sábado, 26 de janeiro de 2019

Grilos

Saí de casa já a noite se tinha afastado há muito, mas o frio que, com silencioso esmero, ela semeara entrou-me pelo corpo, fez de mim presa e subjugou-me a um império obstinado. É possível que a realidade não seja assim tão dramática. Delírios e dissonâncias cognitivas é o que mais por aí há, e eu, com a idade, sou cada vez menos imune a coisas dessas. Passa por mim uma mulher, segue-a um cão, e nenhum, reparo, tirita. A manhã resvala e, enquanto caminho, penso no cantar dos ralos. Fiquei surpreso. Nunca na vida tinha pensado em ralos. Em grilos, sim. Um dia deram-me uma gaiola com um grilo e o imperativo de o alimentar com folhas de alface. Julgo que morreu e não me lembro de o ter ouvido cantar, mas naquela altura ainda não sabia o que era um imperativo. Hoje sei-o bem, mas por enquanto não tenho idade suficiente para voltar a ter grilos numa gaiola.

sexta-feira, 25 de janeiro de 2019

Saber de si

Cada um sabe de si, leio num post de protesto acerca de uma minudência qualquer. E fico feliz por haver gente que até de si sabe. Eu sei cada vez menos coisas e, de mim, a ignorância nunca foi exígua. Talvez isso seja efeito da sexta-feira. Há dias da semana que possuem estranhos poderes sobre o que as pessoas dizem: inclinam a vontade, torcem o sentimento, amarfanham a palavra. Depois, desce do céu, tão azul que ele há pouco estava, um manto de ilusões, que cai sobre os ombros e destrava a prosápia. Ah se cada um soubesse de si, as árvores não perderiam as folhas no inverno nem os pássaros se recolheriam mais ao sul. Se cada um soubesse de si, o vento vacilante da tarde levaria para longe as escamas que cobrem os olhos. O silêncio, então, viria como um deus dançar embriagado pelas ruas deslavadas desta cidade.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

Devaneio matinal

As noites são caminhos abertos na planície que nos levam para a terra da transparência. Assim comecei a história, mas logo veio a manhã e tantos imperativos trazia consigo que esqueci o que a noite me tinha ditado. Não é a natureza que é uma floresta de símbolos, ponderei, mas o fluxo que o sono coa para dentro da consciência. Árvores, ruas, um pregão ouvido há cinquenta anos, a mão que brilhou diante dos olhos e incendiou o desejo de não mais a largar. Depois, deixamos as palavras enraizarem, cuidamos delas, trazemos-lhe água e elas florescem, para nos acariciarem, enquanto afundamos a cabeça na almofada e esperamos que o mundo acabe ou um rio de pétalas desagúe por detrás dos canaviais onde se esconde a infância. Ao menos tiveste uma infância, pensei, enquanto lavava os dentes e espreitava não sem horror o rosto que despudorado o espelho me devolvia.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Aguaceiro

De súbito, um aguaceiro cobre os vidros do carro, desfoca a paisagem, torna imprecisos os contornos de quem passa. Logo o limpa-pára-brisas, a ruminar vaivéns, devolve ordem ao mundo e figura aos peões. Que monotonia de ritmo, pensei, enquanto olhava um renque de velhas moradias, daquelas que, com o passar das estações, já mal suportam o peso da sombra. Mura-as paliçadas de tijolo e cal e por detrás destas avistam-se laranjeiras e limoeiros, exuberantes na cor dos frutos, que se escapam dos promontórios verdes das ramadas. Esta terra não deveria ter nome, murmurei. Não havia ninguém para me escutar e eu ri-me, a pensar no amargo das laranjas e no brilho baço dos limões. Os dias já estão mais longos e a hora melancólica do crepúsculo chega cada vez mais tarde. Se soubesse o que fazer de mim, tudo seria mais fácil. Assim, perco-me em taxionomias insignificantes e contabilidades sem deve nem haver.

terça-feira, 22 de janeiro de 2019

Desconsolo

Depois de almoço tive de ir ao banco, no centro histórico da cidade. Sejamos piedosos e não poupemos a hipérbole. Ao entrar, lembrei-me do tempo em que não havia ali pessoa que não conhecesse. Agora, constatei, não sem incredulidade, que nenhum daqueles rostos me dizia alguma coisa. Tentava situá-los aqui ou ali, mas só o silêncio respondia à minha interrogação. A cidade é exígua, o tempo, porém, não vacila e arrasta na voragem tudo o que foi comum. Saí desconsolado pelo peso da ignorância. Uma ameaça surda pairava sobre a minha inquietação. Janeiro é um mês cruel e estende as suas garras até aos confins da memória. Quando esta sangra, então ele afrouxa os tentáculos e deixa-nos à porta de um jardim onde ninguém nos espera. Olho as ruas, as pessoas que vão e vêm, os escombros da velha vila a céu aberto. A vida, pensei, é uma árvore calcinada pelas tentações de Inverno. Que catarse poderá pacificar as almas?, perguntei, ao avistar os ciprestes do cemitério. O carro trouxe-me rapidamente para casa.

segunda-feira, 21 de janeiro de 2019

Infrutuosidade

Um alarme dispara não sei bem onde. O som progride como um insulto a quem escolheu o silêncio para esquecer a alegria do sol ou algum dever que a vida, esse naufrágio entre dois esquecimentos, sempre traz no aconchego da sua farta algibeira. Duas pessoas vão pelo passeio e o seu andar lembra-me uma redondilha, e logo começo a escandir-lhes os passos, a espreitar-lhe a prosódia, certo que também o mover dos corpos na rua obedece ao segredo de uma poética, que apenas a distracção nos faz ignorar. O melhor seria pensar noutra coisa, reflicto, ser útil e dar à indiferença estes pensamentos que são como flores feias e estéreis. O que vale é que o alarme se calou, e o dia mutilado refaz a mão decepada e com ela acaricia a infrutuosidade de tudo o que penso.

domingo, 20 de janeiro de 2019

A porta do meio-dia

O vento ondula o arvoredo como se este fosse uma seara arcaica trazida dos confins da terra. E eu aguardo o deslizar do dia, a espuma das horas que se derrete ao sol, o rigor do esquecimento que a tudo há-de trazer paz e purificação. Uma nuvem passa diante do sol e a luz entenebrece um pouco, mas logo o vento leva a intrometida e deixa que os raios caiam como punhais sobre os transeuntes. Estes vão em pequenos bandos, lembrando famílias a caminho da igreja num domingo de há cinquenta anos. Com o florete das palavras desenho na areia os frutos que me cabem, enquanto imagino o canto das cigarras ou o sabor do vinho novo. Afasto-me das minhas paixões e cruzo o adro da manhã para entrar, inútil e cego, pela porta do meio-dia.

sábado, 19 de janeiro de 2019

Anacrónico

Os pássaros que ainda há pouco tempo cantavam perto da minha janela emudeceram. Eram pássaros tardios, sei-o bem, e há muito que deveriam ter partido. O tempo fê-los perder a memória e confundiram a púrpura dos dias com o fulgor do Verão. Também eu confundo os tempos e caminho pelo Inverno como se ainda fosse Outono. Pensava em tudo isto, enquanto contemplava a mansidão da luz batida pelas águas frias de Janeiro. Alturas há em que me assalta uma estranha convicção: este não é o meu tempo. Sou, atavicamente, anacrónico. Rio-me e pergunto se há outra coisa que possa fazer senão rir-me de mim mesmo. Num poema de Eugénio Andrade encontro a afirmação o teu destino és tu. Não, o meu destino não sou eu. Sou como os pássaros que emudeceram na minha janela ou como a chuva que se calou tomada pelo peso da tarde. Se estivéssemos em Outubro tudo seria perfeito, pensei, enquanto o meu destino galopa, incendiado e pueril, diante de mim.

sexta-feira, 18 de janeiro de 2019

Desculpa

Esta chuva impaciente e frágil veio mesmo a calhar. Que boa desculpa encontrei para não ir dar a minha caminhada profiláctica. Assim, fico por aqui a ruminar sobre o desvario do mundo, a meditar na água que cai e na bem-aventurança que ela é para a agricultura. Há quem tenha alma de caminhante, mas esse, por um qualquer motivo que desconheço, não é o meu caso. Prendo-me então ao flanco do silêncio e enquanto leio aguardo o crepúsculo que me há-de anunciar o aconchego furtivo da noite.

quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Notícia

Vai-se pela rua ou entra-se numa rede social e é-se colhido por uma notícia para a qual nunca há uma cesta preparada para a depositar. A terrível ceifeira, a desmemoriada que nunca esquece a vil ocupação, deslocou-se, fremente e impúdica, e cortou cerce onde não se esperava que cortasse. Faz-se, assim, em nós um grande silêncio. Contam-se os dias, os anos, os caminhos partilhados e as esperanças havidas e, por ordem inevitável do mundo, perdidas. Então uma espada de pez cai sobre o dia e tudo ensombrece, como se um exílio nos esperasse ou uma gaivota perdida apagasse o sol.

quarta-feira, 16 de janeiro de 2019

Rememorações

Por vezes, sou dado a rememorações, talvez com a esperança da ressurreição de alguma coisa perdida ou de alguém que a morte, lúbrica e pegajosa, raptou para não mais libertar. É um sinal inequívoco de que os anos, muitos, passaram por mim e o passado pesa mais que o futuro. A culpa destes pensamentos, pensei-o agora, é do dia. A cinza rumorosa da tarde, a espuma do frio a entranhar-se nos ossos, os ramos despidos das árvores no limiar do esquecimento, tudo isso conspira para que a memória cresça e se transforme numa hipérbole que me esmaga, enquanto oiço o vozear de quem vai rua fora, envolto numa capa de segredos que lhe dilaceram o coração. Hoje é quarta-feira e a minha indústria é escassa para domar a melancolia furtiva, essa sombra vacilante suspensa nas nuvens.

terça-feira, 15 de janeiro de 2019

Amor

Está um dia esquivo e a cidade respira rente à melancolia. O rio, a ciciar pela chuva que há-de vir, desliza oscilante e de água escassa, sem um barco que lhe abra as entranhas e lhe inscreva, momentânea, uma esteira que lembre o ondulado tecido pelo passar dos grandes navios. Tudo nesta cidade é minguado, menos o desvario com que a percorro para não me perder na aspereza das ruas ou na solidão que sobre ela desce em borbotões da serra. São assim as cidades de província e por isso são amadas. Também eu a amo pela sua escassez e pelo jardim que agora cruzo e cai sobre os meus ombros como um grande capote que protege o meu ser provinciano do grande rugido cosmopolita.

segunda-feira, 14 de janeiro de 2019

O tempo foge

Estava há pouco a ver os livros de um dos leilões que se estão a tornar moda na internet, quando me deparei com uma obra em dois volumes, de um autor russo cujo nome não é apenas impronunciável como inescrevível. A prosa foi publicada pelas Edições Avante e tem o nome Para a Crítica da Ideologia Burguesa. Ao vê-la, sorri. É perante coisas como esta que uma pessoa tem a certeza que as pretensões humanas são limitadas, mesmo que o desejo seja infinito. Apesar da crítica, e enquanto os críticos se afundavam no lodaçal do não ser, a ideologia burguesa lá se foi aguentando, mesmo que haja quem lhe rosne, lhe faça figas e a encha de manguitos, e de negros e irreversíveis prognósticos. Não pense o leitor que eu tenha alegria – ou tristeza, diga-se – nesta vitória da afrontada ideologia sobre a crítica e os críticos. Todas estas coisas passam, como passam as borbulhas na adolescência, que tanto desespero provocam e logo se vão. Também um dia a malfadada ideologia morrerá, velha e abandonada, sem o conforto dos sacramentos, sem um crítico que lhe faça o velório ou a acompanhe à última morada. E era aqui, para acabar com brio, que deveria pôr uma citação de Virgílio sobre o tempo e a sua fugacidade, mas também em mim o desejo é maior que as possibilidades. Vou dar uma volta, ver as vistas e apanhar sol.

domingo, 13 de janeiro de 2019

Paganismos de província


Contrariamente ao que é costume, hoje, domingo, tive de ir fazer compras, coisa que me deixa num humor variável, umas vezes mau e outras indiferente. E enquanto passeava pelos corredores de uma grande superfície, visitando os múltiplos altares e parando em várias capelas, todos eles, altares e capelas, dedicados a um santo necessário ao bem-estar, pensava que antigamente os domingos estavam despojados destes cultos pagãos. A missa do meio-dia em S. Pedro, depois almoço em família, e, se fosse o caso, uma ida ver o futebol ao Almonda Parque, mais conhecido pelo quintal do Zé Maria. O mundo era mais simples e eu mais ingénuo, mas talvez não tão idiota. Não havia grandes superfícies e mesmo que a ida à missa se tivesse transformado, como era recorrente na época, numa oportunidade para ver as raparigas, e nisso estava toda a devoção pagã do rapazio, a verdade é que o objectivo desse pobre paganismo provinciano era mais interessante do que observar coisas tão cosmopolitas como as líchias vindas da China ou as papaias provenientes do Brasil.

sábado, 12 de janeiro de 2019

Sábados


Os sábados contêm uma promessa que descubro sempre ser falsa. Se os olho a partir dos dias da semana, eles parecem-me uma luz bruxuleante ao fundo do túnel. E nesse luzir mortiço esconde-se, confesso, a esperança da eternidade e a crença no paraíso. Sim, os sábados são pressentidos como se não pertencessem ao tempo, com o seu passar rápido e inelutável, mas à dimensão da intemporalidade. Depois, o sábado chega e mal dou por isso já o sol se entrega nas mãos do crepúsculo, a temporalidade ri-se alacre das minhas tristes divagações e o ritmo das coisas humanas, demasiado humanas, cobra o seu soldo e traz a canga que me submete ao duro jugo da realidade. É o que faz cultivar ilusões em vez de aprender a jardinar e a podar roseiras.

sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Sanidade


Quando caminho à noite, tenho o costume de dar várias voltas a uma certa praça. É um exercício ritual que tem por fim não pagar por algum pecado mas poupar-me a ter de pensar por onde hei-de ir. Actualmente, devido ao frio, dou os meus passeios à tarde e abstenho-me de andar às voltas no mesmo lugar. Há coisas que se fazem à noite e que de dia são impossíveis. Há que preservar a imagem, mesmo que fantasiosa, de que se possui uma certa sanidade mental.

quinta-feira, 10 de janeiro de 2019

Hóspedes

Há dias comprei um livro, num leilão na internet, de Heinrich Böll. Trata-se de uma obra publicada entre nós em 1972, pela velha Arcádia. Tem capa dura e papel de boa gramagem. É composto por um conjunto de contos e de um deles recebeu o título Os Hóspedes Inesperados. Foi um sentimento de irmandade que me levou a adquiri-lo. Também eu, onde quer que vá, sou um hóspede inesperado. O sítio não me espera e a minha presença é constrangedora. Isto pensava eu quando atravessava a cidade para ir para um lugar onde todos me esperavam, sem que a minha presença deixasse de ser constrangedora. O que me vale, meditei, é o sol de Inverno. Brilha, aquece um pouco, mas evita excessos, comportando-se com prudência e sabedoria.

terça-feira, 8 de janeiro de 2019

Sabedoria


Estes dias ensolarados e frios morrem sob um véu de tristeza e melancolia, pensei ao olhar pela janela. O fulgor do sol começa definhar, a toldar-se indeciso, e onde antes havia vibração insinua-se uma pequena névoa. Logo se transforma em escura nuvem de pesar, que cobrirá as pessoas que passam indiferentes e que, revestidas pela saúde do seu espírito, sabem que os dias não morrem, nem são tristes e melancólicos, mas apenas dias que hão-de dar lugar à noite, separados por crepúsculos. E eu, não sem ponta de inveja, olho-as e maravilho-me com essa sabedoria e paz de espírito que nela se oculta.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

Más leituras


Como Rosseau também eu tenho os meus devaneios de caminhante solitário. Poderia meditar sobre o lixo que encontro, as pessoas que passam por mim, a azáfama dos escapes a libertarem o ar puro que hei-de respirar. Poderia, mas não foi o que fiz hoje. Isso deveu-se à impertinência de uma frase de Jean-Jacques lida pouco antes de me dispor a sair para a rua: “Quando o meu destino voltou a lançar-me na torrente do mundo, já aí não encontrei nada que pudesse, por um momento que fosse, atrair o meu coração.” Era essa incapacidade do mundo em atrair-me o coração que ocupava os meus pensamentos, enquanto as pernas se deslocavam, mecânicas, para destino nenhum. O pior é que o mundo que ia vendo, em vez de me tranquilizar com um desmentido, apenas confirmava aquilo que tinha lido. Talvez não deva ler antes de ir caminhar.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Bolo-rainha em dia de Reis


Hoje é dia de Reis. As pessoas aproveitam o sol, dão passeios vagarosos pelas ruas, cumprimentam-se como se não se vissem há muito, vão aos cafés e compram bolo-rei ou bolo-rainha, este uma introdução recente, talvez em nome da igualdade de género. Foi tudo isso que vi, quando, também eu, fiz o mesmo e, por opção cá de casa, deixei-me embalar por essa desejada igualdade. Quando saía da pastelaria com a caixa do bolo nas mãos e os olhos a piscar por causa do sol, meditei que estava deslocado. Hoje é dia de Reis e não de Rainhas. É assim que se pervertem as tradições, constatei ancorado num conservadorismo trazido pela idade. Levados pelo prazer estético, esse exercício de individualistas dados ao hedonismo, trocamos as frutas cristalizadas pelos frutos secos, como se fosse um upgrade do software que nos há-de levar ao paraíso gustativo. Que Baltasar, Belchior e Gaspar nos perdoem por os termos trocado pela rainha de copas.

sábado, 5 de janeiro de 2019

Caminhadas


Há muito que não fazia uma caminhada. Hoje, porém, enfrentei estradas e caminhos. A verdade é que o fiz não por amor ao dever de andar (que Kant me perdoe) ou às paisagens que atravesso. Quando combinei a revelação que esta manhã a balança me fez com o resultado, recebido ontem, de umas análises de rotina, aliás com quase todos os valores no lugar certo, percebi que talvez o médico não estivesse destituído de alguma razão ao receitar-me exercício físico. E foi assim que me expus ao sol entristecido da tarde e me aventurei por caminhos a que os escapes dos automóveis e camiões dão o seu inigualável perfume. Fi-lo como quem toma um comprimido ou bebe umas gotas cujo amargor nunca a água dilui ou dissipa. Quando cheguei a casa, prometi que amanhã voltaria e que ainda me haveria de tornar um desportista a sério, daqueles que treinam todos os dias, embora nunca joguem ao domingo.

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Utilidades


A semana passou depressa, pensei ao chegar a casa. O pior é a contradição entre o corpo e a realidade. Esta exige-me um respeito temeroso pelo calendário, pela separação árdua e fria dos dias úteis dos outros, enquanto aquele se rebela contra este jogo de distinções e anseia pela hora em que todos os dias se possam tornar frutuosos, libertos da inutilidade dos dias úteis.

quinta-feira, 3 de janeiro de 2019

Diabruras


Atravessei pensativo a cidade mergulhada no frio matinal. As pessoas passavam recompostas da chegada do novo ano, entrouxadas em sombras e silêncio, cobertas pelo azul do céu. Enquanto fazia e desfazia curvas, circundava rotundas e enfrentava semáforos, ia pensando no que ia fazer. Falar sobre crenças que se devem justificar e nesse acto de justificar está toda a justificação da razão. Enquanto discorria para mim mesmo, um pequeno demónio lembrava-me que as crenças mais interessantes são como a rosa sem porquê. O meu demónio é persistente e trabalha constantemente para a minha perdição. Ele lá terá a sua justificação.

quarta-feira, 2 de janeiro de 2019

A cidade


A cidade é um jogo de memórias puxado pelo cabresto da imaginação. Ali, onde se vê uma casa vazia, imagina-se quem lá viveu e fechou as portas para que a vida se encerrasse, e nunca mais uma dor fosse o reverso da alegria, ou a amargura cobrisse com o seu manto de púrpura os prazeres que a vida engendrava. Um sol amarelo e resignado cobre o casario, tinta-o de uma luz esquiva, tece-o de sombras e segredos e prepara-o para os temores da noite. A memória enumera conhecidos que habitavam as ruas e que agora não habitam em lugar nenhum. A cidade é uma sexta-feira santa sem um domingo de ressurreição no calendário.

terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Festividades


As festividades são exercícios difíceis, exigem recursos de paciência cujo limite raramente se adivinha, trazem consigo promessas que nunca cumprem. Agora que declinam e se resguardam na noite que dura um ano, para depois voltarem com os seus cantos de sereia, o espírito torce os seus dedos vazios e procura, nem sabe bem onde, a necessidade de todos estes folguedos e júbilos. Que alma vazia habitará os nossos corpos para  que do nascimento de uma criança e do arrancar de folha de um calendário se faça motivo de tantas provações e penitências?

segunda-feira, 31 de dezembro de 2018

O castelo


Ao fundo, sob o punhal do sol, o castelo reverbera. Há no brilho da pedra uma tal indiferença que o olhar recua e dobra o joelho em busca de piedade. Habituamo-nos às coisas e não escutamos a sua linguagem. São tantos os anos que passaram por aquelas muralhas, que é desdém o que elas destilam perante a nossa pobre azáfama com o fim de ano e o começo de outro. Para quê?, parecem elas perguntar, enquanto se deixam embalar pelo vento leve que, como um amante embevecido, as toca com cuidado. Na avenida, mesmo aqui em baixo, as pessoas passam, cumprimentam-se, desejam-se bom ano, mas ninguém vê o riso escarninho que se solta daquelas ameias que já viram de tudo. Rasgadas pela lâmina solar, sangram passados remotos e ilusões perdidas. Tal como nós.

domingo, 30 de dezembro de 2018

Uma tarde

Passei a tarde, com as minhas netas, entre o Arripiado e Constância. O sol invernoso erguia-se magnífico sobre o Tejo e tudo estava tingido por uma serenidade que se inclinava para a melancolia. As águas corriam suaves, um barco desprendia-se do cais para levar os visitantes ao castelo de Almourol, os chorões, como súbditos perante o senhor, dobravam-se e tocavam com os ramos no chão. Enquanto as crianças corriam, nada bulia e o espectro da perfeição perfilava-se no horizonte, uma garantia de que Deus existe e a terra pode ser um paraíso. Cheguei a Torres Novas já a noite caía. Então, as luzes de Natal atingiram-me como os estilhaços de uma bomba e acordaram-me da irrealidade onde o Tejo me tinha mergulhado. Contemplei-as, infeliz. Talvez Deus não exista e, por certo, aqui não é o paraíso, pensei, enquanto entrava na garagem.

sábado, 29 de dezembro de 2018

Manhã de sol

A manhã deslizou sem sombras. Saio e o dia anuncia o Ano Novo, como se este fosse uma promessa. Percorro a avenida. As pessoas trazem ainda no rosto o cansaço do Natal, esse exercício de penitência disfarçado de alegria. Vou vazio e nenhuma ideia se fixa na mente. Sou um espelho e reflicto aquilo que passa diante de mim. Um cão a ganir, os carros em marcha lenta, gentes que entram ou saem dos cafés. Paro diante de um e hesito em entrar. Vejo, ao fundo, alguém conhecido. Sigo caminho. Não estou sociável e o sol, o sol de inverno, chama-me. Pertenço mais ao reino vegetal do que ao social, pensei, não sem contentamento. Vou passeio fora como se vegetasse, ou fosse um espelho, ou um grão de areia perdido à beira do oceano. A cidade curva os ombros sob o peso da luz, uma criança corre num relvado. A mãe olha de dentro do seu desvelo. E isso basta.

sexta-feira, 28 de dezembro de 2018

Culpa


As minhas netas, montadas nas bicicletas e de capacetes nas cabeças, voltejavam sem parar no espaço público que separa os prédios da zona onde vivo. Eu estava ali, especado, a apanhar o sol frio do fim da tarde, com o duplo papel de polícia sinaleiro e segurança privado. E enquanto ia dando indicações ao trânsito e vigiava os perigos que poderiam surgir, a minha memória recordava os dias em que tinha a idade delas e ia para rua. Sem sinaleiros nem serviços de segurança. Talvez uma mãe por outra assomasse discreta à janela, mas a última coisa que queríamos era que nos orientassem os passos ou vigiassem os projectos. A rua era um território livre de ameaças, a não ser algum polícia que pudesse aparecer para nos levar a bola, como exercício de autoridade e manifestação de despotismo. O azul do céu de inverno era, naqueles dias, tão puro como o de hoje, mas as mentes dos adultos de então eram, incomparavelmente, mais inocentes e límpidas do que as nossas. A culpa que nos habita faz-nos temer sempre o pior.

quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

Um passeio na manhã


Nas ruas, um manto de tristeza abate-se nas árvores desfolhadas pela invernia, enovela-se nas faces de quem passa. Os carros gorgolejam indiferentes, motores a rezar o responso, faróis como velas a iluminar um altar sem Cristo nem santos. Os ciprestes anunciam o cemitério e a cinza do dia, tingida pelos odores oleosos da morte, ergue-se sobre a cidade, rumoreja traições e desditas, poisa nas casas escalavradas, roídas pelo tempo, suspensas no punhal do abandono. Encolho os ombros, olho a desventura a porejar em portas que já não se abrem, vejo a morte a pairar em paredes sulcadas de rugas. Nenhuma maquilhagem as disfarçará. O tempo é um cavalo negro e corre à desfilada para dentro do meu esquecimento.

domingo, 30 de setembro de 2018

Confissão


Numa conversa ficcionada, o psicanalista e escritor Irvin Yalom faz dizer ao dr. Breuer, em resposta a uma pergunta do dr. Freud, que teve “católicos como pacientes que, embora agnósticos, praticavam a confissão”. E isso, a confissão, fez-me lembrar o crepúsculo que cai sobre a cidade, esse momento que ainda buscamos uma réstia de luz antes que a noite chegue. Talvez a prática da confissão – mesmo por agnósticos ou até por ateus – seja isso, uma necessidade de agarrar a pouca luz que se tem, não deixar que a noite venha e tudo se torne turvo, como as ruas que vejo, agora que o sol se pôs e todos os gatos são pardos.

sábado, 29 de setembro de 2018

Memória


Por vezes, caminho dentro do meu esquecimento. Uma rua onde não passo há décadas, pessoas que morreram até na minha memória, um dia de tempestade quando era pequeno, o som que vinha do rádio em casa dos meus pais, o vento que erguia turbilhões de poeira no pátio da escola. E assim que vou desbravando essas estranhas avenidas esqueço-me do lugar onde estou, daquilo que faço, de quem sou. Então oiço um cântico de alegria, mas logo a memória, com a sua rudeza canalha, atira-me para o presente, empurrando-me para o fundo da minha própria pele. Talvez sobreviva, penso e calo-me a olhar o horizonte.

sexta-feira, 28 de setembro de 2018

O castelo


Quando passei na avenida, o castelo espiava a vida cá em baixo com uma indiferença feita de pedras e anos, um rosto sem ademanes nem trejeitos, talvez com uma ou outra ruga de comiseração. Terá razão, pensei. Já viu muitas coisas e há-de pensar que aquilo que nos ocupa e faz ferver de indignação ou de entusiasmo não passa de poeira, e o pó logo há-de assentar sob a copa dos castanheiros, sem que alguém se lembre dele. E isso deu-me uma estranha alegria e a certeza da irrelevância daquilo que me invade os dias ou a insignificância da minha própria existência. Não há como um velho castelo para nos devolver à poeira da realidade. Ri-me, grato, e continuei o caminho.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

O dia que se esconde


Entardece. O dia, exausto e dorido, desliza pelos corpos e procura a terra onde se esconderá no seio da noite. Foi isto que pensei, enquanto olhava para um jacarandá em frente da janela e procurava, entre folhagem e cápsulas secas, descobrir frutos ainda verdes. E enquanto o tempo escorria, entregava-me a uma contagem silenciosa. Depois, esquecido da aritmética, saí de onde estava, passei por gente arqueada pelo calor e entrei no carro. Vi um cachorro de língua de fora, depois por um bando de escolares presos na exuberância da adolescência, subi um viaduto e entreguei-me ao rally das rotundas. O pensamento sobre o dia que se esconde na noite voltou-me e eu sorri com a inutilidade das coisas que me ocupam o espírito. Pudesse eu ter grandes pensamentos, mas só os pequenos nadas e as grandes inutilidade parecem encontrar casa em mim.

quarta-feira, 26 de setembro de 2018

Silêncio digital


Muito sofrida deve ser a vida de pessoas que, perante aquilo que as desgosta, desatam de imediato a insultar meio mundo. Então nas redes sociais a injúria está à distância de uns movimentos dos dedos. Uma contrariedade na pequenina ideologia que habita aquelas cabeças e logo salta um chorrilho de impropérios, uma mão cheia de ofensas, uma incapacidade de conter as emoções no foro estrito da privacidade. Talvez a vida seja negra e uma necessidade de gritar razões faça bem ao fígado, talvez. O mundo, porém, seria um lugar melhor se esta gente calasse os dedos. O silêncio digital como caminho para uma vida civilizada.

terça-feira, 25 de setembro de 2018

Europeu


Hoje de manhã, ao passar pela avenida, observei os castanheiros. As folhas começam a amarelecer. Isso poderia ser um bom sinal, mas não. Olhei para o céu e o sol brilhava raivoso, atiçado por algum deus vindicativo. Lá anda o Outono disfarçado de Verão, pensei. Na sala de aula, as temperaturas eram de tal modo elevadas que, desde o primeiro instante, perdi a esperança de que alguma coisa conseguisse mover os neurónios de quem quer que seja. Exultei, todavia, com o facto de termos um horário escolar como se vivêssemos no centro da Europa. Não há nada como ser europeu, disse para comigo, enquanto insistia em coisas tão interessantes como conceitos e proposições, teses e argumentos. Os alunos abanavam-se, bebiam água e olhavam para mim com um olhar de quem pede misericórdia. Resisti à manobra. Um europeu que se preza não tem calor em Setembro.

segunda-feira, 24 de setembro de 2018

Palavras


Oiço vozes lá em baixo e, mais ao longe, ergue-se a gritaria vinda de uma escola em tempo de intervalo. A inclemência do sol não chega para tapar as bocas e reduzi-las à sombra do silêncio. Talvez seja esse o problema da humanidade, a impossibilidade de manter a boca calada. Esse silêncio que nunca chega aumentaria o valor das palavras, pois haveria um excesso de procura para a escassez da oferta. Mas não, nunca conseguimos cerrar os dentes devidamente. Com a produção sem freio que limite o desastre das vocalizações, nem dadas queremos as palavras dos outros. Para ruído, e não pequeno, bastam as nossas.

domingo, 23 de setembro de 2018

Começou o Outono


Ainda não me atrevi a pôr um pé fora de casa. O Outono, a minha estação preferida, chegou rancoroso, pedras de sol na mão, facas afiadas prontas a entrar pelas costas dos mais descuidados. Noutros tempos, pelo menos aqueles que guardei na memória, a chegada do Outono, mesmo se havia sol e calor, era acompanhada por um sentimento de despedida. Alguma coisa estava a acabar. O que é tormentoso não é o calor, mas chegar ao dia de hoje e pressentir que tudo vai continuar. Um sol inclemente, as temperaturas bem acima dos 30 graus, os incêndios a crescer dentro das florestas, o cansaço dos corpos batidos pelo desvario solar. Chego à janela e espreito a avenida. Os prédios amolecem, as paredes exsudam, as árvores ajoelham-se à procura de água fresca. Depois, sento-me com um romance de Cormac McCarthy na mão. Olho a capa e vejo nela uma paisagem de Outono. Atiro-o para cima da secretária e, como um cão exausto, rosno: estou farto de provocações.

sábado, 22 de setembro de 2018

Uma justiça infalível


Há pouco tive de ir à farmácia. Manter a tensão arterial dentro de valores aceitáveis é um exercício de minúcia e persistência, um compromisso entre um ritual religioso e a fé na ciência, pensei ao dirigir-me ao balcão. Uma rapariga de bata branca atendeu-me com bonomia, talvez com a condescendência de quem ainda não tem idade perante aqueles cuja idade se mede pelo número de medicamentos que toma. Também eu já pertenci ao grupo dos sem idade, disse para comigo, e talvez houvesse em mim condescendência para aqueles que a tinham, talvez. Na rua, ao caminhar sob a sombra que as árvores projectavam no passeio, constatei que havia no mundo uma justiça infalível, enquanto me dirigia para casa com o colírio que me há-de pôr em ordem as fantasias exaltadas do sangue.

sexta-feira, 21 de setembro de 2018

Depois de almoço


Podia desculpar-me com o calor afrontoso que persiste em colonizar este sítio onde me cabe viver. Seria faltar à verdade. A realidade é que as coisas que me interessam talvez  não me interessem assim tanto. Se num daqueles dias, como o de hoje, posso sentar-me, depois de almoço, em frente ao computador para ver ou fazer alguma coisa que me interesse, o certo é que, passados alguns minutos, adormeço. Não se pense que é por falta de frugalidade na refeição, não é. As coisas começam a desvanecer-se, os olhos a arder, as pálpebras a cerrarem-se. Então, a cabeça descai, o queixo choca com o peito e ali fico até que a dor no pescoço se torna insuportável e acorde, a praguejar com a idade, o mundo e a sua falta de interesse. Só me falta ressonar, pensei há pouco. Uma voz vinda de outro lado, como se me lesse o pensamento, tira-me as ilusões. Tens estado a ressonar. Não ouvi nada, respondo não sem ponta de azedume.

quinta-feira, 20 de setembro de 2018

Exuberância


Oiço uma voz animada, dentro de um grupo, no outro lado da rua. Não entendo o que diz, mas não lhe falta entusiasmo. Os meus olhos saltam da sombra das árvores a crescer do chão para os gestos de uma das mulheres. O homem, silencioso, parece atento. Talvez já esteja habituado à exuberância e esteja a fingir que não está a li. Os carros parecem vermes perdidos na crueza do alcatrão. Uma carrinha, vagarosa, pára e interpõe-se entre mim e o grupo. Penso que vou perder alguma coisa essencial, mas logo a paisagem fica desimpedida. Consigo perceber a tonalidade dramática da voz, mas não as palavras. A outra mulher, por vezes interrompe, mas logo a sua voz morre afogada no mar exaltado do discurso da primeira. A vida é assim, pensei. Cheia de dramas e narrativas exuberantes para acrescentar dor aonde ela não existe. O homem tira as mãos do bolso, diz qualquer coisa e afasta-se. A mulher cala-se, enquanto as sombras saltam para dentro da minha escuridão. A cidade parece imutável.

quarta-feira, 19 de setembro de 2018

Resignação


O calor desliza das paredes, ergue-se em direcção ao tecto e cai sobre as cabeças com um estrondo feito de silêncios, cansaço e um triste aborrecimento. Começaram as aulas e o país descansa. Os pais podem retomar as suas vidas interrompidas por essa estranha intromissão que a presença dos filhos em férias sempre provoca. Eu cumpro com zelo as minhas funções. Falo sobre conceitos, problemas, teses e argumentos. Proponho exercícios e eles abanam-se, suspiram, mexem-se nas cadeiras, torcem os dedos e olham-me resignados, como se soubessem que estão perante uma inevitabilidade. Olho para a rua. Ao longe, a pedra baça do castelo reverbera sob o chicote da luz solar. Quando a campainha estilhaçou o silêncio, ao vê-los abatidos pelo calor e submetidos à canga das mochilas, pensei que a resignação é a pedra angular da escola neste pobre país.

terça-feira, 18 de setembro de 2018

Os loucos


Há lugares onde se enlouquece rapidamente ou então que atraem os que, apesar de não o parecerem, são já loucos. Esses sítios, mais que um céu nublado e escuro que ofusca a luz, são buracos negros que a tudo devoram. Os que habitam ali, tenham enlouquecido depois de entrar ou chegado já loucos, trazem no coração o desejo ardente de espalhar a sua loucura por todo o lado que está sob o seu império. E como eles gostam de imperativos, como odeiam o que é diferente, qualquer alternativa à mania que os consome, qualquer vislumbre de sensatez. Num primeiro momento, ainda ocultam do público a doença, mas logo o entusiasmo próprio dos maníacos cresce e se abate como uma guilhotina sobre todos os que pensam. Decapitar, decapitar! Eis a palavra de ordem dos déspotas da insanidade. E a loucura vai-se expandindo, toma por dentro as instituições, as pessoas, a réstia de luz que bruxuleia ao longe. Os loucos, possuídos por um demónio contumaz, não dormem e quanto mais enlouquecem os outros, mais ávido é o seu desejo por mais e mais demência. Inesgotável é o apetite que os consome.

segunda-feira, 17 de setembro de 2018

De janelas abertas


Abri as janelas para que o ar da manhã refrescasse a casa. Lá fora, as árvores pareciam petrificadas, sem que uma brisa lhes movesse as folhas. Em vez de ar fresco, entrou uma mosca e a textura do dia com as suas garras de luz e calor. Dois pombos voaram de um telhado para o outro, enquanto o tilintar abrupto de garrafas anuncia que o despejo do vidrão da esquina. Agora, algumas nuvens escondem o sol e em tudo isto não há glória nem grandeza, apenas o ronronar monótono da vida sobre o alcatrão do tempo.

domingo, 16 de setembro de 2018

Tarde de domingo


A tarde corre sorrateira, enquanto as pessoas, submetidas ao império do calor, ruminam vagarosamente o resto de domingo. Amanhã, a vida espera-as com uma faca afiada, pronta para ser cravada nas costas dos mais incautos. Não fará sangue, mas não faltarão dores em corações trespassados. Afasto estes pensamentos, e concentro-me no medrar das sombras. Desprendem-se dos prédios, das árvores, de qualquer paliçada que separe um território de outro. Algumas pessoas passam. Vão vagarosas, como se estivessem a chegar de uma longa jornada. Uma mulher ajeita o cabelo, um cão alça a perna junto ao tronco de uma árvore e a vida desliza. Ao longe, o ronco de uma moto. Ténue, mas logo aumenta dentro dos meus ouvidos, como se o grande desígnio fosse ensurdecer-me. A cidade murmura irritadiça. Em segredo, o poente adolesce, anunciando uma trégua passageira.

sexta-feira, 14 de setembro de 2018

Tiranias


O único bem que um ser humano dispõe é o tempo, essa duração cujo segredo os deuses nunca revelam, ponderei ao sair de casa. A manhã estava fresca e permitia que o cérebro se dedicasse a pensar, exercício que deveria distinguir a nossa das outras espécies. Enquanto ia meditando, olhava para as pessoas. Apressadas, quase corriam, como se temessem não a falta de tempo mas o calor que, lá mais para o fim da manhã, haveria de irromper para esmagar o cérebro e o coração de cada um. E enquanto deixava o carro deslizar, o pensamento fluía como as águas de um rio, por vezes sobressaltava-se, outras era tomado pela certeza. E assim caminhava, entre dúvidas e convicções, para a foz, esse momento em que alguma coisa se revela. Não há maior tirania do que dispor do tempo dos outros a seu bel-prazer, murmurei entre dentes. Pobre país este em que o prazer maior está em roubar o tempo dos que não se podem defender. No semáforo, um carro travou mal caiu o amarelo. Quase ia batendo e, nessa preocupação, tudo se dissolveu. Talvez o pensamento não seja uma vantagem competitiva, talvez não.

quarta-feira, 12 de setembro de 2018

O que aprender


Agora que o exercício pleno das minhas funções se aproxima, pergunto-me, enquanto vou cidade fora sob a inclemência do calor, o que seria mais importante ensinar. E aquilo que desliza pelo meu pensamento, enquanto a vista percorre a avenida, é simples. A primeira coisa que os seres humanos deveriam aprender seria não ter expectativas acerca de alguém ou de alguma coisa. A segunda, a do exercício contínuo do esquecimento da própria possibilidade de se esperar. Assim, ficariam livres para contar apenas com os seus parcos recursos. Então, tudo o que lhes adviesse, sem que o esperassem, aceitá-lo-iam como uma dádiva que se agradece e retribui. Cheguei, paro o carro e saio para o sol. A escola verga-se sob a aspereza de um calor fugido dos infernos. E o que pensei há momentos desvanece-se já, como se a verdade apenas pudesse viver no silêncio do esquecimento.

domingo, 9 de setembro de 2018

Setembro


Fui há pouco à rua e o domingo pareceu-me soturno. Talvez fosse eu que estivesse soturno, com a despedida das netas, depois de uma semana animada pelo frenesim da sua presença. Setembro é um mês difícil, pensei. Há nele sempre uma fonte de desilusão. Quando chega, o corpo saúda-o como um salvador, mas também o corpo se precipita e vive equivocado. Há pessoas que sonham outonos eternos, uma temperatura suave, as primeira chuvas, a queda das folhas, uma melancolia aprazível que fosse uma entrada para o jardim do Éden. Este, porém, está guardado por querubins de espada flamejante e Setembro é um repositório de traições. Esconde, no seu íntimo, um punhal terrível que, na primeira oportunidade, há-de cravar nas costas dos mais avisados. Encolho os ombros e regresso a casa, pisando calmamente as pedras da calçada, enquanto observo o recorte das sombras que os prédios projectam no meu caminho. Amanhã será outro dia, murmurei para comigo. E a banalidade da frase reconciliou-me com este domingo sem futuro.

sábado, 8 de setembro de 2018

Xadrez e sexo


Há pouco fiquei perplexo ao ler que em Tallinn, Estónia, é proibido jogar Xadrez durante o sexo. Não pense o leitor que a minha perplexidade se deve a um acesso de incredulidade que me tenha levado a duvidar da notícia. Embora não a tenha ido confirmar, estou certo que não faz parte das célebres fake news que tanto atormentam certas personagens pouco dadas ao Xadrez. A perplexidade também não nasce de achar bizarros os legisladores estonianos. Se na Escócia não é permitido conduzir vacas bêbado e em Portugal não se pode urinar no Oceano Atlântico (o que acho muito bem), então também é plausível que, numa parte do báltico, não se possa mover o peão enquanto a rainha está a arfar. Tudo isto é natural e, para qualquer pessoa sensata, bastante óbvio.

O que me deixa perplexo é antes de tudo a magna questão de saber se à relação entre fazer sexo e jogar Xadrez se aplica, ou não, a propriedade da comutatividade. Portanto, a minha perplexidade é do âmbito das matemáticas e não da inverosimilhança da notícia. Será que, neste caso, a ordem dos factores também não altera o produto? Traduza-se: será a mesma coisa jogar Xadrez enquanto se faz sexo e fazer sexo enquanto se joga Xadrez? No círculo dos meus amigos e conhecidos, há quem defenda, e não são poucos, que neste caso a ordem dos factores não altera o resultado. Tanto faz jogar Xadrez durante o acto sexual como praticar sexo enquanto, calma e pensadamente, se disputa uma partida. Se se estiver em Tallinn, o resultado é cometer um crime e, eventualmente, ser punido pelo duro braço da lei.

Por mim, depois de muito meditar, inclinei-me para a inexistência de comutatividade no presente caso. Uma coisa é jogar Xadrez enquanto se faz sexo e outra, muito diferente, é fazer sexo enquanto se joga Xadrez. Neste caso, não há prejuízo de terceiros. O adversário pode até beneficiar do seu oponente estar centrado na vexata quaestio do orgasmo e não ser capaz de perceber que o peão está a preparar-se para comer a Rainha. Eu sei que os peões não devem comer rainhas, mas a vida é o que é, e a nobreza já não é o que era. Estou em crer que nem os estonianos seriam capazes de achar isto um crime. Uma coisa bem diferente, há-de o leitor convir, é estar, depois de passada a provação dos preliminares, em pleno amplexo amoroso, entre gemidos, sussurros, gritos e murmúrios, com a tensão a crescer, o desejo a transbordar, a sua parceira ou parceiro a entregar-se a um violento orgasmo e você, ao mover a torre para a casa h8, exclamar não sem uma ponta de cinismo: Xeque-mate! Só pode dar cadeira.

sexta-feira, 7 de setembro de 2018

Ser estrangeiro


Quase no início do seu livro sobre Constantinopla, Théophile Gautier assevera que “para se viajar num país é preciso ser-se estrangeiro: é a comparação das diferenças que produz as observações”. Será também isso válido para as cidades? Como poderei observar a cidade – o castelo, a praça 5 de Outubro, a avenida marginal, as águas do Almonda, o velho casario – já que não sou estrangeiro? Talvez Gautier, quando publicou o seu livro, não tivesse ainda idade suficiente para perceber uma outra coisa, para compreender que “o passado é um país estrangeiro: lá, fazem as coisas de modo diferente” (Leslie P. Hartley, Go-Between). E é assim, por ser alguém mais do passado do que do presente, que me sinto estrangeiro na minha própria cidade, caminho por ela e as observações nascem da comparação entre essas duas pátrias que o tempo afasta irremediavelmente uma da outra. A avenida, com os seus castanheiros e o jardim a bordejar o rio, já não é a mesma avenida, nem a Praça que há pouco vi é a mesma praça que frequentei há muitos anos. Vim desse passado, onde as coisas se faziam do modo diferente, e por isso sou cada vez mais um estrangeiro. É só uma questão de tempo para que qualquer um se torne estrangeiro na sua própria terra.

quinta-feira, 6 de setembro de 2018

As lentes Mercedes


Um oftalmologista desavisado decidiu receitar-me óculos com lentes progressivas e assim substituir os três pares de óculos que compunham a minha colecção. Uns para ler, outros para o computador e outros ainda para ver ao longe. Ainda argumentei que, provavelmente, não me iria dar bem com a progressividade – ou o progressismo – das lentes, mas ele insistiu, perorou sobre as manobras que tinha de fazer para gerir tantos óculos, e eu cedi. Vendo-me vencido acrescentou que tinham de ser umas lentes de uma certa marca especial e não dessas que saem mais em conta. Deu uma explicação técnica que me soou como se fosse chinês. Vendo o meu ar incrédulo ou estúpido, disse-me: olhe, é como comparar um Mercedes com um Renault 5. Num Renault 5 também vai a Lisboa, mas não é a mesma coisa. Pois não, assenti, entre divertido e ingénuo, imaginando-me já a conduzir umas lentes topo de gama. E lá comprei os óculos com lentes tipo Mercedes. O resultado nunca deixa de me espantar. Se quero ler, deixo o Mercedes na garagem e vou num velho Renault 5, de lentes riscadas e que só serve para ver ao pé. O pior, porém, não é isso. Há pouco decidi ir de lentes Mercedes à rua e pensei que tinha enlouquecido. O que era uma rua normal, agora parecia-me estar cheia de crateras. Ao avançar, via um grande desnível, calibrava o pé para esse desnível, mas não havia cratera nenhuma e o passo saía em falso. Por duas vezes ia caindo, enquanto tentava andar sem espreitar para o chão. Ao fim de cinco minutos, decidi que o melhor era pôr os óculos de lentes Mercedes de lado e andar mesmo a pé. A viagem é mais segura e Torres Novas deixou de me parecer uma cidade da Síria após um bombardeamento.

quarta-feira, 5 de setembro de 2018

As horas


Hoje, ao atravessar a cidade, senti-me perplexo, como se, de um momento para o outro, me tivesse perdido em ruas que percorri vezes sem conta. Quando, passados instantes, recuperei o sentido de orientação, não deixei de me interrogar sobre a razão desta súbita incongruência. As coisas aqui quase não mudam e quando o fazem é porque se tornam decrépitas. Deixa-se o tempo marchar sorrateiro sobre as casas e estas, lentamente, começam a desfazer-se, sem que ninguém dê por isso. Então, tudo se torna tão irreal que, mesmo o mais sólido dos seres humanos, não resiste e se perde no poço fundo daquilo que conhece, esse abismo onde a memória se esfarela e se entrega a corrupção trazida pelas horas, essas deusas vingativas que não largam os homens e as suas pequenas obras.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

Visco


O dia está viscoso, concedi, ao sentir o ar da rua tocar-me a pele. De imediato se formou uma associação. Esse visco que adere aos corpos é uma armadilha para capturar que tipo de aves? Será que ainda se sabe que se utilizava visco para apanhar pequenos pássaros, os quais, de pés colados à mistela, se entregavam não sem resignação ao destino? Não é que eu o tenha feito, pois nunca fui dado à ornitologia ou mesmo a qualquer interesse pelo mundo dos animais, mas havia quem se entretivesse a capturar, com esse ardil de passarinheiro, pequenas aves. O destino destas nunca o soube. Uma coisa sensata a de evitar excesso de informação sobre coisas que não nos dizem respeito. E, perdido nestes pensamento, fui-me encaminhando para uma superfície comercial, uma daquelas que enxameiam a cidade, cruzando-me com gente desconhecida, o que me levou à constatação de que são cada vez menos as pessoas que conheço. Entrei por uma daquelas portas que, guiada por um olho inexorável nascido do cérebro de um bisneto de Bentham, abrem automaticamente. Fui apanhado pelo visco. Afinal, o pássaro a capturar era eu, pensei não sem resignada condescendência para com o meu destino.

segunda-feira, 3 de setembro de 2018

A realidade


Cheguei à janela e pensei: um tempo de tréguas. Até as ruas me pareceram mais belas sob a luz cinzenta da manhã. Os carros, de vidros abertos, passavam lentos, como se os condutores não quisessem perder o fresco que caía. Os peões moviam-se com uma rapidez inesperada, numa cadência que só a sensatez da meteorologia permite. Um belo dia, disse para comigo. E voltei para aquilo que me ocupa. Sentei-me, mas como muitas vezes acontece, os olhos fecharam-se e um mundo tecido de imagens assalta-me antes mesmo que tenha a possibilidade de o enxotar para longe. Vejo carros que já não existem, pessoas que morreram há muito, a velha ponte do Raro ainda sem o infeliz acrescento que a atormenta. E ali, no meio dela, lá vou eu, sem pressa. Sei que pararei na montra de uma loja e ficarei a olhar a capa dos livros que, contra a ordem das coisas, ali estarão. Uma camionete dos Claras passa, largando uma baforada de fumo negra. Tusso e o cheiro desperta-me. A realidade, em cima da secretária, espera impaciente por mim. Não há coisa mais irreal do que a realidade, rosnei.

domingo, 2 de setembro de 2018

Um progresso


Felizes são os domingos que esquecemos que o são. Surgem como uma manhã fresca, absortos e anónimos, para declinarem na preguiça das horas. A segunda-feira será ainda uma espécie de limbo até que, cansado de benevolência, o deus abrirá as portas do inferno. Outrora, as pessoas endomingavam-se. Iam à missa, as que iam, algumas ao futebol ou ao cinema. Era um tempo severo e as possibilidades de distracção, parcas. Quem viveu esses tempos, percorre as ruas da antiga vila e imagina que, naqueles dias, era feliz. Talvez fosse, talvez não. Muitas vezes confundimos a felicidade com a escassez de anos, ou imaginamos que uma bravata juvenil é um feito só possível naqueles tempos heróicos, que não voltarão. A passagem dos anos favorece a tendência para a mitologia, torna até o mais insípido dos homens num mestre contista, mas a realidade, com o peso do calcário, não deixa de aflorar aos nossos olhos e de recordar que uma ilusão, por amável que pareça, não deixa de ser uma ilusão. Seja como for, o facto de os homens se endomingarem menos não deixa de ser um progresso moral da humanidade.

sábado, 1 de setembro de 2018

Dias assim


Passa pouco do meio-dia e lá fora estão 36o. A temperatura há-de trepar até aos 40o, vejo anunciado num dos sites que se tornou, para mim, de leitura obrigatória, o da meteorologia. Setembro, esse mês em que cheguei aturdido ao mundo, apresentou-se sem máscara nem misericórdia. Faço figas, penso coisas impróprias, ergo barricadas dentro de casa, reduzo a luz exterior e só deixo que o mundo entre através do som. É um universo de rumores, o ronronar dos carros ao longe, algum grito extraviado na rua, o latido fraco de um cão exausto. Fecho os olhos e vejo o vapor a evolar-se do alcatrão das ruas. Hoje proíbo-me a visita às janelas e tenho de inventar aquilo que vejo. Conto as horas para que chegue a noite. Dias assim são como uma doença. Há que esperar que passem.

sexta-feira, 31 de agosto de 2018

Agosto declina


Agosto chega hoje ao seu último dia. Entrega-se sem acinte nas mãos de Setembro, mas jura lutar até ao fim. Eu levo-o a sério e deixo-me tomar por uma nostalgia do tempo frio. A meteorologia promete 38o, o que denuncia a malévolo intenção que se esconde na beleza do sol matinal. A cidade está em plena azáfama. Lá em baixo, cortam a relva dos canteiros com um barulho irritante. A vida nunca é como a desejamos, pensei. Os olhos descaem para o estranho livro que estou a ler, mas o barulho não desiste. Chego à janela e vejo um homem de maquineta nas mãos, enquanto o sol toca ao de leve o cume das árvores que se erguem como uma floresta portátil na escola em frente. A cidade desliza nos dedos do sol ao som triunfante de um hino da modernidade. Um concerto para corta relvas e banda magnética, imaginei.

domingo, 17 de junho de 2018

A natureza das coisas


A cidade reencontrou-se com a sua natureza. Um calor seco – quase que escrevia ‘um calor sórdido’, mas contive-me – caiu sobre as casas e as ruas, tornando tudo mais lento. Atravessei a antiga vila para uma visita familiar, mas logo me recolhi em casa. Aproveitei a tarde para acabar de ler Por favor, não matem a cotovia, de Harper Lee. Nunca tinha lido. Quando as histórias dos Finch se acabaram, pensei que este era um livro que deveria ter lido há muito, naquele tempo em que as férias eram exercícios intermináveis e os dias de calor inclinavam o espírito para a leitura. Há obras que se devem ler ainda num período de certa inocência. De preferência, em dias de calor, quando estamos encerrados em casa, presos ao rumor silencioso de uma pequena cidade exausta e de ânimo esvaído pela inclemência do sol.

domingo, 10 de junho de 2018

A província


Este tempo taciturno cobre a cidade com um espesso véu de melancolia. Atravessei-a há pouco e pensei que tínhamos sofrido uma regressão no tempo, pois a tristeza que desce dos céus esbate as cores e dá a tudo um ar cansado e arcaico. Eu sei que é uma ilusão, pois se tivesse havido uma regressão tudo seria mais brilhante e animado. Observo os castanheiros da avenida, a sua floração, este ano, é menos exuberante, penso. Nos passeios, um ou outro transeunte vai temeroso e apressado. A província é um exercício incansável de nostalgia e ruínas, a memória sombria de um mundo que acabou há muito.

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Precariedade


É tudo tão precário, penso ao saber da morte de alguém que conhecia. Tento prender o tempo com as mãos, mas ele escorre-me entre os dedos. Um súbito raio de sol ilumina o casario, há paredes a cintilar, mas as brechas já fazem o seu caminho, marcham hirtas segundo o calendário da ruína. Se passo no centro antigo da cidade, o desconsolo inunda-me o olhar. Logo a razão me aquieta. Também as cidades estão sob o império do tempo. O coração protesta, mas a tirania que rege a vida é mais inflexível do que aquilo que supomos. Uma nuvem interpôs-se entre o sol e os meus olhos. Onde havia cintilação há agora uma cinza suave, secreta, precária. Oiço vozes e elas são já um passado que não retornará, presas na ruína dos seus próprios sons, destroços de um desejo que o tempo calará.

Um triste dia

Atravessei a cidade envolto no manto de tristeza que se desprende destes dias de Junho. E tudo me pareceu belo, quase perfeito. As pessoas iam e vinham, os carros trotavam vagarosos pela avenida, o castelo erguido contra o tempo. Oiço alguém a lamentar-se da invernia primaveril, mas vejo-lhe no rosto o prazer deste tempo sem calor, de luz turva, de água leve que desce, hesitante como uma virgem, sobre a terra. O rio, esse velho espelho esfarrapado pelo tempo, devolveu-me a música melancólica que me rumorejava no espírito e eu respirei fundo, certo que também a beleza dessa hora se desvaneceria sem deixar uma sombra, um vestígio no vidro da história.

sábado, 2 de junho de 2018

Junho


Junho chegou e nem dei por Maio se ter ido. Foi sem uma palavra, envolto em festividades, simulacros de um paraíso que se perdeu para sempre. Os dias passam por mim, vão rápidos, presunçosos, cheios de eternidade. Sinto a minha lentidão como uma sombra devorada pelo rancor do tempo. Nas ruas, os transeuntes apressam-se, a festa aguarda-os no bulício da tarde. Esperam no calor da multidão mitigar o frio que lhes habita a alma. Se alguém me interpela, eu calo-me. Não por indelicadeza, mas por não ter nada para dizer. Um pássaro canta na minha janela. Abro-a, o pássaro voa e o silêncio cai sobre mim.

sábado, 7 de abril de 2018

Presunção


Não cozinhar pode ser uma virtude, mesmo num tempo em que o saber fazer alcance elevada cotação no mercado em que todos vivemos. Foi o que me ocorreu quando entrei num takeaway e me vi rodeado de gente que me fazia passar pela ilusão de ser novo. E enquanto as empregadas, com zelo e bonomia, iam despachando encomendas e satisfazendo caprichos, eu sentia que os que me rodeavam, caso tiver sorte, são o meu futuro. Quando saí para a ira ventosa da rua, ri-me com a minha presunção. Não, não são o meu futuro. São o meu presente. Fechei a porta do carro, pu-lo a trabalhar e o rádio devolveu-me uma oratória de Händel, O Messias, precisamente. Bem preciso de quem me salve, pensei ao desfazer uma curva em direcção a casa. A chuva caía lúgubre e hesitante. Mais logo, talvez o sol rompa a muralha das nuvens. O melhor mesmo, para não cair em metáforas mortas, seria não pensar, pensei.

sexta-feira, 6 de abril de 2018

Elegia


Estava a ver a chuva e a pensar na cadência de um poema. O segredo da poesia estará em fazer que o poema encarne o ritmo da língua. Então ele descerá sobre o espírito como a chuva sobre a terra, umas vezes leve e brando; outras, exaltado ou melancólico. Hoje, a chuva é uma elegia, cai triste, dolente, dolorosa, e as pessoas olham-na com compaixão e deixam escapar do rosto o desejo que ela parta. A cidade arrasta-se no cansaço de uma Primavera ainda inclinada para o mistério do Inverno. Ah se o ritmo do dia fosse outonal, ainda seria possível crer no paraíso, segredei a mim mesmo, enquanto voltava costas ao mundo.

quinta-feira, 5 de abril de 2018

Fidelidade


Ontem, ao passar pela Lagoa de Óbidos, lembrei-me das dores que atormentaram Agamémnon, ao partir para guerra, tão ansioso do sangue dos troianos e do prazer da vingança. A certa altura, vi umas velas de windsurf empurradas sem furor pela brisa vinda do mar, enquanto alguns guerreiros, com a sabedoria dos juncos, se equilibravam sobre as pranchas. Há muito que não via gente a praticar windsurf, pensei com tristeza ao olhar o descolorido daquelas velas. Depois, deu-se um curto-circuito e perguntei-me o que sucederia se o vento desaparecesse e uma acalmia sem fim caísse sobre a lagoa. Haveria uma Ifigénia para sacrificar por um Agamémnon exaltado? O carro rolava devagar e dócil como as asas de uma borboleta ao sol da manhã. Ao perder o bando de velejadores de vista, logo me esqueci de Ifigénia, de Agamémnon e do cruel destino que foi o deles. A fidelidade é um exercício difícil, dissertei ao recordar-me há pouco de tudo isso. O melhor será pensar noutra coisa.

quarta-feira, 4 de abril de 2018

Salvação


Ao fundo, os olhos param nas dunas de Salir. Depois rodam, rodam e encontram a entrada da baía. O mar, para além do pórtico, está exaltado, mas tudo na praia permanece tranquilo. Por vezes, vou a S. Martinho do Porto, nos dias em que suspeito haver por lá pouca gente, e deixo-me cercar pela lentidão com que as pessoas passeiam pela marginal. Olho as águas paradas, o balançar quase imperceptível dos barcos, e deixo que o sol caia sobre mim. Ali, enquanto caminho, posso quase conceber uma teoria da perfeição ou descobrir que toda a virtude reside na imobilidade. Um pai e uma mãe, com duas crianças e um cão, talvez alemães, passam por mim. O cão ladra, mas a família segue em silêncio, ele sorumbático e ela espinafrada, como diria a minha neta mais nova. E eu silencio-me dentro do silêncio deles. Espero um milagre qualquer, mas ele não chega. Nunca sei qual é o caminho da salvação.

terça-feira, 3 de abril de 2018

Dias assim


Há dias assim. Ouve-se uma música, Sérgio Godinho e Ivan Lins, uma nostalgia inútil desce sobre nós e lembra um tempo vivido, dias que não voltarão e que não são mais que breves traços mnésicos de coisas encerradas no cofre-forte do passado. A canção acabou e uma espécie de libertação abriu-se no peito. O sol triste ainda não se livrou, para meu contentamento, da semana santa. A vida decorre sem mácula ou perturbação, as pessoas passam apressadas pela avenida, outras ficam em casa temerosas do tempo. Um casal vai devagar de mão dada, enquanto dois pombos tracejam o céu mesmo em frente dos meus olhos. Não sei que nome hei-de dar a dias assim. Cada vez sei menos coisas, felizmente.

segunda-feira, 2 de abril de 2018

Abril


O dia convida a não sair de casa. Resisto à tentação e submeto-me à necessidade de fazer parte do mundo. A cidade ainda não acordou do longo fim-de-semana. Carros passam vagarosos, alguns param. Intermitente, o símbolo de uma farmácia insiste em inundar-nos os olhos de verde, a esperança nascida de uma química misteriosa, um milagre em cada receita. Uma mulher de calças e sapatos altos encarnados sobe com dificuldade os seis degraus que a hão-de levar a um dos bancos. Sigo-a com o olhar. Empurra a porta, depois de passar o cartão, e é devorada pelo templo dos nossos dias. No rumor da rua não soa qualquer requiem, a morte é uma banalidade que dispensa a música. Basta entrar pela porta certa. Sigo pelo passeio. As árvores estão despidas e ameaça chover. Abril é sempre um árduo exercício.

domingo, 1 de abril de 2018

Na rua


Oiço crianças a gritar. Estão lá em baixo, correm e gritam como se fossem crianças a correr e a gritar. Nunca deixo de me espantar por ainda existirem crianças a correr e a gritar nas ruas. A vida é tão asséptica que o que era normal tornou-se excepção, acontecimento. O sol parece sofrer de anemia, e assim não se ouve nenhuma mãe a ordenar que ponham o chapéu. Talvez as mães já não se importem com chapéus e se ocupem de outra coisa sentadas à mesa do café. Novos gritos. Espreito pela janela mas não vejo as crianças, estarão do outro lado. Num canteiro relvado há um círculo de madeira no centro, o que ficou de uma palmeira cortada rente ao chão. Uma nuvem mais forte passa diante do sol e parece Sexta-feira de Paixão e não Domingo de Páscoa. O dia levita e inclina-se sobre a cidade. Vai devorá-la, desconsolado, até que a noite chegue e o liberte deste seu pesar. Gritaram, mas não percebi o quê. E tudo se enrodilhou na ratoeira do silêncio.

sábado, 31 de março de 2018

Leituras


Não leio em cafés ou na praia. Por vezes, tento mas sou de imediato derrotado. Ainda pensei pegar no livro e ir sentar-me no café ao lado de casa. Espreitei pela janela e desisti. Um excesso de humanidade alegre e ruidosa, presa às suas ilusões e ao vazio que nos coube em sorte. Perderia outra vez. Sento-me à secretária e começo a ler O Fim dos Tempos Modernos. Hoje em dia, desconfio, ninguém lê Romano Guardini. O livro foi publicado em 1950 com o título Das Ende der Neuzeit. Leio a tradução francesa de 1953, tudo anterior ao meu nascimento, pensei. Não admira que já ninguém saiba sequer quem foi Guardini. Inclino-me para o livro, mas as metamorfoses do sol perturbam-me a leitura. Brilha e logo se esconde atrás de alguma nuvem, como se quisesse jogar às escondidas comigo ou cantar aleluias. Não quero. Fico a olhar ao longe, o hospital parece uma alma penada, tragado pelo bolor. Os cedros do pequeno bosque da escola em frente crescem vigorosos. Pena que não existam também ciprestes, concluí e peguei no livro.

sexta-feira, 30 de março de 2018

Dia da paixão


Tive de ir fazer algumas compras. As pessoas embrulham-se nos afazeres que a necessidade impõe, gratas pelo feriado, indiferentes à razão que lhes permite estarem ali. Vejo gente conhecida há décadas, troco ironias e amabilidades, desejamo-nos boa Páscoa, submetidos ao império do hábito, e cada um segue o seu caminho. Chego à rua e o sol hesita entre esconder-se e brilhar, deixo-me levar pela a aragem e penso que não há metáfora que nos permita descrever aquilo que vemos nem metonímia que autorize um mortal a explicar a realidade. Os carros passam e nesta constatação está todo o meu saber e toda a minha cegueira. O dia desliza lentamente para dentro da cruz de um Cristo abandonado na prateleira do supermercado.

quinta-feira, 29 de março de 2018

Livros


Fui comprar livros em papel, já não o fazia há algum tempo, rendido que estou, e há muito, às vantagens dos e-Readers. Não vou argumentar sobre questões de fé. Comprei dois livros da Agustina Bessa-Luís editados pela Relógio d’Água e três de poesia. Omito os autores. Saio com os livros num saco de plástico e deixo-me embalar pelo sol de Março, enquanto as pessoas passam apressadas em direcção ao grande fim-de-semana. Alguém me cumprimenta, trata-me pelo nome. Retribuo, mas não sei o nome da pessoa. Mascaro o esforço com um sorriso e desejamo-nos boa Páscoa. Um final feliz, pensei, não sabendo se me esqueci do nome ou se nunca o soube. É melhor não me preocupar. Sinto o sol a entranhar-se na pele, as sombras a crescer para tarde. Estou de passagem, ouvi-me dizer. Encolhi os ombros. Chega de banalidades. Tenho alguém à minha espera e apresso o passo ao atravessar a rua.

quarta-feira, 28 de março de 2018

Tempo


As horas deslizam sorrateiras e cravam-se na garganta para nos sangrarem. Imagino então o sangue a deslizar, a empapar a roupa, enquanto olho para a rua e vejo um gato à beira do passeio. Hesita longamente e, depois, dá uma rápida corrida para o outro lado da avenida, enquanto um carro trava e eu vejo tudo isso, imaginando o sangue a pingar no soalho, os minutos a passar mais apressados que o gato. Se fosse possível libertarmo-nos do punhal do tempo, medito sem esperança, tudo teria sentido. Um carro passa apressado, buzina, e eu perco de vista o gato. É sempre assim, nunca deixamos de perder de vista aquilo que é mais importante. Talvez chova mais logo, penso ao olhar o céu cinzento.

terça-feira, 27 de março de 2018

Sol quaresmal


Hoje está um sol de Quaresma, pensei ao sair de casa. Um sol quaresmal, mas que coisa será essa? É um sol que brilha sem exuberância, que se derrama sobre os prédios com uma leve tristeza, que toca os espíritos fazendo lembrar umas vezes a solidão e outras a promessa de um grande acontecimento. A cidade não sai diminuída com este sol. Estacionei o carro ao lado da Igreja de S. Pedro. No pequeno percurso que tive de fazer a pé, tudo estava menos deprimente do que é habitual. Graças ao sol. Eu sei que estamos em tempo de ressurreição e que não devemos projectá-la na realidade, mas temos de ser compassivos. Sempre se pode imaginar que a velha vila, aquela que foi exuberante, há-de ressuscitar ou voltar numa manhã de nevoeiro. Não ressuscitará nem voltará, claro. As casas estão cansadas, as pessoas exaustas e o mundo tem mais que fazer do que satisfazer os desejos de quem, tocado pelo sol, se deixa arrastar pela melancolia que cobre as horas. Não haverá nenhum grande acontecimento. E isso pode não ser mau.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Sono


Se estou exausto, um dos meus sítios preferidos para adormecer é em frente ao computador. Chego, sento-me, ligo-o e olho para ali como se estivesse a ver alguma coisa. Não estou. Então, o sono vem sobre mim, a cabeça descai, o queixo choca com o peito. É provável que ressone. Se me babo ou não, isso é coisa a que pouparei o leitor. E a máquina, assim enjeitada, ali fica a trabalhar, com um zelo inexcedível e uma lógica perturbante. Se sonho, não sei. Sou um deficiente onírico, pois raramente me lembro de sonhar. Este pensamento alucinado tranquilizou-me. Seria muito desagradável sonhar uma coisa que entrasse em conflito com o que se passa no monitor. Quando acordo, dói-me o pescoço, mas não nos dói sempre alguma coisa? Umas vezes, um dedo, outras, o nariz, ou a alma ou alguma memória desabrida. Não foi para que nos doesse sempre alguma coisa que nascemos com o pecado original?

domingo, 25 de março de 2018

A glória do dia

Talvez por lhe ter sido roubada uma hora, sinto este domingo quase como uma promessa. Eu sei que não se deve viver de promessas, mas nem a passagem pela avenida marginal, onde, hesitante, a feira de velharias atrai curiosos enfadados, nem a romagem ao sítio onde se arrasta moribunda a feira de Março conseguiram deitar cinza e luto sobre o meu ânimo. É verdade que as pessoas passeiam com o mesmo ar desolado que ostentam nos outros domingos. Um homem caminha apressado, enquanto, em desespero, tenta com um pente pôr ordem no cabelo. Um pai solitário arrasta os filhos em direcção ao carrossel. Um anúncio de farturas mistura-se com a música estridente de todas as feiras destes país. Nada disso, porém, entenebrece o dia e a sua glória. A segunda-feira será menos dolorosa, creio.

sábado, 24 de março de 2018

Visita de estudo


Passei o dia em visita guiada a Tomar. Quase me tornei templário, e isso só não aconteceu porque não havia quem me armasse cavaleiro. Assuntos de cavalaria são coisas sérias e obedecem a regras estritas, e eu não sou de infringir regras, e não ostento títulos no currículo que não me tenham sido autenticamente outorgados. O tempo estava borrascoso, uma frialdade das antigas, uma chuva fria e impertinente, ventos desabridos, como se Éolo quisesse tirar vingança e abrisse a caixa para punir algum dos viajantes, talvez a mim. Antes a caixa de Éolo do que a de Pandora, pensei e fiquei mais tranquilo. Entre claustros e igrejas, lá almocei numa taverna antiqua, onde também não descobri qualquer cavaleiro dotado com poderes suficientes para me fazer entrar na Ordem. Inconformado por não me ter sido dado o merecido acesso à Idade Média, exausto de góticos e manuelinos, lá vim para casa, onde, no conforto do lar, posso imaginar-me cavaleiro da Ordem do Templo, enquanto escrevo isto e oiço jazz. O que devia mesmo era ouvir canto gregoriano, disse de mim para mim. Talvez me fosse mais fácil ser monge beneditino do que cavaleiro de Cristo. Amanhã será outro dia, espero.

sexta-feira, 23 de março de 2018

Castelos


Agora dou comigo a consultar, com mais frequência, a informação meteorológica. Estava olhar, de uma das janelas aqui de casa, para as muralhas do castelo. O céu cinzento escuro agradou-me. Pensei que este tempo é o verdadeiro tempo de Quaresma e vim ao computador para saber como estará o humor de S. Pedro na próxima semana. Parece que vai estar melhor do que devia, constatei não sem um trejeito de desagrado. O melhor é esquecer-me do tempo e voltar a olhar o velho castelo, agora que ele está limpo e asseado. Para dizer a verdade, gosto imenso de castelos e por isso sinto-me tocado por uma enorme piedade quando os vejo assim tão edulcorados, tão mortos, tão prontos para o postal turístico que ninguém há-de comprar.

quinta-feira, 22 de março de 2018

Anoitecer


Arrefeceu. Ao início da tarde parecia que a Primavera tinha triunfado, mas com o declinar do dia uma súbita saudade do Inverno tomou conta das ruas. As pessoas encolhem-se um pouco como se isso servisse de esconjuro contra o frio e seguem os seus caminhos, como se nelas houvesse um propósito, uma causa final que as movesse e desse sentido à vida. Parei no passeio e deixei-me ficar a olhar o que se passa na avenida. As árvores ainda estão despidas, noto. A iluminação pública já invadiu a atmosfera e a noite, tecida de tafetá escuro, prepara-se para, gloriosa, cair sobre o dia moribundo. O melhor será ir para casa, pensei, enquanto alguém me acenava ao fundo e, de imediato, desaparecia devorado pela pobre penúria da escuridão. Uns adolescentes passam do outro lado rua como se tivessem toda a eternidade pela frente, riem alto e assustam um gato que, desconfiado, se esconde debaixo de um carro estacionado. É noite.

quarta-feira, 21 de março de 2018

Estultícia


Há pouco, quando passei pela avenida marginal a caminho de casa, perguntei-me, agora que a Primavera se instalou segundo a ordem do calendário, quanto tempo faltará para essas horas de grande ilusão que são os dias dos castanheiros em flor. A palavra ilusão desencadeou em mim uma associação de ideias e fez-me retornar aos primeiros anos em que exerci, vindo da faculdade, a minha profissão. A ilusão, que eu não sabia que o era, residia em pensar que o ser professor me iria dar tempo para fazer longas e demoradas leituras. Nos primeiros anos – seriam os verdes anos profissionais – a ilusão não se desfez e eu ia partilhando com os meus alunos aquilo que ia descobrindo. Anos mais tarde descobri que isso era como o florescimento dos castanheiros na avenida. A ilusão de um instante. A partir de certa altura, ao fim de não sei quantas reformas, um professor quase está proibido de fazer leituras, pois as horas da semana são escassas para tudo o que tem de fazer na escola, para além de ensinar alunos. A forma como a vida escolar se foi organizando, durante a minha vida profissional – pensei, ao fazer a rotunda onde desagua o viaduto de Rio Frio –, parece ter como desígnio a estupidificação dos professores. Quando as árvores florescem a ilusão é magnífica, mas quando a flor cai a realidade mostra as trevas densas que nela habitam. Deveria ter lido Kafka com muito mais atenção. Ele bem me avisou, mas a minha estultícia foi mais forte.

terça-feira, 20 de março de 2018

Equinócio


Consta que ocorreu o equinócio da Primavera. Vi que o acontecimento se deu pelas 16 horas e 15 minutos, segundo informação do Observatório Astronómico de Lisboa. Não dei por nada, mas fiquei mais descansado. As coisas ainda não estão de tal modo que equinócios e solstícios – duas belíssimas palavras, diga-se – se tornem acontecimentos incertos. Quando saí do lugar onde me suportam para que eu possa ter um modo de vida, a cidade não me acolheu primaveril. Limitou-se a deslizar com indiferença pelo tempo, sem esperança nem desespero. E assim também eu passei por ela, sem a olhar nos olhos nem lhe escutar a respiração, para me vir aqui sentar e escrever coisas sem nexo, as únicas que nesta vida valem a pena ser escritas.

segunda-feira, 19 de março de 2018

Dia do Pai


Há catorze anos ainda vivemos os dois – o meu pai e eu - este dia, mas ambos sabíamos que seria, muito provavelmente, o último Dia do Pai que partilharíamos. Fingimos que o não sabíamos e continuámos a nossa conversa. Era uma conversa como se tivéssemos a vida toda à frente. Em finais de Setembro, tudo ficou consumado, o que sabíamos que iria acontecer aconteceu. Mas aconteceu também outra coisa, a conversa não acabou. Ela continuou dentro de mim e, um dia, espero que continue nos meus filhos, pois trata-se de uma conversa infinita, aquela que liga um pai e um filho. E mesmo no momento em que escrevo isto a conversa continua, flui rapidamente. Eu sei tudo o que ele diria e ele sabe tudo o que tenho a dizer. Este mútuo conhecimento não anula a surpresa das nossas palavras, pelo contrário. É esse mútuo conhecimento que permite a contínua surpresa duma conversa sem fim.

domingo, 18 de março de 2018

Os difíceis domingos

Um casal discutia tão alto que não tive maneira de não saber a dolorosa questão que o animava. Ânimo e entusiasmo parecia não faltar a ambos. Na verdade, trivialidades que fazem da vida um drama sem fim ou que trazem à luz tragédias recalcadas, que aproveitam o trivial para simbolizar o terrível. Como não tinha à mão um comando a que pudesse recorrer para desligar o som, deixei-me arrastar para a memória de algumas cenas de filmes de Bergman, onde as pessoas dizem umas às outras coisas terríveis sem levantar a voz. Até para se dizer o terrível há boas e más maneiras. Não sei se os domingos são mais propícios para o desarranjo da felicidade conjugal. A perspectiva de mais vinte e quatro horas partilhadas momento a momento, depois das de sábado, talvez tenha um peso na propensão para o conflito. Amanhã, com as horas ocupadas pela profissão, tudo se tornará mais sensato. Penso, muitas vezes, que por detrás dessas felicidades que se arvoram publicamente há patologias tais que a única maneira de conviver com elas é criar um grande cenário de vida beata, cheio de corações, sorrisos abertos e fins felizes. Depois, chega a hora em que a boca já não consegue mimar o sorriso e a beatitude mostra o inferno. Talvez a ausência de chuva e de vento tenha serenado os espíritos ou talvez se tivessem cansado. Agora, o silêncio desliza num raio de luz e incendeia-se sobre pequena mata de cedros que avisto. É domingo.

sábado, 17 de março de 2018

Regresso a Ítaca


Muitas vezes, quando vou visitar a minha mãe, aproveito por passar por dentro da cidade. Faço-o como se tratasse de um regresso a casa. Não encontro nessa viagem de retorno os escolhos que Ulisses encontrou, no regresso de Tróia, para chegar a Ítaca. Por aqui não há ciclopes de um só olho nem se escuta o canto das sereias. Tudo se passa como sempre se passou, apenas o tempo cobriu cada coisa com o seu manto de poeira e não há quem esteja disponível para limpar o pó. Os conhecidos estão cada vez mais enrugados e os novos, quando se avistam, são escassos e parecem já envelhecidos, contaminados por uma nostalgia de não se sabe bem de quê. Talvez este tempo de Quaresma obrigue a um jejum de novidade e a antiga vila se prepara assim para o grande luto que antecede o domingo de Páscoa. Ao passar pela velha ponte do Raro espreito o rio. Corre exuberante. O castelo, sonolento, abre a boca das muralhas e boceja. A certa altura, na rua da Fábrica, corto à direita. O carro desliza devagar e eu espero ver-me ali, um pouco mais à frente, nos meus dez anos a jogar futebol em plena rua. Paro o carro e só há silêncio. Cheguei, mas eu não estou lá.

sexta-feira, 16 de março de 2018

Iluminações


“De formas mudadas em novos corpos leva-me o engenho a falar”. Assim começa Ovídio as suas Metamorfoses. Vê-se logo que entrei de fim-de-semana. Ora estas metamorfoses são coisas mais importantes do que se pensa. Veja-se o caso de Saulo de Tarso, agora conhecido por S. Paulo. Não fora a súbita metamorfose sofrida por ele na estrada de Damasco e hoje não haveria cristianismo ou, se houvesse, seria outra coisa, talvez menos preocupada com o sexo. Também eu, por vezes, sofro uma metamorfose, não tão dramática quanto a de Paulo, mas também não me ponho a caminho de Damasco. Limito-me a passar pelas ruas de Torres Novas. Durante décadas odiei, com determinação, favas. O cheiro deixava-me nauseado. Como em todos os ódios, também neste o que sobrava em fervor faltava em racionalidade. Há uns tempos, nem sei bem porquê nem aonde, tive uma metamorfose. Hoje foram, não sem grande prazer, o meu almoço. A cada um as suas iluminações.

quinta-feira, 15 de março de 2018

Aguaceiros


Os dias incertos do final do Inverno repercutem-se na indecisão que alastra nos passos dos transeuntes. Não sabem se o seu caminho é o do sol ou se, daqui a instantes, a água derramar-se-á das nuvens como se a arca de Noé estivesse pronta e um dilúvio viesse purificar a terra da maldade humana. Caminho de chapéu de chuva na mão, mas espero que o sol me poupe a um aguaceiro. A cidade ronrona e furtiva escapa-se-me dos olhos. Passos por pessoas que cumprimento, mas não consigo já localizar o nome de algumas. A folhagem da memória é precária e caduca, torna-se pó com excessiva facilidade. À rua onde passo deram-lhe o nome da revolução, mas nela tudo é sossego e indiferença, uma ordem sem a cegueira delirante da exaltação. Por ali, apenas um tribunal, uma farmácia, mais acima, escolas. Nada que lembre a branca obscuridade do entusiasmo e da fantasia. Os dias são como a vida na província, passam devagar, mas o tempo, esse corre desalvorado e sem tino, ansioso a todos entregar, sem demora, à tranquilidade do ataúde. O melhor é abrir o chapéu, uns pingos grossos anunciam a bátega infernal que há-de vir.

quarta-feira, 14 de março de 2018

Vontade


Chove. O vento inclina as copas das árvores, fá-las desenhar figuras bizarras, para depois as deixar sonâmbulas, muito aprumadas, ramos a apontar para o céu. Os campos de jogos da escola em frente estão cobertos por lençóis de água. Não se avista, da minha secretária, vivalma. Vejo as notícias – ah essa oração da manhã do homem moderno que ainda não dispenso – e deparo-me com o anúncio da morte de Stephen Hawking, o físico britânico. Fico a olhar para a rua e a pensar no que foi a sua vida. Na verdade, muitos dos problemas dos homens residem na vontade fraca. Ele que deveria ter morrido há quase meio século viveu em circunstâncias físicas excepcionalmente difíceis e é uma das grandes figuras do século XX e inícios do XXI. Sim, ele teria uma inteligência prodigiosa, mas sem uma vontade de ferro nunca o seu nome teria chegado a nós. Ao olhar os seus dados biográficos, descubro que escolheu bem os dias para nascer e morrer. Nasceu no dia em que, trezentos anos antes, morrera Galileu Galilei e morreu no dia em que, cento e trinta nove anos antes, nascera Albert Einstein. Para completar o quadro, pensei, só falta uma coincidência com Isaac Newton. A chuva rumoreja e o dia enovela-se numa cinza triste. Indiferentes a tudo isto, algumas oliveiras permanecem impávidas, como se soubessem de coisas que nunca imaginaremos.

terça-feira, 13 de março de 2018

Palavrões


Fui à farmácia comprar um medicamento que me há-de fazer bem à hipertensão arterial. Um exercício contumaz que evitará, presumo esperançoso, que a tensão se entregue ao devaneio da hipérbole. Animado pela perspectiva, saio e, em plena avenida, passa um bando de pré-adolescentes. Raparigas e, perdido entre elas, um rapaz. Talvez inconsolado pela sua solidão de género, desdobra-se, em altos berros, em palavrões. Em busca da masculinidade, pensei, ou talvez fique mais aliviado e esteja a prevenir alguma doença do fígado. As pessoas passavam, os homens sorridentes, as mulheres de orelhas moucas. Se tivesse a certeza de que uns palavrões eram, para a hipertensão, mais eficazes que um beta bloqueante, acho que também eu desatava a bradar avenida fora. Duvido, porém, da eficácia da metáfora e segui para casa.

segunda-feira, 12 de março de 2018

A repartição


Um repartição pública tem um ritmo muito próprio e, se observado com atenção, muito regulado. Num tempo em que a sociedade e a natureza se desregulam, há um nicho onde, apesar do aparato das tecnologias de informação e da parafernália dos periféricos, a regularidade se impõe do abrir ao fechar das portas. Contrariamente ao que se pode imaginar, a regularidade pública não é sinónimo de lentidão. Quando hoje, por um daqueles afazeres a que qualquer cidadão tem de se submeter, entrei numa dessas repartições e, depois de tirar a senha, pensei que, com o pouco tempo disponível, o melhor seria ir-me embora. A sala cheirava a mofo e tudo parecia tão lento que, com mais tempo, num outro dia haveria de tratar do que ali me levara. Talvez algum anjo me tivesse soprado ao ouvido, mas acabei por ficar por ali a observar a cadência com que os séculos XVIII e XIX se arrastam em pleno século XXI. Imaginei-me numa daquelas repartições por onde correu o processo que conduziu Joseph K. à morte. A imaginação, porém, não é uma faculdade assisada e não hesita em derramar fantasias e quimeras, quando não calúnias e vitupérios, no espírito do incauto que a transporta. O mofo não tem a ver com a claustrofobia da modernidade, constatei, mas apenas com a humidade e o excesso de pessoas, todas apostadas em não deixar de respirar, num espaço pequeno. E meditando nisto ia observando o ritmo com que tudo se desenrolava. Quando saí, de assunto tratado, tinha passado uma escassa meia-hora, ritmada por um saber feito de séculos, num Estado que encontrou há muito a sua cadência que, só na aparência, não coincide com a nossa. Cheguei à rua e o sol brilhava e os raios reverberavam nos passeios molhados. Meia hora, quem diria? E assim fui à minha vida.

domingo, 11 de março de 2018

Tagarelice


Devaneei, de carro e apressadamente, por algumas ruas da cidade. Tudo me pareceu mais limpo, mas pode ser apenas sugestão trazida pelas bátegas de água. Agora estou em casa e olho pela janela. Ao longe, as muralhas do castelo, por instantes, reverberam. O vento inclina as copas das árvores, o sol brilha enquanto as nuvens não o cobrem, um carro estaciona nos muitos lugares vagos trazidos pelo fim-de-semana. É domingo e as famílias, algumas, terão ido à missa e reúnem-se para celebrar a sua eucaristia privada. Um cão alçou a perna junto a um tronco de árvore, depois baixou-a e seguiu caminho farejando. Folhas caídas e restos de plásticos enrolam-se no vento, elevam-se nos ares e, como sempre acontece, caem. As palavras servem para isto, para quebrar aquilo que o silêncio deveria calcinar, mas que a imprudência dos mortais acaba por transformar em tagarelice.

sábado, 10 de março de 2018

Sábados de província

Fui almoçar ao Arripiado, do outro lado do Tejo. Estamos, na região ribeirinha aqui mesmo ao lado, na altura da lampreia e do sável. A lampreia, confesso, nunca me convenceu. As pessoas dizem que ou se ama ou se odeia, mas o que as pessoas dizem o vento o leva. Nem amor nem ódio, passo bem sem ela, mas se tiver de ser, não volto as costas. Por falar em lampreia, lembrei-me do romance A Saga/Fuga de JB, do galego Torrente Ballester. Fala-se nele, tanto quanto a memória me permite recordar, de lampreias e da relação directa entre a sua qualidade culinária e o suicídio por afogamento. Ano em que o rio não acolha o seu suicida a lampreia não é grande coisa. A idade faz-nos estas partidas, começamos uma conversa e, não tarda, entramos em roda livre e falamos do que vem à cabeça. A ida ao Arripiado, a um restaurantezinho de aldeia com vista para o Tejo, deve-se ao culto do sável. A cada um os seus prazeres, os meus são parcos. Depois do sável, um retorno por Constância, onde temo sempre ter de me encontrar com Camões, embora a sensatez do poeta tenha, até agora, evitado o incidente. E chegado ali, fiquei a olhar o Tejo e o Zêzere, este a derramar-se naquele, eu a recordar inundações, as águas ainda vão baixas, disse, e a ver a vida correr. Heraclito, sentado na outra margem, fazia-me sinal, mas eu, que estava acompanhado, fiz-me desentendido. São assim os sábados na província, quando chove.

sexta-feira, 9 de março de 2018

Registo


Os carros deslizam pela Sá Carneiro, como se estivessem apressados, temerosos de chegar tarde ao fim-de-semana. Por vezes, algum encontra um lugar de estacionamento e pára. De lá de dentro, sai um homem apressado e corre para um dos bancos. Uma trupe de adolescentes passa, perdida na algazarra, confiante na sua imortalidade e logo desaparece. O pior são as bátegas de água. As pessoas protegem-se ou, irritadas, abrem chapéus. Logo o vento sopra, e inclina-os. Mesmo à minha frente, um virou-se, deixando ver as varetas frágeis que seguram o tecido sintético multicolor. Os prédios, presos na sua solidez de aço e betão, olham com indiferença a azáfama dos mortais. E os meus olhos registam tudo isto – o carro que agora passa descuidado molhando alguém – para que o possa contar, como se a minha missão fosse arrolar tudo o que é inútil. Os cedros da escola em frente abanam, tocados pelo vento que a sexta-feira despeja na cinza da tarde.

quinta-feira, 8 de março de 2018

Realidades


Basta, por vezes, uma troca de palavras com alguém para percebermos que o mundo está muito longe daquilo que imaginamos. Sob os nossos olhos, desenrolam-se as coisas mais inusitadas. Não se tratam sequer de mistérios metafísicos mas de realidades vividas, existências sólidas. Mesmo em pessoas com propensão para um certo cepticismo sobre o mundo, pensei no fim da conversa, há um excesso de idealização. A realidade é sempre pior do que imaginamos. O que vale é que vida continua exuberante, indiferente ao nosso idealismo e às nossas desilusões. As coisas são o que são. Não há nada como uma redundância para fim de conversa.

quarta-feira, 7 de março de 2018

Chuva fria


Depois de uma pequena cerimónia, saí da escola sob chuva fria, a água a deslizar no pára-brisas, enquanto as pessoas se escondiam dentro de casa. Nestes dias, a cidade parece-me menos irreal. O tempo invernoso, penso-o muitas vezes, é o tempo da verdade. Os grandes dias de calor são uma antecipação do inferno, no qual já ninguém acredita, e os amenos não conseguem esconder a doce ilusão que os habita. Os dias frios e chuvosos colocam-nos perante a nossa condição de seres abandonados sobre a terra. E isso chega. Claro que há sempre quem tenha qualquer coisa para vender. Uma ideia original, a salvação da pátria, um mundo melhor. Não tenho alma de comerciante nem inclinação para o consumo. Olho as muralhas do castelo e sigo o caminho. Basta-me a chuva fria.

terça-feira, 6 de março de 2018

Constrangimento


Hoje fui a uma pastelaria onde não entrava há muito. Antes de ir tratar de um assunto levemente desagradável, senti que comer uma bola de Berlim não traria mal ao mundo. Deparei-me com antigas professoras, que, calmamente, lanchavam. Todas foram minhas colegas e duas delas deram-me aulas quase há cinquenta anos. A passagem dos anos não ajuda ninguém, pensei, e, ao olhar para elas, vi o tempo, com as suas garras inoxidáveis, deslizar sobre mim. O brilho que um dia as animou, que as fez suportar essa estranha profissão de dar de beber a quem não tem sede e de comer a quem não tem fome, esconde-se agora sob uma névoa de indiferença, onde, para dizer a verdade, não há traço de tristeza ou de alegria. Constrangido troquei algumas palavras amáveis e rápidas. Satisfeita a gula, esperava-me o frio da rua e o tal assunto levemente desagradável, também ele motivado pelo passar do tempo. Um dia, se chegar lá, olharão constrangidos para mim, pensei.

segunda-feira, 5 de março de 2018

Colégio de Santa Maria


Sempre que passo por lá, e faço-o várias vezes por dia, há uma sombra de tristeza a pairar sobre aquele lugar. Não é que esteja abandonado e a ruína seja o horizonte próximo. Pelo contrário, está bem conservado, apesar das alterações inóspitas que a sua fachada sofreu. Houve ali uma vida exuberante, sonhos, uns fundados na terra da realidade, outros mais tresloucados. Hoje tudo isso é uma sombra que se desvaneceu na voragem dos dias. O antigo Colégio de Santa Maria é, mas confesso que não tenho bem a certeza, um lar de repouso de freiras. Manteve a fidelidade ao feminino, mas há muito que não há por ali raparigas de bata azul, carregadas de livros e de ilusões. Agora floresce a indiferença de quem passa ou a melancolia de quem cresceu num mundo que o mundo aniquilou. Olho a rua e o vento sopra, levando com ele folhas mortas, papéis inúteis, restos de plástico, memórias feitas de flocos de nuvens e o tecido inútil de tudo o que passou.

domingo, 4 de março de 2018

Leituras


A chuva sossegou, mas o dia continua preso à cinza com que as nuvens o cobrem. Não saio de casa e aproveito para ir adiantando algumas leituras entre mãos. Estas leituras, na verdade, não me servem para nada. Aquilo que preciso para o exercício da minha profissão é, por escandaloso que pareça, bem mais rudimentar. Muita gente faz o mesmo que eu, porventura melhor, sem ter sequer leituras. Alguém poderá supor que ler tem em si um valor intrínseco. Em tempos, depois de uma fase de crente, tornei-me agnóstico relativamente a esta proposição. Hoje sou ateu. Nenhuma leitura tem valor intrínseco. Pessoas com boas intenções dirão: ler ajuda a compreender o mundo. Também aqui a minha propensão, depois de passar os sessenta, é de transitar do agnosticismo para o ateísmo. Resta ler por prazer. Sim, é uma hipótese. Outra será ler porque não se sabe fazer outra coisa. Aliás nem constituem um dilema. A incompetência e o prazer andam de mãos dadas muitas vezes. Aqui e ali, a muralha de nuvens abre pequenas brechas por onde escorre uma luz viva e se avistam farrapos azuis do céu. O tempo passa, o melhor será mesmo pegar no livro.

sábado, 3 de março de 2018

Deveres


Talvez se devesse, aos sábados pela manhã, ao acordar, recitar como uma oração o poema de Fernando Pessoa que começa com os inusitados versos Ai que prazer / Não cumprir um dever. O problema é que nunca sabemos a que deus devemos dirigir a prece. Os deuses, mesmo os mais condescendentes, são zelosos em matéria de dever e, raramente, atendem tais súplicas. Não se impressionam nem com a luz de uma vela, mesmo eléctrica. Noutros tempos, uma hecatombe movia-lhes o coração. Mas que mortal devedor de deveres tem cem bois para o sacrifício. E assim, enquanto a chuva se entrega à vertigem da queda, entrego-me aos deveres que devoram o tempo. Mais que isto, lembra o poeta, É Jesus Cristo / Que não sabia nada de finanças / Nem consta que tivesse biblioteca… Era sábio esse Cristo, mas o que se poderia esperar do filho de Deus? Que lesse Aristóteles, que ensinasse economia, que escrevesse um tratado de finanças? Um pombo passa diante da minha janela e poisa no telhado da frente. Será o Espírito Santo? Também Ele há-de ter os seus deveres.

sexta-feira, 2 de março de 2018

Homofonias


É um problema de homofonia. E com o passar dos anos a patologia tende a agravar-se. Ontem, por exemplo, depois de discorrer sobre a vexata quaestio das persianas e das minhas deambulações por esta cidade que, em seu seio, me acolhe, acabei por desconcertar, e aqui é mesmo desconcertar, o texto escrevendo “concertadas” no lugar de “consertadas”. O que me valeu foi uma alma amiga que há pouco me fez notar a situação. Não é que não possa haver um concerto para persianas e viola da gamba ou um quinteto de cordas e persianas. Pode, mas não com as minhas persianas, as quais não foram preparadas para o efeito. Limitam-se a subir e a descer, isto quando não entram em greve, como é o caso. Tudo isto para dizer que um erro é um erro, mesmo que a culpa esteja na homofonia e na desatenção de quem escreve. Se fosse dado a angústias, o que não sou, diria que o que me angustie é a possibilidade que o conflito com a homofonia aumente e que novos desarranjos floresçam. O que hei-de eu fazer?

quinta-feira, 1 de março de 2018

Conservação


Devido a um problema com persianas tive de fazer, para acertar a visita de um técnico, um trajecto diferente para casa. Cheguei a uma altura na vida em que qualquer alteração aos hábitos se torna penosa. Embora, a verdade seja dita, esta inclinação para o conservadorismo seja coisa antiga. E foi isso que me entreteve no caminho, enquanto os olhos iam absorvendo a melancolia que se desprende de tudo nesta pequena cidade. Talvez essa melancolia se deva à inclinação conservadora, a qual gera uma incompreensão para muito do que se passa por aqui. A minha esperança, ponderei, reside nos castanheiros da avenida, quando chegar a hora sumptuosa da floração. Serão ainda algumas semanas de pura irrealidade. A pujança das árvores, as cores das pétalas, o rio e, sobre tudo isso, as muralhas do castelo, elas que já viram de tudo, a espiar a vida pobre que sob as suas pedras se desenrola. Talvez para a semana tenha as persianas consertadas, pensei. Não há nada como conservar as coisas.