quarta-feira, 3 de abril de 2024

Novos párias

Estou a prolongar a Quaresma, dedicando-me não ao jejum, mas à abstinência. Resumo a coisa em poucas palavras. Passei pela FNAC. Antes disso deixei-me tentar por um pastel de nata, em vez de me dedicar ao jejum. Na FNAC, porém, fui abstinente e não comprei qualquer livro. É preciso, por vezes, dizer não, como prova de que não se sofre de nenhum adicção. Resisti às tentações, várias que encontrei. Perante cada uma delas, fiz a seguinte oração em forma interrogativa: Será que vou ler este livro? E recebi a inspiração de que não o iria ler de imediato, o mais provável era empilhá-lo e esquecer-me de que o tinha adquirido. Perante tamanha iluminação, abstive-me da aquisição, das múltiplas aquisições. É difícil. Alguém – um certo embaixador com intervenção discreta nas redes sociais – dizia que tem prazer comprar livros e que há mesmo livros que tem mais prazer em comprá-los do que em lê-los. Compreendo-o perfeitamente. Há livros que são comprados apenas para se terem, não vá o diabo tecê-las e uma pessoa precise mesmo de os consultar, ler uma ou outra passagem. Diante de mim, tenho vários que, de um modo ou de outro, focam o mesmo assunto. Num deles, da filósofa Martha C. Nussbaum – em três dias é a segunda vez que a cito – diz-se o seguinte: Os pais indianos orgulham-se de um filho que é admitido no Instituto de Tecnologia e Gestão; ficam envergonhados se um filho estuda Literatura, ou Filosofia, ou ambiciona pintar, dançar ou cantar. Também os pais americanos avançam rapidamente nessa direcção, apesar de uma longa tradição nas artes liberais. A vergonha parental pelas escolhas dos filhos é um aferidor competente do estado do mundo, daquilo que é considerado importante e o que é desprezível. Tudo que tenha a ver com o espírito é desprezível e caminhamos para uma situação em que interessar-se por coisas como Filosofia, Literatura ou Artes é o passaporte para a condição de pária. Sempre se pode dizer que quando os párias tomam conta do mundo, os valores do mundo são os valores dos párias, mas imagino que isso não se possa dizer. O melhor é uma pessoa calar-se, caso pertença à categoria dos novos párias.

Sem comentários:

Enviar um comentário