdade da vontade, o desejo de ajudar os homens e, ao mesmo tempo, de os aborrecer. Reparo que a minha inclinação para o registo meteorológico continua activa. Na verdade, sou um narrador sem narrativa, sem nada para contar e sem nada para dizer. Uma camada mais escura e baixa de nuvens parece deslocar-se a grande velocidade, ao contrário da camada superior, estática e sem vontade de se dar a grandes viagens. Também é plausível que seja uma ilusão, e que não existam nuvens, nem movimento, nem chuva e tudo o que vejo se passe na minha mente, que de tão ociosa se põe a imaginar um mundo fora dela, como se isso fosse possível.
quarta-feira, 10 de fevereiro de 2021
Esculápios, profetas e sibilas
A manhã apresentava um sol esplendoroso, que logo se retraiu e agora o céu é um oceano de cinza e chumbo. Temo que estes textos se confinem e não sejam mais que um registo do estado do tempo. Nunca pensei entregar-me com tanta devoção à meteorologia. Quando era criança achava estranho, embora não me deixasse de fascinar, a devoção dos mais velhos, a geração dos meus avós, pelo boletim meteorológico. Não sei se os impelia um interesse genuíno pela meteorologia ou se era um resquício de um culto arcaico dos poderes divinatórios, de reverência por profetas e sibilas. Antes registo meteorológico do que contabilidade pandémica, pensei. Olho para as estantes que me envolvem e confirmo a necessidade de comprar mais alguns módulos. É preciso evitar que o caos se instale e, neste momento, são já demasiados livros sem poiso certo, uns sem-abrigo que estão por aqui ao deus-dará. Daqui a pouco terei de ir fazer uma visita ao cardiologista. Espero que não tenha ideia de me pôr a fazer exames, pois ainda há umas semanas os fiz, mas nunca se sabe o que atravessa a mente de um médico, uma espécie que também reivindica a posse de poderes xamânicos. Esculápios vindos sabe-se lá de onde, olham para uns papéis e põem-se a conjecturar sobre o futuro, quando não sobre o passado, o que é ainda mais difícil. Talvez chova, quando tiver de sair de casa. A profecia não é o meu forte.
terça-feira, 9 de fevereiro de 2021
Uma saída ao mundo real
Depois de tantos dias de reclusão, saí para ir à farmácia. O mal é começar a frequentá-las, pensei ao entrar. Não que as pessoas sejam desagradáveis. Pelo contrário, são muito afáveis e têm o poder de fazer esquecer que o que leva ali os clientes é uma qualquer dependência vital. Fui abastecer-me de algumas drogas de que dependo, talvez menos moderadamente do que imagino. Se as deixasse de tomar, os efeitos a curto prazo seriam invisíveis, mas desconfio que a médio prazo poderiam ser muito pouco recomendáveis. As farmácias são uma prova do triunfo da química. Talvez seja possível imaginar um mundo onde a terapia química seja substituída pela genética. Talvez, mas é um assunto do qual nada sei. Aproveitei para caminhar pelas ruas. Estavam vazias e tristes, as árvores despidas, e nem a aberta que permitiu que um sol invernoso brilhasse chamou as gentes à rua. Depois, peguei no carro e fui dar uma volta para lhe alimentar o ego e a bateria. O último confinamento custou-me uma bateria. Não há como uma vida na província, onde nada se passa e nesse nada está toda a sua glória. Os dias já cresceram um bom bocado, constato agora ao olhar pela janela.
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021
Incertezas do dia
Um dia incerto, mais um. O sol já brilhou cheio de promessas, depois o céu cobriu-se de nuvens e, agora, chove. Uma chuva fina, pulverizada, que o vento arrasta em turbilhões. A manhã foi intensamente ocupada e a tarde não será muito diferente. A pandemia trouxe uma nova apreciação sobre o que deve ser uma conduta eticamente permissível. O próximo deve estar menos próximo e há uma justa distância a cultivar. No espaço, mas também na expressão dos afectos. As culturas do Sul vinham abolindo as distâncias, cultivava-se a proximidade até à intromissão, mas isso já não é virtuoso, se é que alguma vez o foi. Pensei em tudo isto enquanto olhava para a avenida quase deserta, um peão passava na passadeira, outro ia pela calçada do lado de lá. Faltava-lhes ânimo nos passos, como se não soubessem o que fazer numa hora como esta. Talvez não saibam. Sento-me e não quero pensar em nada, a não ser nas tarefas a realizar. Tirando isso, também eu não sei o que fazer, embora não sofra de falta de ânimo. Pelo menos é o que soletro para mim mesmo. Oiço um álbum chamado From Gagarin’s Point of View, de Esbjörn Svennson Trio. Esbjörn Svennson não teve sorte, apesar do talento até para encontrar títulos para os álbuns do seu trio. Tudo é incerto como o dia de hoje. O Sol voltou a brilhar. Por quanto tempo?
domingo, 7 de fevereiro de 2021
Imaginação narrativa
Numa das varandas da casa tem-se uma vista directa para a Sá Carneiro. Fui lá. Fiquei a olhar o trânsito. Os carros não paravam de passar, nos dois sentidos, movidos por uma necessidade de circulação de tal modo constrangedora que lhes foi impossível ficarem parados nas garagens ou nos lugares de estacionamento das ruas. Uns iam de faróis apagados, outros exibiam as luzes com que se anunciavam. O dia talvez esteja menos frio que o de ontem. Alguém vai pelo passeio do outro lado. Caminha sem pressa, por vezes os passos parecem hesitar. Passou diante de um friso de lojas vazias, que em tempos foram dependências bancárias. Então, imaginei um narrador que relatasse as acções daquela pessoa. Não um narrador que da sua omnisciência desse a conhecer uma história em volta de uma intriga para a qual o leitor esperaria um desenlace, mas de um outro tipo de narrador que descrevesse cada gesto, cada palavra, cada som escutado, cada cambiante da paisagem, cada mudança da configuração das pedras do passeio, a cor de cada carro que passa pela pessoa. Um narrador que fosse como uma câmara de filmar, uma câmara exaustiva, que na sua ânsia de tudo registar e contar mostrasse uma nova omnisciência. Depois, recolhi-me e disse que não devia pensar em coisas daquelas, pois hoje é domingo, dia de descanso e até a imaginação precisa de descansar. Calculo o tempo que falta para o almoço e sento-me.
sábado, 6 de fevereiro de 2021
Sábado tardio
Eram quase quatro da tarde quando tomei consciência de que hoje é sábado. Vale mais tarde do que nunca, dir-se-á. Comecei cedo a trabalhar e quando acabei, já a manhã tinha ido para aquela pátria de onde nunca se volta. O almoço foi tardio e, depois dele, fui à varanda do escritório olhar a rua. Vi um casal atravessar uma passadeira, ele com máscara, ela de rosto aberto para quem a quisesse olhar. Imaginei-a uma bela mulher, mas, dada a distância, não o pude confirmar. De uma chaminé saía fumo. Pela quantidade presumi ser de uma lareira. Olhei demoradamente as acácias, agora completamente despidas, mas não consegui formular nenhum pensamento sobre elas. Talvez, penso-o agora, as árvores falem entre si, troquem informações e produzam mesmo pensamentos complexos, uma literatura articulada pelo movimento dos ramos. De imediato, o olhar é capturado pelo bosque da escola aqui ao lado e sinto que os cedros falam com os pinheiros e os ciprestes. Tento escutar a conversa, mas a janela fechada não deixa que som algum chegue até mim. Depois, olho paras as oliveiras e sinto a sua solidão, a tristeza que as habita. Todos estes terrenos formavam um extenso olival, para onde vinham ranchos de homens e mulheres varejar a azeitona e apanhá-la. As que restam são tratadas como peças de museu e isso deixa-as inconsoláveis. Há muito que não há um dia de sol, um daqueles dias frios e luminosos, onde apetece vestir um sobretudo e caminhar pela rua. Hoje é sábado, as pessoas não podem viajar entre concelhos, o vento norte sopra com muita moderação, o céu está nublado, mas não chove. Não tarda, e a noite cairá.
sexta-feira, 5 de fevereiro de 2021
Um analógico no mundo digital
Uma viagem à varanda faz-me descobrir que o dia está frio. Depois, pensei sobre essa constatação e fiquei decepcionado pela minha subjugação ao mundo analógico. Fosse eu um digital nato, teria de imediato aberto a aplicação meteorológica e verificado a temperatura fria que ali consta. Qual a diferença entre um digital e um analógico? O analógico depende da realidade, um digital dispensa-a, basta-lhe consultar o telemóvel para aceder ao conhecimento. Qualquer analógico, como este infeliz narrador, está submetido à canga do real, à necessidade da verificação empírica. Desconfio que, por mais reuniões e encontros em plataformas digitais que faça, nunca conseguirei que me seja concedida cidadania nessa pátria feita de 0 e1. Por outro lado, há que ter em conta uma certa inclinação do narrador para a hipérbole. O dia não apenas está frio como chove. Vejo-o pela janela, confirmo-o no telemóvel. Depois de uma manhã passada numa reunião online, aguarda-me uma tarde numa reunião online. Só espero que jantar não seja virtual, que o tinto não resulte de uvas digitais e que a serenidade da noite seja a serenidade da noite e não uma imagem da serenidade da noite projectada do computador.
quinta-feira, 4 de fevereiro de 2021
Literatura de viagens
Fazer parte do batalhão do confinamento é uma tarefa que exige um rigoroso planeamento militar, do qual a logística e o regimento de disciplina não serão o que menos importância tem. Há pouco, foi hora de exercício. Nestas alturas, sinto uma estranha afinidade com o jovem oficial herói desse espantoso romance que dá pelo título de Viagem à Volta do meu Quarto, de Xavier de Maistre. Detido durante seis semanas em casa, descreve as deambulações no quarto como se o assunto fosse a literatura de viagens. Também eu deveria começar a descrever as estantes do escritório como grandes paisagens exóticas. Falaria do deserto que se abre na estante à minha esquerda. Faria o inventário minucioso dos acidentes orográficos através da indicação de autores e títulos. Na da direita, haveria de descobrir paisagens polares, a brancura de neves e gelos. As deslocações para os quartos ou a cozinha seriam descritas como grandes viagens transatlânticas. Na sala onde se encontra a televisão, talvez descobrisse pirâmides, múmias e o que resta da grandeza do Egipto dos faraós. Haveria de fazer anotações etnográficas, considerações políticas e meditações sobre a relatividade moral dos povos. Seria tudo mais interessante, tivera eu talento para inventar desertos de areia ou de água gelada naquilo que é apenas papel e gostasse de ser um viajante. Há pouco fiz mais uma tentativa de falar com os estorninhos, mas nem para mim olharam. Talvez estejam zangados comigo. Passei a manhã a videoconferenciar, o mais natural é que os neurónios sofram ainda as ondas de choque do acontecimento, e as sinapses sejam um pouco desconexas. Há em tudo uma sombra de tristeza, uma tonalidade melancólica.
quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021
Comprar um destino
Na contracapa de um livro de poesia – aliás, uma tradução – estão as palavras de um conhecido romancista português: Isto é Grande Poesia, sem uma baixa, uma falha, um tropeço. Os olhos não se soltam das maiúsculas de Grande Poesia. Medito nelas e quanto mais medito mais me parece que o famoso romancista se entrega ao proselitismo ou ao apostolado. Uma grande poesia não necessita da hipérbole das maiúsculas, basta-se a si mesma na sua grandeza. Depois, penso no que será uma baixa, uma falha, um tropeço em poesia, mas não sou um escritor famoso, nem sequer um escritor, e não consigo fazer ideia. Entretenho-me com minudências e escrevo sobre futilidades. Por vezes, pareço uma emissão do boletim meteorológico. Descrevo o estado do tempo, a cor do céu, a inclinação do vento. Outras vezes, sou um voyeur que espreita não amantes descuidados, mas a rua por onde passam transeuntes com destino. Fascinam-me as pessoas que possuem um destino. Gostava de lhes perguntar onde o compraram. Sabendo o sítio, haveria de ver o preço, e se fosse em conta, ainda compraria um destino. Pena é que não possa comprar, disso estou certo, um Grande Destino, cheio de maiúsculas. Contentar-me-ia com um destino pequenino.
terça-feira, 2 de fevereiro de 2021
Um diário de futilidades
Também de Fevereiro o júbilo anda arredado. Está tudo tão melancólico que a luz se some dentro de si própria, num movimento de reversão que transforma o dia em quase noite. Espreito pelas janelas, a estrada está molhada, os carros passam na avenida, um ou outro transeunte vai pelo passeio, dando ares de atleta. O esboroar da existência nem sempre se faz em festa e fogo-de-artifício. Preso ao confinamento, observo as contabilidades de cada dia, nesse balanço macabro que junta infecções e óbitos, numa economia em que a oferta da morte e da patologia excede em muito a procura. A manhã passou com um contínuo bombardeamento da caixa de correio electrónico. A existência virtual, de tão imponderável, acaba por ser bem mais adiposa que a real. À minha frente, tenho vários livros de poesia. Com os títulos compor-se-ia um poema que não haveria de desmerecer, mas o que leio, quando a virtualidade me deixa, é um romance de Peter Handke, A angústia do guarda-redes antes do penalty. Em Portugal o termo alemão Angst foi traduzido por angústia, mas na edição em castelhano, por miedo. Os franceses traduzem por angoisse e em língua inglesa está vertido por anxiety, no caso do livro, mas no do filme de Wenders, por fear. Medo será mais apropriado, ou talvez nenhum guarda-redes sinta medo, angústia ou ansiedade antes do penalty. Isso, como já vi escrito, pertence ao que vai marcar e não ao que vai tentar defender. Houve um corte súbito de electricidade. A internet desapareceu e talvez alguém tenha ficado preso num dos elevadores. Apuro os ouvidos. Silêncio. A vida é feita destas minudências e aos homens cabe-lhes apenas a metafísica do penalty. Por mim, perco-me neste diário de futilidades.
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021
Questões aladas
Os estorninhos voltaram ou talvez nunca tivessem partido. Serão residentes, mas durante os últimos tempos não se ouviam. Agora, cantam e voam, desenhando estranhos símbolos no ar, letras de um alfabeto que só os anjos decifrarão. Os pombos, pousados nos telhados, observam com desconfiança as acrobacias destes primos mais pequenos. Enumero as coisas que tenho de fazer, olho para um artigo que preciso de ler com atenção. Terá a chave para um enigma com que me deparei numa incursão por um sítio que não devia frequentar. O arvoredo dorme em profunda quietação e também em mim há sono. Pudesse e dormiria agora. Fecho os olhos, deixo-me levar por uma súbita rêverie, mas logo tomo consciência de que não me posso entregar a tais devaneios. Os estorninhos fazem-me chegar a sua voz. Deveria gravá-la e dedicar a vida a decifrar-lhes as palavras. Depois, conformo-me com a minha impotência para o fazer. Não é Champollion quem quer, e também não tenho qualquer pedra roseta.
domingo, 31 de janeiro de 2021
Correlações coincidentes
O domingo começou mal. Uma chamada de um amigo ainda cedo. Estranhei, pois nunca ligaria aquela hora matinal. Olha, diz-me, uma notícia desagradável. Bastante. Alguém conhecido de ambos morrera de morte súbita. Tinha 44 anos e uma bela carreira. Conhecemo-nos todos, um grupo de quatro, há uns dez anos em circunstâncias que não vêm para o caso. O mais novo do grupo, bem mais novo que os outros, foi agora levado pela parca, sem que nada o anunciasse. Tínhamos um jantar agendado para depois da pandemia, se ela acabasse. Haveríamos de falar de vinhos, de política, do mundo. Ele emudeceu. A minha filha faz hoje anos. Não a verei. Não haverá jantar de aniversário. Apenas telefonemas, trocas de mensagens. O melhor será rasgar todas as agendas. Anda tudo fora dos eixos. Janeiro está a acabar mal. As orquídeas, porém, parecem indiferentes. Decidiram florir mais cedo que o habitual. Até a mais frágil, a que se pensa que nunca chegará ao ano seguinte, já deu sinal de vida e lançou uma haste onde se notam os botões que se abrirão em flor. A vida dos homens, com os seus dramas e tragédias é completamente indiferente à natureza, que continuará a correr para o futuro, com a sua beleza e a sua fealdade, sem que um sentimento pulse na seiva do mundo vegetal ou toque o sangue dos animais. Os domésticos não contam, pois são prolongamentos humanos. A avenida parece vazia e o céu cobre-se de um manto de cinza escura, para combinar com os tempos. Não sei se é boa ideia um mês acabar a um domingo. Se ele acabasse num outro dia, tudo talvez fosse melhor. Eu sei, é uma falácia. Post hoc, ergo propter hoc. A falácia da correlação coincidente. Anda, porém, muita gente por aí a dizer que não há coincidências. O melhor é não acreditar no que pensa muita gente, mas que as há, lá isso há. Tal como as bruxas.
sábado, 30 de janeiro de 2021
Sábado sem consertos
À lateral do meu monitor tenho colado um post-it com o conjunto de arranjos do sistema eléctrico a fazer. Há meses que ali está. O electricista que prometera vir adiou a vinda uma, duas, três, sei lá quantas vezes. Constou que a vida se lhe desarranjou e com isso os arranjos que deveria fazer. Recorri a outro. Que viria hoje. Ainda não veio. Talvez a vida também se lhe tenha desconsertado. Os cabos eléctricos talvez atraiam desordens, nunca se sabe. O céu está nublado e nem sempre as notícias que recebemos são aquelas que queremos ouvir. Isto é uma banalidade, mas a vida é um conjunto de trivialidades que, por vezes, são incomodadas pelo fogo-de-artifício. Nesses instantes, enquanto olhamos para o céu de boca aberta, pensamos que a existência é pura exaltação. Não é. Felizmente. Ninguém suportaria viver nesse estado uma vida inteira. Na rua, um grupo de pessoas, adultos e crianças, cumprimenta-se, troca beijos. Há quem espreite para um carrinho de bebé. Há quem tenha máscara. Há quem não tenha. Sobre a capota do carrinho uma fralda, a fazer de pala, treme batida pelo vento. Os cães farejam-se, mas não esganiçam a voz. Sábado da parte da tarde, ainda não veio o electricista, tenho de continuar com o post-it a fazer de pendão, para que não me esqueça do que há a consertar. O grupo desfez-se, o vento açoita árvores e arbustos, enquanto luz se some como se hoje estivéssemos num sábado de Inverno. Talvez estejamos.
sexta-feira, 29 de janeiro de 2021
Trocas e correspondências
Talvez hoje seja sexta-feira. Já não tenho a certeza, agora que os dias se tornaram a indiferenciar. Em vez de tornaram tinha escrito tronaram. Uma troca risível faz toda a diferença. Os dias não são reis para ocuparem um trono ou, tão pouco, soam como trovões. Esta incerteza perante o calendário deixa-me perplexo. Os motivos bem os sei, mas não os digo. Os campos de jogos da escola ao lado estão vazios, como se as pessoas tivessem abandonado a cidade e vivêssemos num tempo distópico. Árvores e arbustos, porém, estão vigorosos, mesmo aqueles que se despiram para hibernar, e deles se desprende uma exuberância que não chega ao mais alto dos céus, porque uma densa cortina de nuvens cinzentas a tudo cobre. Tenho de pôr o telemóvel a carregar e de ler os emails que me enviaram. Correspondemo-nos por tudo e por nada e com isso a correspondência perdeu valor. Outrora, trocar cartas era um exercício sério, exigia ponderação, letra adequada aos olhos do leitor, espírito crítico. Se era uma daquelas cartas decisivas, havia o ritual de a escrever múltiplas vezes, deixando pelo chão um rasto de folhas rasgadas. Isto, caso fosse um filme. Na vida real, não faço ideia, pois nunca escrevi cartas decisivas. Imagino-me a escrevê-las, mas não sei o que se possa escrever de decisivo. Lembro-me de na adolescência haver um enorme catálogo disponível de envelopes para envolver os suspiros desses adolescentes ou mesmo de outros menos adolescentes. Nunca usei, talvez não fosse dado à epistolografia ou aos suspiros. Não faço ideia.
quinta-feira, 28 de janeiro de 2021
Nada de literalidades
Depois de quase uma semana sem sair de casa, há pouco pus-me na rua e caminhei durante meia-hora. Não foi muito. Se continuar a não andar, acabarei por me esquecer de como se anda, pensei. A avenida não estava despovoada como acontecia no primeiro confinamento, mas também não estava fervilhante como nos dias normais. Era uma espécie de limbo habitado por almas inocentes, mas que não foram mergulhadas a tempo na água lustral. Devia evitar analogias, não vá alguém levar as minhas palavras a sério. Ainda há pouco, numa daquelas videoconferências que se tornaram a realidade que existe, tive de esclarecer que as minhas palavras eram uma ironia. Eu estava a significar o contrário do que estava a dizer. Talvez as pessoas sejam habitadas por uma ânsia de literalidade. Pão, pão; queijo, queijo. Faz-se disto a expressão do bom carácter, de quem diz o que tem a dizer, com todas as letras, não lhes vá faltar alguma. Nada de eufemismos, ironias. Abula-se a retórica. O pior é que a própria realidade é retórica, como me disse hoje de manhã ao telefone o padre Lodo. Há muito que não conversávamos. Estou cansado da pandemia, disse-me. Estou cansado destes exercícios de estilo com que a realidade nos envolve, continuou. Depois, lembrando-se da sua condição de sacerdote, acrescentou há que ter paciência e decifrar com humildade os sinais com que Deus decide marcar o nosso caminho. Tentei perguntar-lhe se ele achava então que o vírus era castigo divino, mas ele não me deixou formular a questão e disse já sei, já sei, mas não vou entrar em discussões teológicas a esta hora da manhã. Nada de interpretações literais. A letra mata, o espírito vivifica, disse e riu-se com a sua gargalhada exuberante de italiano. A tarde avança decidida para o seu encontro com a noite e eu tenho de voltar para os meus afazeres, literalmente.
quarta-feira, 27 de janeiro de 2021
Efeitos colaterais
Quando me sentei para tomar o pequeno-almoço, dirigi, como o faço sempre, o olhar para a rua. Os olhos procuram de imediato duas colunas de fumo que, numa aldeia ao longe, se erguem aos céus ou, caso esteja vento, correm paralelas à terra. Imagino que são dois fornos onde se há-de cozer pão e ali haverá gente preocupada com a temperatura, se o pão não sai queimado, se já estará na hora para o retirar do forno e o pôr à venda. Imagino, mas não sei o que são, não sei de onde vem aquele fumo. Imagino, e isso é tudo. Hoje, porém, senti uma imediata irritação. Eu queria procurar as colunas de fumo, mas os olhos pareciam cravados num enorme letreiro em forma hambúrguer. Desviava-os e eles logo voltavam para lá. Fiquei a calcular quantos anos o bosque da escola ao lado levaria a cobrir aquela visão. Os cedros estão a crescer a um ritmo promissor, já os pinheiros parecem mais lentos. Ontem a minha neta mais nova fez dez anos. Não a vi, a não ser via WhatsApp. É a primeira vez que não estou presencialmente nos seus anos. Não tarda e será o dia de aniversário da minha filha e também ela estará longe, como se todos aqueles que me são próximos se tivessem exilado num país inacessível e estivessem proibidos de entrar na pátria. Terá de ser assim, eu sei, mas custa-me saber do meu neto, agora a meia dúzia de quilómetros de distância, e não poder brincar com ele, que já começou a falar, cheio daquela graça que só existe quando se tem dois anos. Não sei o que me deu para tamanha patetice. Não há contabilista que adoce as contas da pandemia.
terça-feira, 26 de janeiro de 2021
Da cobiça e da entrega
Confinado, fui à varanda do escritório desconfinar. Na praceta, em baixo, um cão, um Basset, levava à trela a dona, vestida de preto, com ténis brancos. Iam devagar, ele farejava a relva e ela, arrastada, olhava o horizonte. Não faço ideia se era um Basset, mas passa a ser. O dia está cinzento, o ambiente anda tenso, as pessoas levam-se a si e às suas convicções demasiado a sério. A realidade, todavia, não deixa de conter muitas ironias. Aliás, ela é um manto onde a tragédia e a comédia se entrelaçam sem parar. Olho para mim e não posso deixar de me rir. Talvez porque seja velho e tenha perdido a vergonha. Se observo as minhas crenças com um pouco mais de cuidado, então tenho motivo para belas gargalhadas. Não porque as crenças dos outros sejam mais dignas do que as minhas, não o são, mas porque todas elas são humanas, demasiado humanas, marcadas pelo ferrão da finitude. Eu sei que todos queremos possuir a verdade, mas esta é uma mulher virtuosa, como só as havia noutros tempo – o que me irá acontecer por ter escrito isto? - e deixa-se cobiçar por todos, mas não se entrega a ninguém. Se cada um se risse de si e daquilo em que acredita, talvez o mundo fosse um sítio mais aprazível. Ainda há pouco estive a falar com uns estorninhos que andam por aqui. Para dizer a verdade, não percebi nada do que eles disseram, mas entendemo-nos perfeitamente. Gosto mais de falar com eles do que com os pombos. O Basset há muito que foi engolido pela esquina do prédio e eu vou fazer aquilo que me espera.