quinta-feira, 20 de abril de 2023

Paraísos

Desconfio que tenho uma certa fixação em efemérides, pequenas efemérides, daquelas que asseguram a banalidade do mundo e a trivialidade da vida. Hoje, cumprem-se 2/3 de Abril. Daqui até Maio há apenas mais dez dias. Será isto tão relevante que mereça que se lhe dedique alguns segundos? Claro que é, pois toda a existência, e não apenas a humana, é composta por coisas sem importância, mas que são necessárias. Celebro a necessidade neste culto das efemérides que é também um tributo ao efémero. Uma aplicação que me controla o exercício diário veio a terreiro informando-me, não sem benevolência, que, para cumprir as metas diárias, me faltam 742 passos e seis pontos cardio. Penso que talvez, mais logo, quando o calor entrar em depressão, farei os possíveis para satisfazer o aplicativo. Agora, deixo-me levar pela música de Carlo Gesualdo. Nunca deixa de me fascinar a obra deste príncipe de vida negra. Se tivesse de escolher uma época musical, não seria o barroco, nem o classicismo, nem o romantismo, nem a música contemporânea. Instalar-me-ia na música da Renascença e pensaria que tinha chegado ao paraíso. Um paraíso transitório, um oásis entre os tempos antigos e os tempos modernos, onde tudo estava a acabar e tudo estava a começar. Imagino que os paraísos sejam sítios onde, ao mesmo tempo, tudo acaba e tudo começa. Isto, porém, são fantasias de um narrador desocupado.

quarta-feira, 19 de abril de 2023

Crenças

Na barra de tarefas do computador, existe um aviso – melhor, um duplo ou triplo aviso – que me informa de que o sol se está a pôr, o céu está parcialmente ensolarado e estão 22 graus de temperatura. Agradeço a solicitude informativa, mas não sei o que fazer com tanta informação. Estamos imersos num oceano de informações, um mar encapelado onde arriscamos o afogamento. Isto tinha eu escrito antes de ter de sair de casa e deixar a meditação em suspenso. Agora que retornei ao meu lugar, o sol já se pôs há muito e a escuridão desceu sobre a cidade, envolvendo-a numa seda negra rasgada pelos clarões dos faróis e das iluminações públicas. As ruas, ensonadas, entregam-se ao abandono a que os homens as votaram. As acácias da praceta começam a cobrir-se de folhas, num ritmo lento. Os castanheiros da avenida marginal, reparei de manhã, já estão floridos, mas longe do esplendor que costumam atingir. Talvez ainda seja cedo. Para acabar o périplo pelo mundo vegetal, registo que onze das quinze orquídeas já estão floridas. As que faltam também prometem fazê-lo, só que um pouco mais tarde. Voltando à barra das tarefas do computador, sou informado de que estão 15 graus, com o céu parcialmente nublado. E eu acredito.

terça-feira, 18 de abril de 2023

Viagens no tempo

A criançada ocupa o parque que lhe é destinado. Ouvem-se os gritos, enquanto o vento obriga as folhas do arvoredo a dançar, como se uma flauta humilde ao longe tocasse, talvez para se fazer ouvir nos ouvidos de uma pastora bela. É sempre possível imaginar mundos impossíveis. Talvez imaginados eles se tornem possíveis. Não há pastoras belas, nem não belas, nem estamos em tempos pastoris. Imagino que a verdade acerca desse mundo de pastoras belas e pastores musicais seja tenebrosa, mas sempre se pode sonhar com uma Arcádia, pois tudo o que nos chega da antiguidade perdeu as trevas e a sujidade na viagem para vir até nós. Fazer as coisas viajar no tempo é uma operação de limpeza, pois o tempo é uma escova implacável. Vou à rua ver se chega alguma novidade da Guerra do Peloponeso, uma carta de Tucídides, um fax de Xenofonte.

segunda-feira, 17 de abril de 2023

Uma raposa

Chegou a segunda-feira e com ela a realidade. Como se pode tratar com uma coisa tão intratável como a realidade? Talvez existam duas maneiras possíveis. A da raposa e a do ouriço. Entre mais ou menos 680 aC e 645 aC, viveu na Grécia um homem chamado Arquíloco, nascido na ilha de Paros. Era guerreiro e poeta lírico. Talvez tão famoso, nesses tempos, quanto Homero. É ele que escreve: A raposa sabe muitas coisas, mas o ouriço sabe uma muito importante. Isaiah Berlin, nos anos cinquenta do século passado, para falar acerca da visão histórica de Lev Tolstói escreveu, inspirado no poeta grego, a obra O Ouriço e a Raposa. Já no século XXI, Ronald Dworkin publica Justiça para Ouriços. Temos um confronto entre duas formas de sabedoria. Aquela que assenta num vasto acervo de informações, a da raposa, e aquela que se funda no conhecimento de uma coisa essencial. Este narrador, tal como o autor o projectou, não passa de uma raposa, ou de um candidato a raposa. Sabe muitas coisas, mas nenhuma fundamental. Uma das suas frases de auto-análise favoritas é: sei uma quantidade enorme de coisas inúteis. Ao que poderia acrescentar: mas não sei nenhuma que valha a pena saber. Ora, como lidar com a realidade quando se tem alma de raposa e não de ouriço? Este é um problema. Outro pode formular-se do seguinte modo: pode a raposa, um dia, tornar-se em ouriço? Aqui entramos em Ovídio, o poeta das Metamorfoses, e na plausibilidade de que uma coisa se transforme numa outra. Consta que os alquimistas acreditavam na possibilidade de o chumbo devir ouro, mas nunca provaram a crença. Será possível, por manipulação genética, transformar raposas em ouriços? Todo este texto, claro, foi escrito no registo da raposa ou, para ser mais exacto, de candidato a raposa. Ninguém pode deixar de ser o que é.

domingo, 16 de abril de 2023

Sol de domingo

Quando, de manhã, fui à rua, perguntei-me por onde andariam as águas mil que rimam com Abril. Claro que não me dei resposta, e ninguém veio em meu auxílio. Pelo contrário, os transeuntes desfilavam pimpões vestidos de Verão, esquecidos de que deveria chover para amenizar o clima, encher as barragens e evitar os incêndios. Ninguém quer saber disso, pensei. Depois, caí em mim, fui tocado pela humildade, e reconheci que também eu era um refinado egoísta. Só me lembrei das águas mil, porque o calor me perturba, como se eu tivesse nascido num clima frio e nebuloso e não aqui. O mal do mundo está em que há muito mais pessoas a favor do tempo quente do que do tempo frio. Por isso, não se importam com o aquecimento global. Este assunto, porém, está fora das cogitações do narrador desta gesta, um cavaleiro andante do arrefecimento global. A Primavera, por estes lados, está animada. Os pássaros não se calam, as árvores vão-se cobrindo de uma folhagem verde e vibrante, batida pelo vento, num processo aliterativo, e, por certo, haverá, por essas terras fora, gentes cujo coração foi tocado pela flauta mágica do amor. O que me impressiona, porém, é que o brilho do sol tem o selo dominical. Como todos sabem, e se não sabem deveriam sabê-lo, o sol brilha de maneira diferente aos domingos. Não conheço as razões, mas já constatei o facto. Há nesse brilhar vibrante uma melancolia inextinguível, coisa que não acontece nos outros dias. Poderia dedicar-me à abdução para estabelecer um conjunto de hipóteses científicas que explicariam o fenómeno. Contenho-me, horrorizado, ao descobrir que a palavra tem significado não apenas lógico, mas também anatómico e, pasme-se, ovnilógico. Neste caso, trata-se da gesta de pessoas que foram raptadas – abduzidas – por extraterrestres. Para a próxima vez não usarei o termo abdução, mas raciocínio abdutivo, o qual suponho, não terá ligação à anatomia e, muito menos, à ovnilogia. Hoje, porém, deixo o caso em suspenso e vou tratar da vida noutro lugar.

sábado, 15 de abril de 2023

Confissão

Passei os olhos pela imprensa online. É um acto memorial. Em tempos, a manhã de sábado era dedicada, numa esplanada, à leitura dos semanários. Por norma, três ou quatro, conforme a sorte deles. Depois, fiquei concentrado em apenas um e hoje zero. Já não frequento esplanadas nem leio semanários, seja em papel ou online. A informação e a opinião, de que fui grande consumidor, hoje, com raras excepções, entendiam-me. Imagino, agora, que me deveriam ter entediado desde sempre, pois, na verdade, apenas tocam a espuma dos dias. O problema é que a espuma que agora parece interessar o mercado de leitores e, por isso, os mercadores de informação é mais rasteira e mais suja. Há quem esteja pronto para dizer que os protagonistas são mais sujos e rasteiros. Pode ser verdade, mas julgo que o problema está do lado dos consumidores. Eles, sim, parecem-me cada vez mais ávidos de sujidade e de rasteirice, como se a alma das pessoas se tivesse vindo a tornar mais negra e desejosa do pior. Foi isto que disse ao padre Lodo, há pouco, em conversa ao telemóvel. Não falávamos há semanas. Ele disse-me que estava numa esplanada a apanhar sol e ia lendo o semanário, cujo nome omito. E eu fiz-lhe aquela confissão. Sim, sendo ele padre, achei que poderia ouvir-me neste tipo de confissão, pois deverá ter treino suficiente para abarcar todo o género de confidências e declarações de gosto. Respondeu-me que não desistia do seu jornal de sempre, isto é, aquele que adoptou desde que chegou a Portugal, mas que compreendia o meu desencanto com a imprensa. Esta compreensão, julgo, foi uma forma de absolvição. Depois, trocámos opiniões sobre política, como nunca deixamos de fazer, mas essas omito-as, pois, como narrador, estou proibido pelo autor de manifestar qualquer inclinação que possa ter pelo assunto.

sexta-feira, 14 de abril de 2023

Uma conspiração

Uma conspiração. Tinha o post escrito, usava um tom melancólico, quase elegíaco, falava, como habitualmente, de coisas diversas e sem ligação, tudo corria pelo melhor, mas um bug que vive dentro deste computador decidiu fazer-me nova visita. Usa uma substância paralisante que suspende a actividade de tudo o que esteja activo, chega mesmo a suspender a passividade do que é passivo. Carregar no botão e desligar a máquina é a única solução. Ela, a máquina, não se queixa. Ligo-a e as coisas parecem voltar à normalidade, mas o texto escrito, apesar de gravado, esfumou-se, perdeu-se na estratosfera, e o mundo foi privado para sempre de um conjunto de pensamentos que o deveriam embasbacar, profundos que eram. Talvez tenha sido o próprio mundo a conspirar para não ficar embasbacado com tanta penetração. Seriam pensamentos brocantes, que entrariam pelas paredes do mundo para lhes abrir buracos, imagino eu, mas sou parte interessada, o que me retira a imparcialidade. Consegui, contudo, salvar o ficheiro que está a chegar às 660 páginas, o que não deixa de ser impressionante. Como será possível escrever tanto e, para além dos pensamentos perfurantes, não dizer nada. Não era isto que tinha escrito naquilo que o vento levou, mas o vento leva uma coisa e logo traz outra. Por norma, pior.

quinta-feira, 13 de abril de 2023

Um saber infinito

Dia de ida ao ortopedista, não a um qualquer, mas ao que é especialista em pés e tornozelos, imaginando eu que ele já pouco saberá do joelho e nada do fémur. Ainda há dias, uma pessoa me dizia que se andava a tratar com um ortopedista devido a um problema nos ossos da mão e que se queixou também de uma dor no ombro, ao que o médico respondeu que de ombros nada sabia e lhe indicou um especialista em ombros. Constato, não sem ficar maravilhado, que na medicina nos aproximamos daquele momento onde o conhecimento atingirá a sua máxima potencialidade, isto é, quando se tiver um saber infinito acerca de absolutamente nada. O médico é um rapaz da idade dos meus filhos, não me atendeu excessivamente depois da hora marcada e gostei da estratégia retórica usada. Perguntou-me ao que ia, disse-lhe que era por causa de um calcanhar e que levava já umas radiografias e uma ecografia. Não se mostrou muito interessado. Perguntou-me há quanto tempo padecia do que estava a padecer, lá lhe respondi como fui capaz. Pediu-me para ver o pé, manipulou-o, deu-me indicações para esticar a perna, o pé, sei lá mais o quê. Acabada a sessão prática, disse que a coisa era tratável, mas um bocado chata. Olhou para os exames que eu levava, mas continuou a não demonstrar grande interesse. Então, chegou a hora da aula de anatomia. Com um modelo de um pé reduzido aos ossos explicou-me o que estava a acontecer, eu ia dizendo que sim, que percebia, embora quando ele referia o nome do terceiro músculo, pois estes também entram na equação, eu já não me lembrava do nome do primeiro. Isto, pensei, é um acordo tácito. O papel dele, enquanto jovem médico actualizado, é explicar ao paciente com pormenores científicos aquilo que se passa e o meu, enquanto doente, é fingir que me interesso pelo assunto e que percebo a explicação. Só espero que, se um acaso da vida, tiver de lhe explicar a diferença entre juízos analíticos e juízos sintéticos a priori, ou entre um modus ponens e um modus tollens, ele também finja interesse e compreensão. Feito e explicado o diagnóstico, entrou pela porta do tratamento. Nada de medicamentos nem idas à fisioterapia. Apenas realizar uns exercícios de manhã e à noite que ele exemplificou e me fez fazer. Explicou que batotas devo evitar e fez um prognóstico de umas seis semanas para ficar bom. Caso a profecia falhe, então que faça uma ressonância magnética tibiotársica, mas só nesse caso. Que não me ponha a ressonar magneticamente sem necessidade.

quarta-feira, 12 de abril de 2023

Artifícios

Hoje coube-me assistir a umas conferências sobre Inteligência Artificial. Um dos oradores questionou o uso do qualificativo artificial, preferia Inteligência Sintética. Um equívoco. Artificial é uma escolha adequada, pois contém na sua raiz a ideia de arte, feito pela arte e o engenho dos homens. Pela indústria. Arte remete para a ars latina, a qual traduz a techne dos gregos, a raiz da portuguesa técnica. A Inteligência Artificial, nem sei por que razão estou a grafar em maiúsculas, é um artefacto técnico, resultado da indústria, no sentido de engenho para fazer algo e, mas só depois, como actividade económica mecânica, que também é. O uso de artificial coloca a Inteligência Artificial numa tradição arcaica da humanidade e é lá que ela deve ficar. Essa ideia de artefacto é mais importante do que a de síntese, que remete para composição. Há composições produzidas pelo homem, pela sua ars, pela sua techne, mas haverá outras espontâneas, geradas pela natureza, o que introduz uma ambiguidade ausente do vocábulo artificial. Não perdi o tempo, embora tivesse ainda direito a uma palestra sobre a felicidade, que de algum modo usava um artefacto da Inteligência Artificial para medir os estados de felicidade e infelicidade, mas aí a coisa tinha entrado no domínio da pura ociosidade, a que não faltou o mindfulness e outras ideias aberrantes para uma mente envelhecida, incapaz de sentir qualquer empatia – acho que também esta palavra terá sido usada – pelo assunto. Valeu a prova dos vinhos, onde descobri um tinto bastante interessante e também um rosé suficientemente seco para me chamar a atenção. Comprei umas garrafas de ambos, o que teria salvado a manhã, caso as conferências sobre Inteligência Artificial tivessem sido todo cheias de empatia e mindfulness, o que não foi, Deo Gratias, o caso.

terça-feira, 11 de abril de 2023

Divagações

Depois de ler uma obra com duas novelas de Castro Soromenho, uma literatura a que se pode chamar colonial, dedico as minhas insónias ao romance Aldeia das Águias, de Guedes de Amorim, publicado em 1939. O autor é um nome quase esquecido no panorama da literatura portuguesa e o romance em questão parece ser de tendência regionalista. Do que li, não escapará à dicotomia campo - cidade, sendo o primeiro o lugar da virtude, e a segunda, o do vício. Talvez me engane. Numa outra leitura, a de um filósofo actual, sugere-se que a crença religiosa teria a sua origem no medo sentido perante a desmesura da realidade e das forças da natureza. Isso seria um argumento contra a validade das crenças religiosas, nomeadamente a da existência de Deus. Ora, este parece-me ser um mau argumento, pois pode-se argumentar que a divindade se manifesta no próprio medo sentido pelos seres humanos, o medo seria uma teofania. O argumento não será excepcional, mas valerá tanto como o seu contrário. Talvez não seja curial andar a trocar argumentos sobre aquilo para o qual não haverá caminho para encontrar provas, deixando a cada um resolver essas questões como puder, sem lhe alimentar a ilusão de que terá uma solução ali mesmo, depois de dobrar a esquina. É necessário mantar a contenção e vigiar o tamanho do texto. Fim.

segunda-feira, 10 de abril de 2023

Ardis

Um terço de Abril está consumado. Gostava de saber a razão que me leva a esta quase obsessão com a passagem dos meses, a necessidade de colocar no solo destes textos marcos miliários da viagem pelas terras do calendário. Hoje, talvez porque tivesse companhia na caminhada matinal, não reparei em nada da paisagem envolvente. Não é verdade. Notei que num certo lugar o odor floral vindo de glicínias que por ali existem, pelas tardes tão intenso, era de manhã apenas um vestígio. Fui informado de que o calor do dia as faz libertar os óleos que nelas haverá, por isso ainda não tinha chegado, naquele momento, a sua hora de se derramarem em aromas para que os passeantes dêem pela sua presença. A natureza tem uma enorme reserva de truques e ardis para se fazer notada, embora nem sempre o êxito lhe esteja assegurado. Estamos já na pós-Páscoa, mas continuo em jejum de palavras. Serve para desintoxicar da verborreia que, não poucas vezes, me acomete.

domingo, 9 de abril de 2023

Jejum

Devia começar a fazer jejum. Não, não desse, mas de palavras. Estes textos estão a tornar-se palavrosos. O de ontem tinha 494 palavras e mais de 2500 caracteres. Hoje, Domingo de Páscoa, já fui fazer uma pequena caminhada. Numa zona de moradias, reparei que a caixilharia de alumínio se apresta para liquidar a de madeira. Mesmo naquelas moradias mais antigas e modestas, o avanço do alumínio é grande. Muitas daquelas casas foram construídas num tempo em que o alumínio ainda não tinha chegado a suporte de vidros das janelas, mas estão quase todas convertidas. Resistem algumas caixilharias de madeira, esparsas, o seu estado, todavia, não lhes augura grande futuro. Tinta ressequida, um ar de cansaço, como se já não pertencessem ao lugar onde estão. Aprende-se muito sobre o mundo quando se caminha de manhã, ao contrário do que acontece nas caminhadas nocturnas, onde a consciência se entrega às paixões da alma. Não tarda estarão cá os netos e haverá bulício. Vou preparar-me.

sábado, 8 de abril de 2023

Aventuras no sertão

Continuo as minhas aventuras no sertão da Inteligência Artificial. É um lugar, por vezes, agreste e selvagem. Contém inúmeros perigos, como toda a grande floresta que se preze. Descobri que é dada à mentira. Por vezes, é mesmo uma mentirosa compulsiva. O que não sabe, a maior parte das vezes inventa, embora saiba muitas coisas, demasiadas coisas mesmo. Perguntei-lhe, para a experimentar, quem era o autor da obra Modal Logic as Metaphysics? Resposta: O autor da obra "Modal Logic as Metaphysics" é Timothy Williamson. É um filósofo britânico conhecido por seu trabalho em filosofia da linguagem, epistemologia, lógica e metafísica. A obra em questão, publicada em 2013, aborda a relação entre a lógica modal e a metafísica, argumentando que a lógica modal é essencial para se compreender a estrutura da realidade. Até aqui, tudo muito bem. Pedi-lhe para me dizer quais as três primeiras linhas do capítulo 1 “Contigentism and Necessitism” e respondeu-me: Desculpe-me, mas como um modelo de linguagem, eu não tenho acesso ao conteúdo específico de livros e capítulos. No entanto, posso lhe fornecer algumas informações gerais sobre o capítulo 1 de "Modal Logic as Metaphysics" de Timothy Williamson. E continuou fazendo uma síntese do capítulo em meia dúzia de linhas. Que probidade, ou talvez não, pensei. Então, pedi-lhe o título do capítulo 2. Respondeu-me: O título do Capítulo 2 de "Modal Logic as Metaphysics" de Timothy Williamson é "Metaphysical Necessity". Depois, apresenta um resumo desse capítulo, com aparência de grande consistência. Ora, mais depressa se apanha um mentiroso do que um coxo. O título do capítulo 2 é “The Barcan Formula and its Converse: Early Developments”. Ao apanhar a coisa em mentira flagrante fiquei muito mais descansado. Afinal, a Inteligência Artificial é humana, demasiado humana, e mente com quantos dentes tem na boca, apesar de não ter boca nem dentes. Não passa no mais indigente dos testes de um qualquer polígrafo. Imaginemos, todavia, que Newton ou Einstein eram mentirosos, que mentiam aos pais, aos amigos e às respectivas mulheres, caso as tivessem (não fui averiguar, nem tenho qualquer prova de que Newton ou Einstein tenham alguma vez faltado à verdade). Este estatuto de mentirosos dos dois génios da Física é apenas uma suposição para uma experiência de pensamento. Caso, fosse verdade que eles mentiam muitas vezes, isso implicaria que não deveríamos considerar os seus trabalhos na Física? Não, claro que não. O mesmo se passa com a Inteligência Artificial. Como as inteligências não artificiais, também ela nos obriga a testar as suas afirmações e a confirmar se está a dizer a verdade ou se está a divertir-se, como um génio maligno, à nossa custa. Descobri que ela faz resumos de capítulos de livros que nunca leu, apenas a partir dos respectivos títulos, coisa que acontece com frequência no mundo da inteligência não artificial. Era para falar de outra coisa, da razão por que Eduína, amiga de quem herdei três cadernos completamente escritos, tinha tão estranho nome, mas fica para outro dia.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

A essência da amêndoa de Páscoa

Ontem foi Quinta-Feira de Endoenças e hoje é Sexta-Feira de Paixão. Há muitos anos, quando havia apenas um canal de televisão e a emissão começava às sete da tarde, a Sexta-Feira de Paixão televisiva era preenchida apenas com música clássica. Um dia de luto nacional que caía sobre cristãos e não cristãos. Depois, as coisas mudaram e o luto pela paixão de Cristo transitou para a subjectividade dos crentes, como foi acontecendo com os outros lutos. Para estar em harmonia com a efeméride oiço a Passio Domini nostri Jesu Christi secundum Joannem, de Arvo Pärt, pelo The Hilliard Ensemble e Paul Hiller. Mais logo, é possível que oiça a Paixão segundo São Mateus, de Bach. É uma possibilidade. Motivado pela época, tenho dado alguma atenção - há quem diga atenção excessiva - às amêndoas de Páscoa. Só há umas que me interessam, são as de chocolate e canela, embora também elas sofram de um defeito partilhado com todas as outras. Têm mesmo uma amêndoa. A chegada ao fruto, depois da travessia pelo chocolate, representa um autêntico e decepcionante anticlímax. Uma verdadeira amêndoa da Páscoa não deveria ter amêndoa, apenas chocolate que se dissolveria no nada. Não vale a pena virem com especulações filosóficas e afirmar que a essência da amêndoa pascal é a amêndoa. Para mim, é o chocolate casado com canela. Aqui por casa, há outro tipo de amêndoas, umas de chocolate preto, outras caramelizadas, mas mal olho para elas. As orquídeas continuam a florir. São já oito que entraram na luminosa glória de se abrir para os olhos dos espectadores. Segundo um relatório escutado há pouco, também todas as outras dão sinais de que, mais tarde ou mais cedo, se abrirão em flor. Frases como “se abrirão em flor” ou “abrir-se-ão em flor“ deveriam ser proibidas, mas poderá não ser curial eliminar o mau gosto. Nestes dias, fora das horas úteis, tenho sido ocupado pela exploração do ChatGPT e outras ferramentas idênticas e pela leitura de um livro de contos de Castro Soromenho, Calenga. Dois mundos tão afastados que quase caio na tentação de dizer que são incomensuráveis, o que não será verdade. O último é uma visita literária ao mundo arcaico das tribos africanas, ao seu modo de vida e valores fundamentais, o outro é uma visita a um mundo já presente, mas ainda incompreensível na sua presença. Deveria tentar descobrir amêndoas de chocolate e canela sem amêndoa, mas tenho de me apressar, pois não tarda e a Páscoa passou. Acho que vou perguntar ao ChatGPT.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Genes e fantasias

Alexander Kluge refere os estudos de Richard Dawkins, a quem chama darwinista – As últimas investigações do darwinista Dawkins… –, que rejeitam a ideia de que no processo evolutivo o lado dos maus tenha alguma vantagem. Parece que o gene dos bons é mais apto para sobreviver na luta pela evolução. Sendo assim, e ainda segundo Dawkins, o bem parece estar a aumentar pouco a pouco nas sociedades humanas. Isto será confirmado por estudos de outras áreas. Isto, todavia, contraria as crenças enraizadas na generalidade dos seres humanos e das sociedades. O presente é sempre visto como um tempo de decadência, o futuro é sempre negro, só no passado, nos bons velhos tempos que ninguém viveu, se encontra alguma perfeição. A História e a Biologia evolucionista contrariam esse sentimento da perfeição do passado. O sentimento tem a sua raiz na ideia de que o momento originário é um tempo de plenitude, e o afastamento desse tempo é um mergulho na degradação. Nasce ainda da decepção que todos sentem no presente, em qualquer tempo presente. Essa decepção resulta do desacordo entre aquilo que o desejo pretende e a realidade. Esta é sempre desoladora, se comparada com o que se deseja que ela seja. Essa desolação é então posta perante o temor do que virá e a mitificação do que passou. O processo de mitificação do passado implica o apagamento daquilo que nele é atroz, a rasura de tudo o que é insuportável. Não é por acaso que a Biologia evolucionista é objecto de inúmeras tentativas de descrédito vindas de fora da ciência. É possível que a evolução da espécie necessite dessa ilusão de um passado infinitamente melhor do que o presente, e talvez seja a fantasia de um passado onde os seres humanos eram melhores do que hoje que permita que os de hoje sejam, na realidade, melhores do que eram os de ontem. Sendo assim, a difusão do gene bom e a paulatina dominância deste sobre o mau são acompanhadas por uma fantasia, sendo esta que permite não apenas resistir ao gene mau, como o ir apagando da nossa própria história.

quarta-feira, 5 de abril de 2023

Certificação

Comecei com O outro nome – Septologia I-II, depois foi a Trilogia e agora apresto-me para acabar Manhã e noite. Tudo romances do norueguês Jon Fosse, tudo lido graças às insónias. A escrita de Fosse parece, muitas vezes, focar-se na trivialidade, mas fá-lo de tal maneira que torna manifesto algo de decisivo na existência, nem que seja a sua pura trivialidade. Contudo, é mais do que isso, é a exploração de territórios fronteiriços, aqueles onde o presente e o passado se misturam ou aqueles em que o reino dos vivos e o dos mortos se confundem. É possível que tenha sido nesses territórios que Orfeu tenha perdido Eurídice. É curiosa – e por certo terá ardentes inimigos – a ideia de que os mitos gregos só ganham pleno sentido lidos a partir de uma perspectiva judaico-cristã. A tentação de Orfeu, o desejo de Eurídice e a necessidade de certificação, levaram-no a olhar para ela antes da hora e com isso perdê-la. Contudo, o que Orfeu perdeu não foi a sua amada, mas a sua própria alma, perdeu-se a si mesmo, não percorreu o calvário até à morte e ressurreição. O espantoso reside na necessidade de certificação ser tido como um princípio de perda e mergulho no abismo. Esta ideia liga-se, de modo inusitado, a um momento central da nossa cultura, o início da Modernidade. O chamado projecto cartesiano está assente na busca da certeza, na procura de evidências que certifiquem as nossas crenças. Esse momento seminal da cultura europeia, momento celebrado como uma revolução, é também visto, por mentes mais sombrias, como um momento de decadência. A busca da certificação é uma queda, o mergulho no abismo. Quem precisa de certificação já perdeu o conhecimento. Descartes representaria para a cultura ocidental esse olhar para trás de Orfeu para se assegurar de que Eurídice o seguia, de que a sua alma seguia o seu corpo. Assim como Orfeu perdeu a sua sombra, também a cultura europeia a perdeu com Descartes. A partir dessa hora, a Europa entrou na mais pura errância. Não percebo por que razão esta especulação me acometeu hoje, quarta-feira. Costuma atacar-me às sextas, como prenúncio do fim-de-semana, alguma coisa está fora dos eixos. O que poderei eu dizer? O mundo está fora dos eixos. Oh! Sorte maldita! … Por que nasci para colocá-lo em ordem! Quem escreveu isto terá antecipado a errância que Descartes trouxe ao mundo.

terça-feira, 4 de abril de 2023

Arte divinatória

Num texto com o desapiedado título Mademoiselle Esqueleto, António Ferro escreve: Os dedos, os olhos, os corpos, ensaiam tangos na sombra. Eu sou um adivinho de gestos. Entretenho-me a soletrar atitudes… Eis uma arte divinatória que merece respeito. Adivinhar nos gestos as atitudes, mesmo que não se soletrem. Ler o futuro nos astros, nas entranhas dos animais, no voo das aves, tudo isso me parece falaz, fruto de uma alucinação, mas é difícil, muito difícil, que um gesto não traia uma atitude. Quem não se quer trair deve permanecer imóvel, parado como uma estátua. Deve, inclusive, deixar de respirar, pois até a própria respiração terá uma leitura reveladora de um gesto a vir. Os dias estão bem maiores, cavalgam em direcção ao solstício de Verão, para então se apaziguarem. É possível ler os desígnios da natureza nos gestos de cada dia? Eis um problema que deveria ocupar as mentes mais brilhantes, pois que coisa mais importante poderá haver para os homens do que o conhecimento daquilo que a natureza pretende? Um pássaro passou diante da janela, uma sombra rápida, que logo desapareceu. Acabei de chegar a casa, mas vou sair de novo, vou esperar o fim do dia noutro lado, para ver se descubro alguma novidade, um gesto inusitado, embora não tenha esperança de nele conseguir descortinar o desígnio da natureza.

segunda-feira, 3 de abril de 2023

SPAM

Tinha escrito uma boa dúzia de linhas, mas o computador decidiu entregar-se a uma qualquer conduta patológica que me obrigou a reiniciá-lo, tendo perdido essas linhas e o que nelas estava escrito. É argumentável que não se perdeu grande coisa, com o que estarei de acordo. Acabei de receber uma chamada que não atendi. O telemóvel deu a indicação de spam, resta-me agora bloquear o número para que aqueles que desejariam falar comigo utilizem outro, o qual haverei também de bloquear. Fiz uma pesquisa na internet e parece que o número é de um jornal de que fui assinante há anos, mas que deixei de o ser, pois a leitura online era pouco amigável. Já lhes pedi para deixarem de me contactar, pois se eu quiser ser assinante, não preciso de ajuda. E quando precisar, já não vale a pena ser assinante seja do que for. Também a caixa de correio electrónica está efervescente, há gente que não tem mais nada para fazer senão mandar emails. É segunda-feira, o dia não é propício a grandes aventuras que acrescentem glória à minha gesta. Não fora o spam e estaria aqui sem nada para contar. O mais provável, todavia, é estes textos serem puro spam. Apesar de não terem cariz publicitário ou fraudulento, penso eu, não deixam de ser mensagens irrelevantes e não solicitadas. Nunca tinha pensado nisso, mas penso-o agora e vejo que não é um pensamento destituído de sentido. A única coisa que me absolve é não escrever estas coisas em papel, não sacrificar as árvores à necessidade de me aliviar do que me vai pela cabeça. Talvez isto não passe de uma terapia. Descobri agora que o acrónimo SPAM pode querer dizer duas coisas: (1) Sending and Posting Advertisement in Mass; (2) Stupid Pointless Annoying Messages. O meu caso inscreve-se em (2). Seja como for, quem dá o que tem a mais não é obrigado. É sempre virtuoso recorrer à cultura popular. Vou preparar-me para a hora do crepúsculo.

domingo, 2 de abril de 2023

Domingo de província

É domingo. Esta constatação quase me salvava da trivialidade, mas pressinto que não. Descubro que uma das ruas que vejo passou a ter sentido único. Pode-se subir, mas não descer. Na avenida, um rapaz, poderá também ser uma rapariga, está sentado nos degraus que levam a uma agência de turismo. Fuma e mexe no telemóvel. Talvez troque mensagens ou consulte uma das redes sociais que frequenta. Está só, a luz ilumina-o, o fumo evola-se em espirais, pois é isso que o fumo deve fazer, evolar-se em espirais, os dedos de uma mão seguram o cigarro, os de outra operam no telemóvel. É a única pessoa que vislumbro na avenida. As outras recolheram a casa, é hora de almoço, de um almoço dominical. Eu almoçarei mais tarde, como é hábito ao domingo, oiço a música de Hildegard von Bingen. O Word não gosta do nome Hildegard e propõe Hildegarda ou Hildegardo, mas não aceito nenhuma das sugestões, ele continua a sublinhar a vermelho Hildegard. O pequeno bosque da escola aqui ao lado, batido pela luz, está exuberante, uma mancha verde que, daqui a uns anos, há-de tapar completamente a mancha do hospital, um edifício que começou por ser branco e agora caminha para se tornar cinzento. Também espero que tape o anúncio de uma cadeia de hambúrgueres, embora eu nada tenha contra ou a favor às cadeias ou aos hambúrgueres, apenas aquela coisa estraga a visão, introduz na paisagem de província uma retórica suburbana, um simulacro de cosmopolitismo onde não deveria haver seja o que for. Isto, todavia, é uma opinião com que a generalidade dos meus concidadãos não concordará, pois amam as cadeias de hambúrgueres, já que em frente desta há uma outra, ainda mais famosa, e no outro vértice de um triângulo há uma outra cadeia não de hambúrgueres, mas de pernas de frango ou de asas, não sei bem, e todas elas convivem, mas daqui só vejo o anúncio de uma, as outras o bosque da escola não as deixa ver, assim como esconde um lago numa rotunda, onde se ergue uma estátua à juventude que parece importada de um país de leste, quando eles saldaram a estatuária que por lá tinham, mas não veio de lá, é obra nacional, uma rapaz e uma rapariga vigorosos, ela sentada ao colo dele, ambos com uma braço erguido, braços de bronze, ela segura no braço dele e ele segura uma bola amarela. Imagino que a bola amarela seja uma antevisão da Terra quando esta for um deserto. Afinal é uma estátua futurista, mas está escondida e eu não a vejo daqui. Talvez aqueles dois jovens estejam ali, no centro do triângulo formado pelas cadeias de comida, para o caso de cansados de segurar a Terra terem fome, e então é só levantarem-se e escolherem o que os há-de revigorar para que a Terra não caia no chão e se afogue no lago, se este tiver os repuxos a funcionar e aquela banheira gigante estiver rasa de água. Chega, por hoje.

sábado, 1 de abril de 2023

As coisas mesmas

Abril nasceu tristonho e enfadado, talvez não venha a ser um mês de águas mil, disse para mim. Almocei cedo e mal me sentei à secretária adormeci. Acordei estremunhado e com uma dor no pescoço. Neste momento, o sol rompeu a muralha de nuvens e brilha, mas elas reconstituem as linhas de defesa, não tarda o céu estará de novo todo cinzento. De manhã, antes de entrar na padaria, apanhei alguma chuva, coisa de pouca monta. Não havia muita gente, mas as operações com o pão tornaram-se, naquele espaço, um ritual, oficiado por uma sacerdotisa, que me fez demorar mais do que pensava. Enquanto esperava e me afundava na demora, ia olhando os gestos, à procura de algum símbolo que me indicasse o caminho da redenção. A fracção do pão, porém, era feita numa máquina e não descortinei nada que me fizesse suspeitar de estar perante a simbólica de uma ordem resgatadora. Entrego-me a este fenomenologia, descrevo os actos da consciência, à procura das coisas mesmas, pois se não estiverem na minha consciência, onde estarão elas, as coisas mesmas, pergunto-me. Oiço alguém afirmar que sofri uma viragem idealista, mas encolho os ombros e bocejo, pois num futuro próximo haverei do sofrer uma viragem realista. A Primavera parece consolidada. Existem já múltiplos chilreios, oriundos de aves de espécies diferentes. No outro dia, pousado no murete de uma das varandas, estava um melro. Quando me aproximei, fugiu, deixou o espaço vazio. Não faltam estorninhos. Mais ao longe, quase sempre aos pares, voam corvos, mas esse é já outro reino. As ruas transpiram, dos seus poros sai um sábado de província, onde me acolho para olhar a linha do horizonte.