domingo, 23 de julho de 2023

Uma força do Passado

Domingo de Verão. Um acaso – mas haverá acasos? – conduziu-me a um belíssimo poema de Pier Paolo Pasolini. No Youtube, oiço o poema na voz do poeta, mas a experiência é desagradável. Prefiro ser eu a soletrá-lo a meia-voz, num italiano que não sei vocalizar. O poema começa assim Io sono una forza del Passato. / Solo nella tradizione è il mio amore (Eu sou uma força do Passado / Só na tradição está o meu amor). O poema acaba por ser uma elegia por essa tradição, o que se manifesta logo no segundo verso. Só se ama aquilo que não se é. Ama-se a tradição porque já se está fora dela, ama-se uma reminiscência. Os três últimos versos confirmam o diagnóstico: E io, feto adulto, mi aggiro / più moderno di ogni moderno / a cercare fratelli che non sono più (E eu, feto adulto, vagueio / mais moderno que qualquer moderno / em busca de irmãos que já não existem). Há um terrível julgamento sobre a condição de ser moderno. Ser um feto adulto, isto é, ser alguém que envelheceu sem ultrapassar a condição fetal, alguém que continua como uma potência que nunca se consuma num acto, que nunca chega a ser um homem. Eu sou uma potência do passado, mas que nunca chego a ser aquilo que essa potência traz em si. Talvez os domingos de Verão sejam também eles uma potência que é incapaz de se tornar um acto, pois também eu trago comigo esse amor por uma tradição composta por inúmeros domingos estivais que desapareceram para sempre.

11 comentários:

  1. Um homem é, quase sempre, um feto. Em jardinagem sabemos que os fetos gostam de viver na sombra. Mesmo os arbóreos.

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    1. Talvez os homens sejam fetos que sonham permanecer na sombra intra-uterina ou talvez gostem de se representar desse modo para preservar imaginariamente todas as potencialidades que fantasiam ter tido no estado fetal e que a vida não concretizou.

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  2. Solo l’amare, solo il conoscere
    conta, non l’aver amato,
    non l’aver conosciuto.

    Il Pianto della Scavatrice
    Pier Paolo Pasolini / Poemas
    Assírio & Alvim

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    1. Não tenho a edição portuguesa dos poemas de Pasolini. Quando tentei comprá-la, não a encontrei. Comprei a francesa. Esses três versos poderão ser compatibilizados com os dois iniciais do poema citado ou com todo o poema?

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    2. Boa pergunta, ou eterna pergunta. Estes são, na verdade, os versos iniciais de outro poema.

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  3. Quase que era capaz de lhe oferecer o meu livro, dado que tenho tido pouco tempo para a poesia. Além do mais, este poema, A Escavadora, estava marcado com um envelope da Altice. O que acho lhe agradaria sobremaneira.

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    1. Agradeço a intenção, mas ela defrontaria sempre dois obstáculos. O primeiro relaciona-se com o facto de se ter pouco tempo hoje não significa que amanhã não se tenha mais tempo. Nessa altura, haveria tempo, mas não a obra. O segundo prende-se com a natureza meramente virtual deste narrador, sem nome, nem morada, nem corpo que pudesse receber o livro e dizer muito obrigado.

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    2. Lucílio poderia ter recebido uma resposta assim. Pois claro. Eu também escrevi *Quase que era capaz*, mas, quem me conhece, sabe que não seria capaz. E a razão da oferta não estava no livro, mas sim no envelope que marcava o poema. Afinal, descobri hoje, examinando com mais atenção, que o envelope tem o número de um telefone que nunca tive coragem de marcar.

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    3. O facto de o envelope ser da Altice, coisa recente, não constituiria motivo de atracção, mas um número de telefone por ali abandonado já era bem mais interessante, mesmo que esse número já não correspondesse a nenhum utilizador.

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    4. Concordo. Por isso voltei a guardar o envelope dobrado, junto da mesma página. Agora sei, e relaciono o poema com o número de telefone. É só esperar cem anos. Não foi Vila-Matas que escreveu o seu último romance -Montevideu-, baseado no quarto de um hotel, que foi o mesmo de um conto de Cortázar?
      Desejo-lhe bons encontros dentro dos livros.

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