Como não tenho nada para escrever, aproveito o ensejo de um artigo do Público, no qual se usa o verbo espoletar, para fazer uma comunicação urbi et orbi. Reconheço que é um avanço relativamente à deplorável moda de usar despoletar, pois espoletar acorda-se com a função da espoleta numa granada. Contudo, ainda não consegui perceber qual a necessidade de recorrer a estas metáforas militares para dizer desencadear, originar ou provocar. Um dia alguém achou interessante usar despoletar e a atracção foi de tal maneira intensa que provocou uma pandemia de despoletamentos por tudo o que era texto e comunicação oral. Lentamente, lá se foi percebendo que despoletar significa exactamente o contrário, evitar que se desencadeie deflagração da granada. Se não se deve usar despoletar, então que se use espoletar. E começaram a deflagrar espoletamentos sem fim. Deixem as espoletas e as granadas em paz. Já basta quando, no teatro de guerra, têm de ser utilizadas. Usem originar, desencadear, provocar, gerar. Ainda por cima, a palavra está longe de ser esteticamente agradável. Despoletem a mania de espoletar e despoletar por dá cá aquela palha. Isto ainda não é uma guerra.
sábado, 9 de novembro de 2024
sexta-feira, 8 de novembro de 2024
Pensamentos
Saí para caminhar às cinco e meia da tarde. A noite caía sobre a cidade, envolvendo-a na tenaz da escuridão, cobrindo-a com um véu de negrura, um tule sarapintado pela melancolia da iluminação pública. Nas ruas, as pessoas iam e vinham. Nos parques infantis, havia pais e avós olhando com desvelo as crianças, arrancando com os olhos a noite que sobre elas caía. Não me lembro do que pensei durante o trajecto, mas terei pensado muitas coisas, pois a consciência é um babuíno aos saltos, nunca parando quieta, disparando pensamentos uns atrás dos outros. Para ser exacto, deveria dizer: eu não pensei nada, pois os pensamentos que tive foram acontecendo em mim e não coisas que eu decidi pensar. A maior parte dos nossos pensamentos não são nossos, são deles, que, numa atitude tirânica, se impõem, como déspotas orientais, a nós. Acontece, e não é raro, as pessoas serem vítimas dos pensamentos que nelas se pensam. Ficam obsidiadas pelos invasores, cercadas pela torrente de ideias que as assaltam. A certa altura, fazem coisas que nunca fariam senão fosse a impertinência daquele inimigo que tomou conta delas. Quantos crimes se evitariam caso as pessoas soubessem pôr os pensamentos que nelas se pensam ao longe? Serão elas culpadas dos seus crimes? São culpadas de não resistirem ao cerco dos pensamentos e, por isso, são cúmplices desses pensamentos. Contudo, enquanto caminhei não pensei em nada disto, mas não consigo já recordar o que pensei. E esta é uma grande virtude que possuo. Esquecer-me de coisas que não merecem recordação. Talvez seja a única, e mesmo isso é duvidoso.
quinta-feira, 7 de novembro de 2024
Gramática e categorias aristotélicas
Diante de mim tenho, neste momento, uma gramática de português com mais de mil e cem páginas. É uma gramática árdua, cheia de designações que me são estranhas. Perante ela e a sua opacidade – opacidade para a minha ignorância gramatical – senti uma inquietante saudade das antigas gramáticas normativas. Eram gramáticas aristotélicas, embora não saiba se os gramáticos as consideravam assim. Por que razão as associo a Aristóteles? Imagino que seja por causa das categorias. O discípulo de Platão construiu uma tabela de dez categorias: substância, quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, posição, estado, acção e paixão. Imaginei, e continuo a imaginar, que sem dificuldade a gramática, aquela que me foi ensinada, se deixaria combinar com estas categorias. Talvez o principal problema esteja na preeminência dada à substância em relação às outras categorias, que não passam de acidentes da substância. A substância é aquilo que é e os acidentes são coisas que podem ou não ocorrer nela. A substância é o que é designado pelos substantivos – nesta volumosa gramática apelidados de nomes – e os acidentes relacionar-se-iam com as restantes classes de palavras, com algumas excepções, pois também aqui não haveria regra sem excepção. Isto, porém, é a visão de um ignorante gramatical, deixando-se arrastar por um saudosismo insensato e imaginando ver coisas que não existem. A sabedoria de Aristóteles manifesta-se na categoria da paixão. Enquanto a categoria da acção nos diz aquilo que uma substância faz, a da paixão indica aquilo que ela sofre. A paixão, qualquer paixão, indica-nos uma passividade – na verdade, uma impotência – da substância. As paixões sofrem-se, não se é delas autor. Contudo, como qualquer outra categoria, a paixão é um acidente e não faz parte da essência da substância. Quanto mais apaixonada é uma substância, tanto mais passiva ela é, pois, mesmo a sua acção, passa a depender daquilo que ela sofre.
quarta-feira, 6 de novembro de 2024
Fantasias
Um dia magnífico por aqui. Um começo promissor, que a manhã e a tarde cumpriram. Pena que tivesse passado parte substancial desse tempo em reuniões online cuja finalidade, como é hábito, ainda não consegui descortinar. Tenho uma natureza pouco dada a reunir. Gosto da comunidade, desde que não tenha de a frequentar. A comunidade como horizonte ou pano de fundo é o meu ideal. Contudo, entre a realidade onde me movo e a idealidade com que me consolo, há uma grande distância, tão grande que, caso fosse dado a isso, cairia num grande desconsolo. Não caio, talvez porque não acredite naquilo em que acredito. Isto tem a aparência de ser contraditório, mas é só a aparência. Explico-me. Todos nós para vivermos neste mundo precisamos de ter crenças. Sem elas, a vida seria não apenas insuportável como impossível. Por isso, eu tenho um conjunto de crenças. Por outro lado, suspeito de todas as minhas crenças, o que me leva a descrer naquilo em que creio. Melhor, eu creio firmemente nas minhas crenças, mas sei que elas são fantasias – fantasias produtivas que me permitem andar por este mundo. É evidente que não tenho nenhum grande causa. Ter uma grande causa é esquecer que a crença que a sustenta é uma fantasia. E isso é uma das poucas coisas que não esqueço. Aliás, se ninguém tivesse grandes causas, o mundo seria um lugar mais decente. Aproximamo-nos do crepúsculo e mesmo este está belíssimo, como esteve todo o dia. Imagino que esta minha crença na beleza do dia de hoje seja uma fantasia, mas uma fantasia necessária.
terça-feira, 5 de novembro de 2024
Saber, não saber
Têm estado, por aqui, uns dias verdadeiramente outonais, embora não se saiba muito bem o que definiria um dia verdadeiramente outonal. Também se suspeita, não sem razão, que o Outono não passa de uma convenção humana, um modo, entre outros, de lidar com o tempo. Seja como for, sei o que é o Outono e o que são dias outonais, apesar de não saber nem uma coisa nem outra. Sabemos que estamos no Outono como sabemos que estamos em casa. Reconhecemos a casa, sem que dela façamos uma concepção teórica. É assim que sei o que é o Outono. Reconheço quando estou nele. Saber não sabendo é o melhor. É deste modo que se inicia o capítulo 71 do Tao Te King. É assim que sei do Outono, da minha casa, de mim. Como sei de mim? Habitando-me. É no Outono que me habito melhor, pois eu sou uma morada outonal e o morador dessa casa. Talvez não seja nada disso. Apenas a cinza do dia rasgou o lençol da nostalgia e comecei a pensar que hoje é um dia outonal, até que me perdi e comecei a escrever coisas sem sentido.
segunda-feira, 4 de novembro de 2024
Destruições da humanidade
Um artigo do Público online referia as sondas von Neumann e o conceito de singularidade proposto pelo mesmo John von Neumann. As sondas seriam dispositivos auto-replicantes que, lançados para o cosmos, teriam a capacidade de explorar os planetas, de enviar informação para a Terra e – aqui está a novidade – de se auto-replicarem, o que suporia uma espécie de autonomia genésica, através de materiais encontrados nesses planetas, Poderiam constituir uma vasta rede de pesquisa e informação espalhada cada vez mais longe neste nosso universo. A singularidade significaria um ponto no futuro em que a rapidez e extensão do desenvolvimento da tecnologia escapa à capacidade de compreensão humana. Ora, há um comentário ao artigo em que se verbera o autor, pois este não tem em consideração o potencial destruidor da humanidade contido nas duas ideias. É perante coisas destas que tenho pena de não poder viajar no tempo e visitar certos momentos da história da nossa pobre espécie. Até certa altura do nosso desenvolvimento – tal como acontece ainda hoje com os outros animais – os humanos não dominavam o fogo. Imagino que, no tempo em que os homens aprenderam a domesticá-lo e a conservá-lo, não tenham sido poucos aqueles que viram nesse poder sobre o fogo a porta aberta para grandes desgraças. Esta minha especulação tem algumas bases. O mito de Prometeu, o roubo do fogo pelo titã, a sua dádiva aos homens e o castigo de que foi vítima – tudo isso não é mais do que a condensação daquelas vozes que um dia viram no domínio do fogo pelos homens um potencial destruidor da humanidade. Toda a vez que dominamos o fogo, isto é, que desenvolvemos o poder de utilizar de novas formas a matéria e a capacidade de inventar novos dispositivos tecnológicos, levantar-se-ão vozes que nos advertirão que o resultado será um fatal castigo que levará à extinção da humanidade. Ora, estas vozes falham o essencial. O perigo não está no desenvolvimento da tecnologia, mas no facto de não conseguirmos pensar o mistério que esse desenvolvimento encerra. Não são apenas os seres naturais que encerram mistérios indecifráveis. Também os produtos do engenho humano são misteriosos, mesmo que só os consideremos do ponto de vista da utilidade e os abandonemos à sua sorte quando se tornam inúteis.
domingo, 3 de novembro de 2024
Meditação dominical
Chegado a esta altura da vida, penso que tudo, e não apenas o Zen, possa ser o referente das palavras de D. T. Suzuki: Com efeito, está na natureza do Zen escapar a toda a definição e explicação; noutros termos, não pode ser convertido em ideias e descrito em termos lógicos. O que, neste mundo e mesmo num outro, poderá ser convertido em ideias e descrito em termos lógicos? Plausivelmente, nada. Por muito que me esforce para reduzir este domingo a uma ideia e descrevê-lo no âmbito de uma lógica, mesmo que modal, com os seus operadores de necessidade e de possibilidade, os meus esforços serão baldados. Os seres humanos ficaram deslumbrados com o facto de pensarem e, como corolário, com o impacto que, através da técnica, o pensamento tem na configuração das coisas. O deslumbre, devido à intensidade da cintilação, cegou-os e não os deixa perceber a incomensurabilidade entre as coisas e o pensamento acerca delas. As nossas definições não definem nada, nem as nossas explicações explicam seja o que for. Aquilo que é escapa-se sempre à rede com que o tentamos capturar. Defino uma árvore, classifico-a e explico o modo como nasce e se desenvolve, mas ela, se tenho a humildade da atenção, permanece para mim um mistério, não maior ou menor do que eu sou para mim.
sábado, 2 de novembro de 2024
Histórias hegelianas
O mês, refiro-me a Novembro, começou mal-encarado, mas hoje mudou de disposição e tem estado um magnífico dia de Outono. Já não me recordava da história, mas um acaso levou-me a ela. Em Jena, Hegel teve um caso com uma jovem mulher casada. Desse acidente nasceu um rapaz que foi baptizado como Ludwig Hegel. Entretanto, o filósofo foi para Bamberg, não sem antes prometer à mãe do filho, que, entretanto, enviuvara, casamento. Os deuses não estiveram pelos ajustes e fizeram-no encontrar Marie von Tucher. Caiu em estado de adoração por mais esta manifestação do espírito absoluto e esqueceu a promessa a Christiane Charlotte Burkhardt, nascida Fischer. Imagino que na mãe do seu primeiro filho o espírito absoluto se manifestasse com menos vigor. São coisas que acontecem. Quanto a Ludwig, nem tudo correu pelo melhor: a mulher do pai detestava-o. Para piorar a situação, a criança queria ser médica, mas o pai desviou-a para o comércio. Uma decisão fatídica. Hegel encontrou uma ocupação para o filho ilegítimo como oficial na Companhia Holandesa das Índias Orientais. O pobre rapaz terá morrido, em Jacarta, Batávia, na altura, de uma infecção nas vias respiratórias. Em compensação, o pai morrerá três meses depois. Estas informações encontrei-as em Alexander Kluge. Não é claro que Ludwig possa ter tido prazer em reencontrar o pai no outro mundo. Afinal, não lhe faltavam razões para estar decepcionado com o grande filósofo. E, por certo, não seria por motivos filosóficos, nem por disputas sobre a Fenomenologia do Espírito ou a Ciência da Lógica. Também é possível que o pai nem tenha dado pelo filho. Teria o espírito ainda ocupado com a dialéctica e tentava, talvez com um certo desespero, verificar se a negação da negação funcionava naquele mundo onde os espíritos se passeiam sem o revestimento do corpo. Conta-se a anedota de que ao morrer Hegel terá dito Só um homem conseguiu entender-me… e esse não me entendeu bem. Aliás, esta incompreensibilidade hegeliana era partilhada pelo próprio Hegel, que, segundo outra história, terá dito numa aula, talvez ao ser incomodado por um pedido de esclarecimento de um aluno, depois de eu ter dito o que disse, só Deus sabe aquilo que eu disse. Esta anedota, porém, nunca me convenceu. Imagino que o próprio Deus não sabe ou soube alguma vez aquilo que Hegel disse.
sexta-feira, 1 de novembro de 2024
Broas dos Santos
Mais do que a totalidade dos santos, o que aqui se comemora no dia de hoje é as broas dos Santos. As famílias faziam as suas, numa produção privada. Hoje, porém, as coisas ficaram entregues ao comércio e a uma pequena indústria caseira. O resultado, deve-se reconhecer, é bastante bom. O facto de haver um mercado e de os fazedores de broas estarem em concorrência levou a um certo esmero na produção dos diversos espécimes. Já experimentei uma de café e outra de mel e nozes, compradas na frutaria aqui ao lado. E experimentar foi mesmo experimentar e não deixar-me arrastar pela tentação que representam para mim. Comi metade de cada uma. Esta frugalidade, tão em desacordo com o que acontecia outrora, mas num outrora cada vez mais longínquo, é o sinal dos anos. De um grande prazer, fica o pequeno consolo da sóbria experimentação. Contava ir para Lisboa. De manhã, ia ver o meu neto na sua aprendizagem de raguebista e almoçar em família alargada. A realidade, porém, não esteve de acordo, e tive de ficar por aqui, num dia cinzento, onde a melancolia se desprende das árvores e desliza, sorrateira, entre casas. Oiço a música de Carlo Gesualdo, o príncipe de Venosa. E tudo parece conjugar-se num espírito crepuscular. O melhor será levantar-me e assaltar as broas. Afinal, os Santos são hoje.
quinta-feira, 31 de outubro de 2024
O sentido
quarta-feira, 30 de outubro de 2024
Vulnerabilidade
Hoje já apanhei um susto. O que causou o susto, felizmente, mostrou-se menos causa de susto do que se chegou a supor. Ora, passado o susto, ficou o espaço para olhar para os efeitos do susto sobre mim. Descobri que o acumular dos anos não nos fortalece a invulnerabilidade. A imaginação, com as suas suspeitas, torna-se mais poderosa, quase maléfica. É nisto que tenho pensado nesta tarde que se tornou negra como a noite. Vejo que deveria estar a cair chuva forte, mas, se chove, é coisa fraca. Alegra-me o vídeo que, entretanto, recebi. O meu neto, nos seus quase seis anos, a marcar um ensaio num jogo de râguebi dos minis. E isto é o outro lado da vulnerabilidade, esta alegria por um pequeno feito do neto, que, na verdade, é apenas uma brincadeira de criança. Aliás, a experiência do aumento da vulnerabilidade está muito ligada à experiência de se ser avô. O que se passa com os netos afecta de uma maneira que não estava à espera. E, estou desconfiado, que a afecção não nasce da fragilidade deles, mas da minha, o que não é coisa fácil de aceitar.
terça-feira, 29 de outubro de 2024
Uma súbita metamorfose
Acabei de ler, no número de Outono de 2024 da revista Electra, um artigo do matemático Umberto Bartocci. Não trata de problemas matemáticos relevantes ou mesmo irrelevantes. O problema deste universitário reformado é o desaparecimento de um jovem físico siciliano, tinha 31 anos, em 1938. Discípulo de Enrico Fermi, Ettore Majorana era uma jovem estrela em ascensão no céu da física. De um dia para o outro eclipsou-se e, até hoje, não se faz a mínima ideia do que aconteceu. Imagine-se o conjunto de teorias que a evaporação do jovem prodígio terá originado. Leonardo Sciascia, um dos grandes escritores italianos, dedicou-lhe um romance, La Scomparsa di Majorana, não traduzido em Portugal, e as especulações e efabulações sobre o que lhe terá acontecido são imensas, segundo o texto de Umberto Bartocci. O próprio matemático, talvez cansado da Matemática, não se poupou e apresenta uma tese, também ela romanesca. Envolvimentos amorosos com mulheres casadas, filhas que terão passado a vida a chamar literalmente pai a outro, conflitos familiares, a começar, como não podia deixar de ser, com a mãe, tudo numa família siciliana. Isto apesar de ele ser tímido no contacto com as mulheres. De efectivo fica-se a saber que Majorana era um grande físico, nomeado aos 31 anos para cátedra de Física Teórica na Universidade Real de Nápoles e que desapareceu poucos meses depois da nomeação. Também se sabe que se filiou cedo, e por convicção, nas juventudes do partido nacional fascista. Bartocci termina o artigo dando a entender que talvez saiba mais do que diz e que, eventualmente, saberá o que terá acontecido ao discípulo de Fermi. O melhor seria que Bartocci escrevesse dois romances. Um sobre o desaparecimento e as razões que assistiram ao desaparecido e outro sobre a sua segunda vida, talvez, imagino eu, com outro nome. Ter-se-á perdido um grande físico, mas, devido a uma súbita metamorfose, descobriu-se uma bela personagem romanesca.
segunda-feira, 28 de outubro de 2024
Contribuição decisiva
Chegou a altura de nos lamentarmos por anoitecer tão cedo. A mudança da hora terá por finalidade, duas vezes por ano, gerar uma certa perturbação no ritmo de vida das pessoas. Haverá ainda uma outra finalidade, mas que está em vias de se tornar destituída de sentido. A de acertar o relógio pelo novo horário. Ora, nos tempos que correm, consulta-se as horas em muitos dispositivos digitais, os quais nos roubam o prazer do acerto, tomando-o eles próprios para si. É certo que existem ainda muitos dispositivos, entre eles relógios, que não fazem alterações horárias automáticas, mas lá chegaremos. Resta o prazer de perturbar a vida das pessoas. Diria que essa é uma das prerrogativas dos poderes deste mundo e, apesar da sensatez que seria evitar essas perturbações, aqueles que têm o poder de determinar a hora oficial não evitam a perturbação, pois se o fizessem seriam despojados de um poder, coisa que os perturbaria a eles. Entre a perturbação dos muitos que têm de seguir a hora oficial e a perturbações dos poucos que têm o poder de a determinar, estes últimos agem do modo mais racional possível. Defendem os seus interesses e evitam a sua perturbação por não poderem perturbar os outros. Esta é a explicação mais plausível jamais dada para justificar aquilo que não tem justificação, andar a mexer nos ponteiros dos relógios, ora adiantando, ora atrasando. Fico-me por aqui. Hoje já contribuí para decifração de um dos mistérios que atormentam o mundo.
domingo, 27 de outubro de 2024
Infelicidade e esquecimento
sábado, 26 de outubro de 2024
Degradação
Talvez não devesse mobilizar, nestes textos, referências. A erudição é uma doença e, neste caso, uma aparência de erudição não é uma aparência de uma doença, mas uma doença mais radical e deplorável. Contudo, nem sempre posso evitar o jogo das referências, tal como acontece hoje. No capítulo cinco, “The Degradation of Sport”, de The Cultura of Narcissism – American Life in An Age of Diminishing Expectations, Christopher Lasch defende que aquilo que corrompe uma performance desportiva, tal como degrada um ritual ou um drama, é a sua transformação em espectáculo. É nesta transformação em espectáculo que as actividades humanas se degradam. A seriedade que as habitou perde-se quando se transformam em entretenimento, uma forma de matar o tempo, de lidar com o tédio existencial. Não foi apenas o desporto, o ritual religioso (imagine-se uma procissão em Espanha) ou o teatro que transformaram em espectáculo para entretenimento. A própria acção política, na sequência da degradação do ritual religioso, tornou-se um espectáculo e degradou-se em entretenimento. O sério e o decisivo da existência tornaram-se um logro, um divertissement. É com esta palavra que Pascal, no início da modernidade, trata dessa fuga que impede o indivíduo de se confrontar com o enigma da existência. O desporto moderno, com as suas paixões, é um símbolo de uma existência impotente de enfrentar o mistério colocado pelo facto de se existir. É um símbolo totalizante, pois ele simboliza a degradação de toda e qualquer actividade humana, desde o ritual religioso até à práxis política.
sexta-feira, 25 de outubro de 2024
Mais lento
A certa altura, a autora escreve: Desde que os meus movimentos se tornaram mais lentos, a floresta à minha volta ganhou, pela primeira vez, vida. Este elogio da lentidão está em conflito aberto com as exigências das sociedades modernas. Estas são uma revolta contra o prazer de saborear, pois saborear exige que se evite a pressa. Cada vez mais rápido é o lema em que se funda a modernidade. A pressa impede-nos de usar os sentidos na sua plenitude e essa alienação sensorial torna-nos cegos. A floresta de que fala a autora da frase citada, a austríaca Marlen Haushofer, é no romance, A Parede, uma floresta real, tanto quanto uma floresta ficcional pode ser real, mas também é uma metáfora para a existência. A velocidade torna-nos incapazes de saborear a existência, de perceber como ela é viva. É um facto que a narradora e protagonista do romance só chegou a essa hora em que os movimentos se tornam mais lentos depois de um acontecimento decisivo, mas sobre ele não falo. Quem o quiser descobrir que leia A Parede, um grande romance, e a sua grandeza não reside no número de páginas, mas na própria natureza da obra. Em vez de perorar sobre a aproximação do fim-de-semana, vou ler, sem pressa, as páginas finais de A Parede. Também eu cheguei a uma altura em que os movimentos se tornaram mais lentos.
quinta-feira, 24 de outubro de 2024
Classificações
Olhei lá para fora e pensei que era sexta-feira. Uma ilusão de óptica. Apesar de a tarde de hoje se parecer com uma tarde de sexta-feira, ainda estamos na quinta-feira. A mente humana tem uma curiosa propensão para fazer classificações e, depois, integrar os fenómenos nessas categorias. Ora, essas categorias são arbitrárias e a inclusão nelas daquilo que acontece ainda é mais arbitrário. Contudo, é essa arbitrariedade que nos permite viver. Torna-se num hábito social ou psicológico, torna-se numa tradição ou num ritual declinado pelo indivíduo. Veja-se o caso de a classificação da tarde de hoje no grupo das tardes de sexta-feira ser completamente errada, ainda assim teve utilidade, pois confrontou-me com o facto de que nem tudo o que parece é, e, sendo assim, estas classificações estão abertas ao erro e não devem ser tomadas como dogmas, mas meras indicações para navegar no mar da existência. Ensina ainda outra coisa. Que há tardes de quinta-feira que se parecem com as de sexta-feira. O dia continua a aproximar-se da hora crepuscular, mas ainda há crianças no parque infantil, perfurando o ar com a verruma das sua vozes e o estile dos seus gritos. Não querem saber qual a tonalidade da tarde que vivem, apenas querem vivê-la na plenitude que toda a inocência implica. As vozes calaram-se, mas o ranger das roldanas das cadeiras de baloiço ocupou o palco. Não há pássaros no horizonte e isso é tudo o que me ocorre.
quarta-feira, 23 de outubro de 2024
Fado
Sou especialista em esperas num consultório médico. Uma coisa deplorável. Hoje, porém, aprendi a mitigar a avaliação dessas esperas. Uma ida às Finanças foi uma lição exemplar. Três horas e meia depois de chegar, fui atendido. O funcionário foi gentil, mas não tratei de nada, pois faltou um papel do banco, banco esse que através de um funcionário disse não ser necessário. O facto de ter sido atendido e a explicação que recebi de como podia tratar do assunto online amenizaram-me a indisposição. Falta, porém, ir ao banco e conseguir o papel que as finanças pretendem, coisa que não me parece que seja fácil e que me fique barata, segundo percebi da conversa de hoje. Antes de mim estava uma pessoa que foi toda a vida emigrante na Suíça e não percebia como é que estas coisas eram assim por cá. Como para tudo, também para isto tenho uma tese. É uma questão genética. Os portugueses, entre os quais me incluo, apesar de nem sempre passar por tal, têm um gene especial. Esse gene tem por função tornar complicado tudo o que é simples. Mal o português vê um processo simples, logo trata de o tornar complexo. Esse gene está intimamente conectado com os genes que suportam a inteligência, pois, apesar da decisão de tornar complexo o que é simples ser eminentemente estúpida, o português consegue encontrar uma teia de explicações que justificam a complexificação. O normal é a inteligência suportar acções e decisões inteligentes. Não é o caso em Portugal. O nosso gene da inteligência tem por função fundamentar decisões estúpidas. O mais interessante de tudo isto é que nós nem somos culpados. Que culpa pode haver em alguém que não fabricou os seus próprios genes, mas os recebeu? Nenhuma. É a isto que se chama fado
terça-feira, 22 de outubro de 2024
Instabilidades
Como ontem, o dia de hoje tem uma luz vibrante. O céu, de um azul-pálido, é sulcado por pequenas nuvens de uma cinza esbranquiçada. Formam uma frota dispersa, em fuga, depois de uma derrota em alto-mar. Quase se ouvem os gemidos dos marinheiros moribundos, mas será apenas a imaginação de um narrador sem ocupação. Talvez o bom tempo tenha vindo para ficar. Se assim for, chegará a hora em que se ouvirão lamentos pela falta de água, pelas terras secas, pelas culturas perdidas. Nenhuma novidade. A questão da novidade é interessante, talvez mais do que se pensa. Se pensarmos que tudo o que acontece é único e irrepetível, que nenhum momento é idêntico a outro, chegaremos, de imediato, à conclusão de que tudo o que acontece é novidade. Ora, a ideia que transportamos de novidade está fundada na oposição entre o velho e o novo. Ora, se tudo é constantemente novo, então não há lugar para o jogo de oposição entre velho e novo e, como corolário, não há qualquer novidade. Os móveis velhos daquela sala são, na verdade, continuamente novos, pois a cada instante que passa eles tornam-se outros, numa alteração contínua e sem fim. Eu, narrador deste instante, não sou o narrador que começou o texto, pois a escrita de cada letra me fez ser outro, por muito que eu afirme que sou o mesmo, que sou o velho narrador de há pouco ou de há dez anos. O problema é que não sabemos como lidar com o fluxo da diferenciação e consideramos como iguais coisas – isto é, tudo o que existe – que, constantemente, se tornam diferentes. Confundimos a nossa necessidade psicológica de estabilidade das referências com o facto de as coisas serem estáveis. Não são. Nós também não.
segunda-feira, 21 de outubro de 2024
Um delírio palavroso
Os textos escritos neste blogue, durante o ano de 2024, enchem, com o de hoje, cento e trinta cinco páginas A4, com um espaçamento de 1,15 entre linhas. São mais de 82 mil palavras. Todas esta informações são-me dadas pelo processador de texto. Fico siderado pela capacidade de encher tantas páginas sem que tenha uma finalidade para o fazer, nem lhe encontre um sentido que justifique tão expansivo delírio palavroso. Contudo, as adversativas são coisas extraordinárias, há uma analogia com a vida. Também ela, por muito que isso nos desgoste, se desenrola sem finalidade e sem que um sentido se perceba no acontecimento de haver matéria viva num universo de matéria morta. Os textos que escrevo são como a vida. Acontecem como ela. Que relação há entre eles e a matéria morta da minha mente? A mesma que entre a matéria viva e a matéria sem vida do universo. As segundas-feiras são difíceis para este narrador. Nunca encontra objecto de narração e agarra na primeira coisa que saltita diante dos seus olhos. Podia ser a sombra que se estende a esta hora pela cidade e pelos campos. Podia ser o leve ondular das folhas das acácias. Podia ser aquele cão que arrasta uma dona que não larga o telemóvel, enquanto o animal está desejoso de conversar com ela. Podia ser outra coisa qualquer, mas foram as centro e trinta e cinco páginas de coisas inúteis. Agora, porém, vou dedicar-me à utilidade e não é tratar do jardim, que, aliás, não tenho.