sexta-feira, 10 de outubro de 2025

Está a acabar

Está a acabar. As comitivas partidárias fazem, por hábito antigo e falta de imaginação, os últimos circuitos pela cidade. Buzinando como se fossem adeptos de um clube de futebol acabado de se sagrar campeão. Estou a mentir. Falta-lhes a convicção dos adeptos. Esperam que chegue a hora de jantar, para regressarem a casa, comer uma boa refeição e sair à noite, pois hoje é sexta-feira. O dia de amanhã é de desintoxicação, mas os candidatos que vejo pela rua não me parecem intoxicados. Cumprem o seu papel de modo administrativo e aguardam o resultado das urnas. Os que ganharem hão-de improvisar uma caravana com cachecóis e bandeiras, gastarão uns litros de gasolina, ferirão alguns tímpanos sensíveis, mas depois voltarão sossegados para casa como se nada se tivesse passado. Haverá um ou outro crente que estará convicto que o mundo mudou, mas este recusa-se cooperar. Não se pense que sou um adepto da não ida às urnas. Vou sempre, não porque espere uma redenção, mas porque tenho o dever de ir. E os deveres são por cumprir por amor ao dever.

quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Absurdo

Por vezes, lêem-se coisas que se transformam, de imediato, em candeias. Como se sabe, ou talvez já não se saiba, uma candeia é um dispositivo tradicional de iluminação. O lido é iluminante. Foi o caso de um pequeníssimo texto, um aforismo, de Arthur Schnitzler, um escritor austríaco: Por mais absurdo que o mundo te possa parecer, nunca te esqueças de que, quer ao agires, quer ao não agires, estás a contribuir em boa parte para esse absurdo. Eu já tinha a sensação de que o mundo era absurdo. Também estava convicto de que a minha acção, muitas das vezes, se não sempre, era absurda. Agora, sei mais. Sei que tanto a minha acção como a minha inacção contribuem para o absurdo do mundo. E como corolário adquiri a sabedoria que também eu sou culpado desse absurdo. Sou culpado por actos e por omissões. O mais adequado será dizer, declinando todas as ferramentas culposas, que contribuo para o absurdo do mundo por palavras, pensamentos actos e omissões, como estes textos provam.

quarta-feira, 8 de outubro de 2025

Exílio

Aproxima-se a hora do crepúsculo. Depois virá a noite, mas a noite há muito que deixou de ser noite. É apenas um crepúsculo artificial e diferido. Tudo tem um preço. A vida cómoda tem como contrapartida o acantonamento da velha natureza numa ilha que ninguém sabe onde fica. Eu também não e não tenho disposição para me aventurar no mar tenebroso à sua procura. Fico com o artifício. Ao pescoço, trago um dispositivo que me vigia o ritmo cardíaco, registando com fidelidade – assim o espero – a sua marcha. Na ilha onde a natureza se escondeu, não o podia usar, nem escrever o que estou a escrever, nem sequer pensar o que estou a pensar, pois a natureza não pensa. Pensar é o artifício do homem para enviar a natureza para o exílio. 

terça-feira, 7 de outubro de 2025

Palha

Jacques Maritain, referindo-se a Tomás de Aquino, diz que este leu todos os Santos Padres, e todos os livros então conhecidos, e que também sabia a Bíblia de cor. Podemos imaginar que Tomás era um ávido leitor, com tempo disponível para a leitura, mas também podemos especular que o acervo de livros existentes no seu tempo era reduzido, o que terá permitido não apenas ler tudo o que havia para ler, mas também escrever o que escreveu, com idêntica avidez. Ora, o mais notável é que a sua dupla avidez não foi obstáculo a que se tornasse santo. É certo que, a dada altura, após uma visão mística, durante a celebração de uma Missa, absteve-se de escrever, de tal modo que deixou incompleta a monumental Summa Theologica. Deu, ao seu secretário, uma razão plausível: Não posso, porque tudo quanto escrevi me parece palha. Ele não teria a certeza, mas confiou na aparência, na sensação subjectiva de um me parece. Terá sido essa confiança numa aparência que o libertou da avidez da escrita e, talvez, da leitura. Se se podemos imaginar que a porta para glória dos altares foi a tal visão, o deixar de escrever foi os passos que o levaram a transpor a porta. O seu exemplo, porém, não frutificou. Pelo contrário, desde o seu tempo que o volume das coisas escritas não deixa de se multiplicar exponencialmente. De tal modo, que não há na Terra, nem na soma de todos os planetas rochosos dos sistema solar, espaço suficiente para construir armazéns para guardar a palha produzida, a qual, na sua generalidade, nunca protegeu qualquer grão.

segunda-feira, 6 de outubro de 2025

Queda no caldeirão

Tenho de me preparar. Não tarda e é hora de sair. Espera-me o cinema, embora nada nem ninguém me espere. Há dias assim, em que ninguém nos espera, nem sequer uma instituição, um animal, um objecto. Em contrapartida, também não espero ninguém. Uma espécie de empata técnico, como se diz nas sondagens eleitorais. Agora, que caminhamos para um acto eleitoral, pergunto-me se votaria em mim. A resposta parece-me óbvia. Nunca votaria em mim. Aliás, neste caso, sou um platónico. Uma pessoa sensata não quer governar. Isto não quer dizer que eu me considero sensato, mas que tenho um módico de imaginação que me permite criar a fantasia de ser sensato. Entrando na fantasia, comporto-me como uma pessoa sensata e recuso, de imediato, a possibilidade de me ver à frente dos destinos seja do que for. Aliás, acho extraordinária a desfaçatez dos candidatos, de todos eles. Apelar ao voto na sua pessoa revela um estado patológico profundo. Se fossem sensatos, se não estivessem doentes, diriam: por favor, não vote em mim, com tantos candidatos, por que infeliz razão me escolhe a mim? Vote noutro, por favor. Em vez de dizer mal dos adversários, elogiava-os. Eles responderiam na mesma modalidade. Que não, eles não eram merecedores do voto, e assim sucessivamente. Se isto deixasse o eleitor confuso, este teria sempre uma solução: sortear o candidato em que votará. De certa maneira, é já isso o que se passa. Por mais convicto que o eleitor esteja do seu voto, este não passa de um acaso. É um acidente, que não é reconhecido como tal. Tudo se tornava mais urbano e, fundamentalmente, mais educado. Que presunção alguém achar que é o melhor. Também é verdade que presunção e água benta, cada um toma a que quer. E parece não haver candidato que não tenha caído na pia da água benta, tal como o Obélix caiu no caldeirão da poção mágica. Melhor: não há candidato que não imagine ter caído no caldeirão do druida Panoramix.

domingo, 5 de outubro de 2025

Tempo humano

Um domingo feriado. Que diferença faz isso, se agora todos os dias são, ao mesmo tempo, domingos e feriados? Faz mais do que se possa imaginar. Imagine-se uma batalha entre o tempo cósmico e o tempo social. Um marcado pela indiferença absoluta, o outro pela diferenciação exaustiva trazida por convenções que servem como bússola. Entre ambos, existe outro tempo, o tempo humano, aquele que navega entre o cósmico, produto da natureza, e o social, produto da sociedade humana, um tempo que está sempre à beira de ser esmagado por eles. O tempo humano não é a mesma coisa que o tempo social, apesar deste ser criação humana. É antes um exercício de acomodação entre um e o outro, uma negociação sempre difícil com dois negociadores intransigentes. É preciso um grande talento para conseguir umas migalhas de tempo humano, um tempo em que a liberdade de cada um lhe permite moldar a experiência da duração em conformidade com aquilo que lhe está a acontecer, ora dilatando o seu tempo, ora diminuindo-o. Talvez tenha sido isso que sentiram os republicanos que há 115 anos proclamaram a República, ou Afonso Henriques que há 882 viu reconhecida a Monarquia e a sua pessoa como Rei. Pois esses acontecimentos não são nem cósmicos, nem sociais. Inscrevem-se no mundo cósmico e fundam o mundo social, dependem de um outro tempo, aquele que os gregos designavam por kairós (καιρός), que, sendo divino, é também a emergência do tempo humano.

sábado, 4 de outubro de 2025

Demasiado humano

Mais uma vez deparo-me com uma experiência absurda. Abro um livro que jazia numa estante e que juraria nunca o ter lido. Porém, sou confrontado com a minha letra nele, para além de sublinhados. O que me terá ficado desta obra, pergunto-me. A certa altura, encontro, grafada pela minha mão, a transcrição de uma frase do texto: A piedade ultrapassa o desejo. A frase vem de uma análise do romance Adolphe, de Benjamin Constant. Não sei como será em França, mas em Portugal o autor, nos círculos onde será conhecido, é-o menos pela sua dimensão de romancista e mais pela sua obra política. Fundamentalmente, um discurso pronunciado em 1819, em defesa do liberalismo: A Liberdades dos Antigos Comparada à dos Modernos. Contudo, o pequeno romance Adolphe, além de ter merecido referência na Poética, de Tzvetan Todorov, o tal livro que supunha nunca ter lido, terá desencadeado, no seu tempo, alguma controvérsia. No prefácio à segunda edição, o autor escreve: Mas todas essas supostas ligações são, felizmente, demasiado vagas e desprovidas de verdade para terem produzido qualquer impressão. Também não haviam nascido na sociedade. Eram obra desses homens que, não sendo admitidos no mundo, o observam de fora, com uma curiosidade desajeitada e uma vaidade ferida, e procuram descobrir ou provocar escândalo numa esfera acima da sua. Referia-se à acusação de que as personagens romanescas seriam a capa de pessoas reais. A resposta combina vanglória e crueldade. Vanglória porque se louva como fazendo parte de um mundo onde poucos seriam admitidos. Fez parte do círculo de madame de Staël, de quem foi amante. Crueldade, porque sublinha nos críticos a exclusão desse mundo a que não teriam acesso. Tudo muito humano, demasiado humano, apesar da piedade de Adolphe ultrapassar o desejo por Ellénore.

sexta-feira, 3 de outubro de 2025

Galateia

Sexta-feira. Perdido o amante, Galateia demora-se nas ondas, faz delas uma casa para a eternidade, pois a eternidade é o horizonte de todos os seres que vivem, sejam animais, deuses, ou homens. Quando um homem se senta numa esplanada perto do mar e contempla com demora a linha onde céu e oceano se fundem, o que ele vê é uma manifestação não apenas daquilo que não tem limites, mas também do que não pertence ao casulo do tempo. Ao demorar o olhar, sai dos limites terrestre e, por momentos, perde-se no que está fora do mundo. Então, Galateia passa diante dos seus olhos, brincando nas ondas. Como Méris, ele chama-a. Vem até aqui; deixa que loucas, as ondas firam as praias! Mas a nereida não o escuta, perdida no seu jogo eterno, e ele levanta-se, vira as costas ao mar e reentra na casa do tempo, no lugar onde tudo tem um princípio e um fim.

quinta-feira, 2 de outubro de 2025

Poderes da palavra

Em 1580, no Livro do Cortesão, Baldassare Castiglione assevera que aquele que muito ama pouco fala. E Lourenço o Magnífico, citado pelo mesmo Castiglione, garante que os verdadeiros apaixonados têm a língua tão fria quanto o coração ardente. O decisivo é o olhar e não a palavra. Há aqui uma crença implícita. A verdade reside noutro lugar que não na palavra. Aquilo que os olhos dizem e aquilo que vêem é mais adequado do que aquilo que se pensa e se transmite através da linguagem. No encontro entre o olhar de um homem e de uma mulher, o amor torna-se presente. Nas palavras, apenas está representado. E é nessa representação que ele se mostra como falsificação. Contudo, uma língua fria, ao contrário do que pensa Lourenço, não é, necessariamente, o correlato de um coração ardente, pois a palavra tem poderes a que Eros, não sem prazer, se submete e que reclama, quando estes não estão presentes.

quarta-feira, 1 de outubro de 2025

Rei-Sol

Outubro entrou vestido de Verão. Calor, um sol sem piedade, um desejo de fugir daqui, para outras lados menos dados a abraços calorosos. Saí, ainda vagueei um pouco, mas logo me refugiei. Tenho um contencioso inultrapassável com o excessos do astro-rei, cujo império deveria, em muitas ocasiões, ser mais moderado. Se se meditar um pouco, percebe-se que o Sol está longe de ser um governante sensato e previsível. Atiça os fogos quando lhe apetece. Irrita-se sem que se saiba a razão e deixa que um frio vindo dos confins do universo atormente as almas, que se perdem no desvairo do rei, ora opulento nas vestes com que se cobre, ora mísero esfarrapado que se de esconde dos mortais atrás da nuvens densas, que amontoa nos céus para cobrir a sua vergonha. Tenho as persianas corridas para que ele não entre. Seria um hóspede não convidado e nunca se sabe lidar com hóspedes que não foram convidados. Só um equívoco fundado na ignorância, terá levado um certo rei francês a alcunhar-se como Rei-Sol.

terça-feira, 30 de setembro de 2025

Filhos de ficções

Setembro acaba hoje, embora não exista na natureza nada que seja Setembro ou Outubro. E aquilo que não existe não pode acabar, pois nem sequer chegou a ser. As convenções humanas são expedientes para lidar com o insólito de estarmos vivos, num mundo estranho, cheio de ameaças, mas também de oportunidades. Contudo, estas coisas que não existem na natureza, mas que são fruto de acordos, tornam-se obsidiantes, ocupando o espírito. Tudo isto terá nascido do medo de nos perdermos. Perdermo-nos no tempo e no espaço, as duas grandes condições de possibilidade da vida, mas também a razão de muitos conflitos. Por isso, submetemo-los à pesada geometria das convenções, que vão do calendário ao mapa, onde podemos desenhar o espaço que nos cabe, o que nos é favorável e aquele que devemos evitar. Toda essa geometria é uma ficção, mas é com ela que tecemos a nossa existência. Numa linguagem sem propósito, podemos dizer: do nada tirámos a possibilidade de sermos. Somos filhos de puras ficções.

segunda-feira, 29 de setembro de 2025

Experiências

Ontem não saí de casa para caminhar. Chovia. Hoje saí, mas o sol era quente, esquecido já da tristeza de ontem. Estes traços de volubilidade do tempo – melhor, do clima – deixam-me sempre perplexo. Não é por falta de experiência. São décadas e décadas perante estas alterações súbitas com que sou acolhido. Perturba-me a mudança e a inconstância não porque eu seja imutável e constante, mas porque sonho com um quadro onde a vida se desenrole com a suavidade das coisas que não mudam. Sim, eu sei. É um sintoma de velhice, mas o que posso fazer, se essa é a minha condição. Voltando a ontem, um acontecimento inesperado trouxe-me uma experiência a que me desabituara. Ia já o crepúsculo avançado, quando a electricidade faltou nesta zona da cidade. Demorou algum tempo o retorno da energia, o tempo suficiente para ver o adensar das trevas sobre a cidade. Essa, porém, não é a experiência fundamental. O que vi de mais decisivo foi a impossibilidade de ficar a sós com a escuridão, não porque me rodeasse a turbamulta, mas porque a escuridão foi proscrita na nossa cultura. Um clarão vindo de longe, de outras zonas onde a iluminação eléctrica se mantinha viva, invadia o meu espaço. Uma luz irreal, como se viesse de uma procissão de fantasmas de olhos ateados de uma brancura fosca. Depois, tudo voltou ao normal, embora o que cultivamos como a norma – estarmos sempre rodeados de luz – seja uma anormalidade, cujas consequências ainda não percebemos. O Outono finca-se nos pés e progride à procura da fortuna ou do encontro com o Inverno.

quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Questão de enquadramento

Acabei de lanchar. Frugal, apenas uma dúzia, nem tanto, de avelãs. É preciso anotar estas trivialidades, não porque serão esquecidas, mas porque são a própria vida. Esta é o somatório de gestos sem importância, mas, no seu conjunto, têm a importância de uma vida. O que marca os tempos modernos é a ascensão do trivial. A alegria e a tristeza, a coragem e a cobardia, a beleza e a fealdade, tudo isso faz parte da banalidade, pois deixou de existir o enquadramento onde um gesto se revelava extraordinário. Aquilo que distingue as eras da existência humana é, antes de mais, o enquadramento. É neste que tudo se organiza e é ele que confere sentido. Coube-nos o da trivialidade e, contra isso, nada há a fazer. O nosso enquadramento é também o do excesso. Qualquer gesto que se faça, haverá milhões a repeti-lo. Por isso, é indiferente narrar o lanche ou uma aventura onde se combata contra moinhos de vento ou se mate um dragão. Se eu sair de casa e, numa esquina, matar um dragão, haverá milhões de “eus” a matar dragões, numa esquina, ao saírem de casa. Talvez tudo isto seja falso e a verdade seja mais crua: falta-me o talento para o não trivial e, assim, como avelãs para contar como a aventura a que tive direito, enquanto oiço o Canto Ostinato XXL, de Simeon ten Holt. A peça tem apenas quatro horas e oito minutos, por isso não pode ser considerada XXXL. Já a estou a ouvir há bastante tempo, mas devo ir a meio da aventura. Talvez não estejam, neste momento, milhões a ouvir o Canto Ostinato XXL. Talvez.

quarta-feira, 24 de setembro de 2025

Anotações

O Outono chegou – já na segunda-feira –, mas veio tão tranquilo que nem dei pela sua presença. Tenho com ele um tratado de amizade: declarei-o como a estação do ano preferida, e ele gostou da distinção. Também as estações do ano se deixam lisonjear e retribuem como podem. Olho pela janela para ver se as árvores já estão adaptadas ao tempo, mas as que vejo aqui ou são de folha perene ou amarelecem as folhas mais tarde. Imagino que as tílias da avenida já estarão outoniças, mas não me apetece confirmar. Oiço o ruído de uma sirene, a luz da tarde reverbera anémica na brancura do telhado do pavilhão desportivo da escola ao lado. Não está ninguém na praceta nem no parque infantil; talvez na esplanada do café haja por lá alguma alma cansada, mas também não vou verificar. Faço um esforço para identificar o dia da semana; depois, não sei o que fazer com a identificação. Não tenho nada agendado. Um cartão de um restaurante dorme em cima da secretária: vejo o número de telefone, mas apenas por curiosidade; serviu-me para marcar um livro. Talvez o restaurante já não exista. Não quero saber. Olho para as horas no telemóvel e penso que já é tarde. Para quê? Não sei o que responder à pergunta.

terça-feira, 23 de setembro de 2025

Novidade

As minhas netas ofereceram-me os dois grossos volumes com que a Quetzal empacotou os vários tomos – para usar uma expressão de ressonância grega – da Conta-Corrente, de Vergílio Ferreira. Claro que elas não sabem quem foi o Vergílio Ferreira, mas a avó sabe e eu também. No dia 8 de Setembro de 1984, o escritor registou nessa conta-corrente o seguinte: E todavia uma ideia faz-me falta. Mas que é que hei de ainda pensar? Arrumei a vida e assim, quando percorro o caminho que vai dar a uma ideia, vou ter sempre a um lugar conhecido. Tinha ele 68 anos. Fiquei a meditar na experiência, mas a meditação foi interrompida várias vezes com uma experiência recente. Ontem, mas hoje também, sempre que me olhava a um espelho – e, meu Deus, há espelhos por todo o lado – não reconhecia aquela cara que via. Havia ali – o que me desconcertava, e ainda desconcerta – uma novidade. Perguntei se estava diferente, olharam para mim como se estivesse a enlouquecer. Não estou a ficar doido, mas essa é a convicção de todos os que endoidecem. Esta novidade – reputo-a de real – dá-me esperança de que não me aconteça o mesmo que ao Vergílio Ferreira. Se procurar uma ideia, espero que descubra uma desconhecida. Se o meu rosto se pode transformar em qualquer coisa que não conheço, talvez o meu pensamento me possa oferecer uma ideia que também desconheço, mesmo que isso represente um risco, pois essa ideia pode negar todas as que tive até hoje.

domingo, 21 de setembro de 2025

A virtude da perplexidade

Foi Gottfried Leibniz que, pela primeira vez, colocou a questão mais radical que se pode colocar: por que razão existe alguma coisa em vez de nada? Os seres humanos estão de tal modo imersos na existência que, só muito tardiamente, início do século XVIII, lhes terá ocorrido a questão de que, em vez de tudo o que existe, nas suas múltiplas formas de existência, poderia não haver nada. A questão colocada pelo filósofo alemão centra-se, porém, na constatação de uma evidência: existe alguma coisa, aquilo a que chamamos mundo, como globalidade de tudo o que há. A pergunta incide na razão dessa existência. Este é o enigma dos enigmas, aquele perante o qual a razão humana se detém perplexa. Podemos, contudo, supor que essa perplexidade não se deve à natureza enigmática da existência do mundo, mas ao limite da razão humana. Uma razão mais potente poderia apreender a razão que leva à existência do mundo em vez de nada existir. Contudo, a razão que temos é esta e não outra. É uma razão fabricada à medida da perplexidade. E ficar perplexo é a maior virtude que um ser humano pode ostentar. E, como se pode verificar, é uma virtude pouquíssimo cultivada. Poucos são os perplexos. A multidão habita a casa das certezas, sem que a menor perplexidade lhe ilumine a sombria caverna.

sábado, 20 de setembro de 2025

O último refúgio

Graças à ignominiosa inteligência artificial, traduzi do alemão as primeiras seis cartas de Rilke sobre política. Como desconfiava, a maior parte delas tem alusões muito genéricas sobre povos e costumes, que só com muita boa vontade se podem denominar cartas sobre política. Contudo, uma carta a Bodo Wildberg, datada de 7 de Março de 1896, tem um conteúdo efectivamente político. Trata da oposição entre as concepções de Rilke e de um certo Thiel: Thiel desenvolve a sua opinião estritamente germano-patriótica, em oposição ao meu «delírio cosmopolita» [Weltdusel], e parece-me que a história das nossas concepções da vida é a das duas rectas paralelas que se intersectam no infinito! O conflito entre o nacionalismo e uma visão cosmopolítica. Sabemos – embora se esteja em maré de esquecimento, se não mesmo de negação – que a opinião germano-patriótica conduziu a duas guerras mundiais. O mais surpreendente, porém, é a filiação do poeta na perspectiva de um autor tão pouco dado à poesia. O grande pensador cosmopolita é Kant. Hoje vivemos, mais uma vez – talvez como comédia, mas que pode desembocar em tragédia –, a exaltação das opiniões patrióticas e uma caça às bruxas cosmopolitas. Pergunto-me por que razão o resultado haverá de ser diferente daquele que se obteve no século XX. Poder-se-ia dizer que, apesar de pouco inclinados à política, os poetas têm sensibilidade para certos perigos. Seria o caso de Rilke. Estaria, porém, a mentir. Nem é verdade que os poetas sejam pouco inclinados à política – há de tudo –, como muitos deles não deixarão de louvar o espírito patriótico, o barulho das botas cardadas, o fogo dos combates e a dor das mortes inúteis. Nunca esqueço as palavras atribuídas ao Dr. Johnson – Samuel Johnson: o patriotismo é o último refúgio dos canalhas. Consta que não as terá escrito, mas tê-las-á dito perante testemunhas.

sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Conversa com o anjo

Peguei num romance de Ruben A., A Torre de Barbela, e como a obra é antecedida por uma “Antologia Crítica”, entretive-me a ler os comentários. Os críticos antologiados eram, naqueles tempos, os anos de 1965 e 1966, figuras de prestígio e autoridade. Fiquei abismado com o texto de um reputadíssimo académico da área da literatura, figura cimeira da história e crítica literárias. A sensação não foi das melhores. Pensei comigo: o homem não percebeu o objecto que teve debaixo dos olhos, talvez a academia e a literatura tenham um conflito insuperável. Depois, considerei que talvez fosse eu, cuja autoridade é nula, a estar errado, e a obra de Ruben A. seja risível. Foi aí que o anjo bom que me protege nas coisas literárias decidiu entabular conversa comigo. Falou, falou, falou. Em resumo disse-me que em arte – e o romance é uma arte, coisa que frisou longamente – o melhor é não ter autoridade nenhuma, pois quanto mais autoridade, mais são os riscos de não perceber os objectos que caem sob os olhos. Quem não tem autoridade, continuo a resumir o meu anjo literário bom, é humilde e tenta perceber o que está ali. A autoridade aniquila não só a humildade, como o desejo de compreender. Quando o anjo se foi batendo as asas, pensei que todos deviam ter um anjo literário bom. Os académicos da literatura, mais que qualquer mortal. A cátedra – quando a têm ou quando a ela aspiram – mata a sensibilidade artística, embora desenvolva a capacidade de emitir opinião e proferir sentenças.

quinta-feira, 18 de setembro de 2025

Hildegard

Hildegard von Bingen, não me canso de ouvir a sua música. Terá nascido em 1098 e morrido em 1179. Não consigo imaginá-la fisicamente, pois a diferença dos seres humanos entre aqueles dias e os de hoje é mais do que se imagina. Foi uma mulher extraordinária. Monja beneditina, além de compositora notável, foi poeta, teóloga, cientista (naturalista), linguista, médica e mais não sei quantas coisas. É doutora da Igreja. Não conheço a sua poesia nem o seu pensamento, mas a música basta para ficar grato à sua existência. Há seres extraordinários que têm o dom excepcional de não ter de sacrificar os múltiplos dons que receberam para afirmarem a excelência num deles. Por exemplo, Kant ou Mozart foram extraordinários, mas apenas no seu campo: vieram ao mundo num tempo em que a especialização se tinha tornado a norma. A questão, porém, não é apenas de época: Tomás de Aquino, outra figura notável da Idade Média, estava longe da maleabilidade de Hildegard; o seu campo era a filosofia e a teologia. Desde que descobri a sua música, nunca deixei de retornar a ela, sempre com a sensação de estar a ouvir algo de inédito, como se aquela música não pertencesse ao tempo, mas à eternidade.

quarta-feira, 17 de setembro de 2025

Perder o pé

Dois versos de Rilke: Es tauchen tausend Theologen / in deines Namens alte Nacht. A tradutora portuguesa – Maria Teresa Furtado Dias – verteu assim: Mil teólogos mergulharam / na antiga noite do teu nome. Talvez fosse preferível traduzir tauchen por afundaram-se, não porque a tradução esteja incorrecta, mas porque estaria mais perto da realidade. Mais do que mergulhar na antiga noite do nome de Deus, os teólogos afundam-se, perdem o pé, andam à deriva naquele lago feito de uma noite antiga, a mais antiga das noites. Contudo, foi Rilke que escolheu tauchen e a tradutora tentou evitar a traição. Mesmo contra Rilke, prefiro a ideia de que os teólogos se afundam, pois o mar onde entram é feito de uma água que não é própria ao logos que cada teólogo transporta no nome da sua ocupação e no espírito com que entram nela.