quinta-feira, 31 de outubro de 2024

O sentido

Adeus, Outubro. Sorrateiro, o mês prepara-se para se escapulir, sem deixar rasto ou saudade. Não que tenha sido um mau mês, mas também não terá sido excepcional. Os dias continuam a diminuir, ameaçando o mundo com a sua fuga e o advento de uma noite eterna. Amanhã, será Dia de Todos-os-Santos, uma espécie de memória a granel. Há uns santos especiais, que merecem um dia só para eles; mas, depois, há aqueles santos cuja santidade não terá convencido os juízes que atribuem dias aos santos e, pobres deles, ficaram tolhidos num dia de indiferenciação igualitária. Isso, porém, não é tema para hoje. Das efemérides referentes ao dia de hoje, a que mais me impressiona é a da batalha de Bersebá, em 1917, na primeira Guerra Mundial. Quais as razões para tal admiração? Segundo li, foi a última carga de cavalaria bem-sucedida na História. Eis uma data clara e que marca o fim de um tempo. A partir daquela hora, a cavalaria, entendida literalmente, deixou de ter sentido. Aliás, naquela guerra não faltaram coisas sem sentido, a começar por ela própria. Talvez as guerras sejam mesmo assim. Começam com um sem sentido qualquer e, depois, lá vão elas até que ganhem um sentido e acabem. Não vale a pena encontrarem outras explicações para a guerra. Quando o sem sentido é de tal modo grande, dá-se a irrupção de um conflito que não é outra coisa senão uma busca de sentido, que ponha fim ao estado depressivo da falta de sentido. A guerra é uma luta contra o spleen, a angústia existencial, a náusea e o absurdo. Termino o mês com mais um contributo decisivo para a compreensão do mundo em que vivemos.

quarta-feira, 30 de outubro de 2024

Vulnerabilidade

Hoje já apanhei um susto. O que causou o susto, felizmente, mostrou-se menos causa de susto do que se chegou a supor. Ora, passado o susto, ficou o espaço para olhar para os efeitos do susto sobre mim. Descobri que o acumular dos anos não nos fortalece a invulnerabilidade. A imaginação, com as suas suspeitas, torna-se mais poderosa, quase maléfica. É nisto que tenho pensado nesta tarde que se tornou negra como a noite. Vejo que deveria estar a cair chuva forte, mas, se chove, é coisa fraca. Alegra-me o vídeo que, entretanto, recebi. O meu neto, nos seus quase seis anos, a marcar um ensaio num jogo de râguebi dos minis. E isto é o outro lado da vulnerabilidade, esta alegria por um pequeno feito do neto, que, na verdade, é apenas uma brincadeira de criança. Aliás, a experiência do aumento da vulnerabilidade está muito ligada à experiência de se ser avô. O que se passa com os netos afecta de uma maneira que não estava à espera. E, estou desconfiado, que a afecção não nasce da fragilidade deles, mas da minha, o que não é coisa fácil de aceitar.

terça-feira, 29 de outubro de 2024

Uma súbita metamorfose

Acabei de ler, no número de Outono de 2024 da revista Electra, um artigo do matemático Umberto Bartocci. Não trata de problemas matemáticos relevantes ou mesmo irrelevantes. O problema deste universitário reformado é o desaparecimento de um jovem físico siciliano, tinha 31 anos, em 1938. Discípulo de Enrico Fermi, Ettore Majorana era uma jovem estrela em ascensão no céu da física. De um dia para o outro eclipsou-se e, até hoje, não se faz a mínima ideia do que aconteceu. Imagine-se o conjunto de teorias que a evaporação do jovem prodígio terá originado. Leonardo Sciascia, um dos grandes escritores italianos, dedicou-lhe um romance, La Scomparsa di Majorana, não traduzido em Portugal, e as especulações e efabulações sobre o que lhe terá acontecido são imensas, segundo o texto de Umberto Bartocci. O próprio matemático, talvez cansado da Matemática, não se poupou e apresenta uma tese, também ela romanesca. Envolvimentos amorosos com mulheres casadas, filhas que terão passado a vida a chamar literalmente pai a outro, conflitos familiares, a começar, como não podia deixar de ser, com a mãe, tudo numa família siciliana. Isto apesar de ele ser tímido no contacto com as mulheres. De efectivo fica-se a saber que Majorana era um grande físico, nomeado aos 31 anos para cátedra de Física Teórica na Universidade Real de Nápoles e que desapareceu poucos meses depois da nomeação. Também se sabe que se filiou cedo, e por convicção, nas juventudes do partido nacional fascista. Bartocci termina o artigo dando a entender que talvez saiba mais do que diz e que, eventualmente, saberá o que terá acontecido ao discípulo de Fermi. O melhor seria que Bartocci escrevesse dois romances. Um sobre o desaparecimento e as razões que assistiram ao desaparecido e outro sobre a sua segunda vida, talvez, imagino eu, com outro nome. Ter-se-á perdido um grande físico, mas, devido a uma súbita metamorfose, descobriu-se uma bela personagem romanesca.

segunda-feira, 28 de outubro de 2024

Contribuição decisiva

Chegou a altura de nos lamentarmos por anoitecer tão cedo. A mudança da hora terá por finalidade, duas vezes por ano, gerar uma certa perturbação no ritmo de vida das pessoas. Haverá ainda uma outra finalidade, mas que está em vias de se tornar destituída de sentido. A de acertar o relógio pelo novo horário. Ora, nos tempos que correm, consulta-se as horas em muitos dispositivos digitais, os quais nos roubam o prazer do acerto, tomando-o eles próprios para si. É certo que existem ainda muitos dispositivos, entre eles relógios, que não fazem alterações horárias automáticas, mas lá chegaremos. Resta o prazer de perturbar a vida das pessoas. Diria que essa é uma das prerrogativas dos poderes deste mundo e, apesar da sensatez que seria evitar essas perturbações, aqueles que têm o poder de determinar a hora oficial não evitam a perturbação, pois se o fizessem seriam despojados de um poder, coisa que os perturbaria a eles. Entre a perturbação dos muitos que têm de seguir a hora oficial e a perturbações dos poucos que têm o poder de a determinar, estes últimos agem do modo mais racional possível. Defendem os seus interesses e evitam a sua perturbação por não poderem perturbar os outros. Esta é a explicação mais plausível jamais dada para justificar aquilo que não tem justificação, andar a mexer nos ponteiros dos relógios, ora adiantando, ora atrasando. Fico-me por aqui. Hoje já contribuí para decifração de um dos mistérios que atormentam o mundo.

domingo, 27 de outubro de 2024

Infelicidade e esquecimento

Está um belo domingo. O sol que no Verão é, por estes lados, um poderoso e contumaz inimigo, é agora um aliado na aventura do dia-a-dia. Apesar disso, as minhas pobres netas têm estado por cá, não para coisas agradáveis, mas por motivos ínvios de preparação de avaliações. A escola é um problema sem fim. Para os alunos, para os professores, para os pais e, agora, para os próprios avós que têm de participar na desventura dos pais. Na semana passada, foi o mais novo com as ondas dos is e dos us, agora são as mais velhas com coisas menos ondulantes. Em tempos, numa outra encarnação, havia por casa, não esta, gatos. Descobri que uma gata com ninhada também leva os filhotes à escola, mas ela é a própria professora e ensina-lhes o fundamental. Por exemplo, subir e descer árvores. Ora, aquela escolarização é breve e toda feita de aulas práticas. Uma das desvantagens da espécie humana é a necessidade de uma longa escolarização, em que a maioria dos escolarizados se sente infeliz com os aspectos teóricos que o ensino humano exige. Ora, não há nada mais prático do que uma boa teoria. O problema nasce da idade que, na maior parte dos casos, ainda não é suficiente para perceber isso. Tudo aquilo deve parecer um oceano de abstracções cuja utilidade é invisível, o que no dizer das vítimas se traduzirá por um isto não serve para nada. E aqui descobrimos uma nova desvantagem da espécie humana. Na maior parte dos seus membros, há um conflito entre o dever e o prazer. Não tivesse Epimeteu, quando tirou da terra as espécies animais, esquecido a humanidade e tudo para nós seria mais fácil. Até o dever seria premiado com o prazer. Esse terrível esquecimento criou nos seres humanos uma ferida que nunca sarará. O Homem é um ser ferido por natureza e toda a sua vida é uma luta contra essa patologia originada por Epimeteu, um titã desmiolado e desatento. Também no mundo dos deuses as coisas estão longe da perfeição.

sábado, 26 de outubro de 2024

Degradação

Talvez não devesse mobilizar, nestes textos, referências. A erudição é uma doença e, neste caso, uma aparência de erudição não é uma aparência de uma doença, mas uma doença mais radical e deplorável. Contudo, nem sempre posso evitar o jogo das referências, tal como acontece hoje. No capítulo cinco, “The Degradation of Sport”, de The Cultura of Narcissism – American Life in An Age of Diminishing Expectations, Christopher Lasch defende que aquilo que corrompe uma performance desportiva, tal como degrada um ritual ou um drama, é a sua transformação em espectáculo. É nesta transformação em espectáculo que as actividades humanas se degradam. A seriedade que as habitou perde-se quando se transformam em entretenimento, uma forma de matar o tempo, de lidar com o tédio existencial. Não foi apenas o desporto, o ritual religioso (imagine-se uma procissão em Espanha) ou o teatro que transformaram em espectáculo para entretenimento. A própria acção política, na sequência da degradação do ritual religioso, tornou-se um espectáculo e degradou-se em entretenimento. O sério e o decisivo da existência tornaram-se um logro, um divertissement. É com esta palavra que Pascal, no início da modernidade, trata dessa fuga que impede o indivíduo de se confrontar com o enigma da existência. O desporto moderno, com as suas paixões, é um símbolo de uma existência impotente de enfrentar o mistério colocado pelo facto de se existir. É um símbolo totalizante, pois ele simboliza a degradação de toda e qualquer actividade humana, desde o ritual religioso até à práxis política.

sexta-feira, 25 de outubro de 2024

Mais lento

A certa altura, a autora escreve: Desde que os meus movimentos se tornaram mais lentos, a floresta à minha volta ganhou, pela primeira vez, vida. Este elogio da lentidão está em conflito aberto com as exigências das sociedades modernas. Estas são uma revolta contra o prazer de saborear, pois saborear exige que se evite a pressa. Cada vez mais rápido é o lema em que se funda a modernidade. A pressa impede-nos de usar os sentidos na sua plenitude e essa alienação sensorial torna-nos cegos. A floresta de que fala a autora da frase citada, a austríaca Marlen Haushofer, é no romance, A Parede, uma floresta real, tanto quanto uma floresta ficcional pode ser real, mas também é uma metáfora para a existência. A velocidade torna-nos incapazes de saborear a existência, de perceber como ela é viva. É um facto que a narradora e protagonista do romance só chegou a essa hora em que os movimentos se tornam mais lentos depois de um acontecimento decisivo, mas sobre ele não falo. Quem o quiser descobrir que leia A Parede, um grande romance, e a sua grandeza não reside no número de páginas, mas na própria natureza da obra. Em vez de perorar sobre a aproximação do fim-de-semana, vou ler, sem pressa, as páginas finais de A Parede. Também eu cheguei a uma altura em que os movimentos se tornaram mais lentos.

quinta-feira, 24 de outubro de 2024

Classificações

Olhei lá para fora e pensei que era sexta-feira. Uma ilusão de óptica. Apesar de a tarde de hoje se parecer com uma tarde de sexta-feira, ainda estamos na quinta-feira. A mente humana tem uma curiosa propensão para fazer classificações e, depois, integrar os fenómenos nessas categorias. Ora, essas categorias são arbitrárias e a inclusão nelas daquilo que acontece ainda é mais arbitrário. Contudo, é essa arbitrariedade que nos permite viver. Torna-se num hábito social ou psicológico, torna-se numa tradição ou num ritual declinado pelo indivíduo. Veja-se o caso de a classificação da tarde de hoje no grupo das tardes de sexta-feira ser completamente errada, ainda assim teve utilidade, pois confrontou-me com o facto de que nem tudo o que parece é, e, sendo assim, estas classificações estão abertas ao erro e não devem ser tomadas como dogmas, mas meras indicações para navegar no mar da existência. Ensina ainda outra coisa. Que há tardes de quinta-feira que se parecem com as de sexta-feira. O dia continua a aproximar-se da hora crepuscular, mas ainda há crianças no parque infantil, perfurando o ar com a verruma das sua vozes e o estile dos seus gritos. Não querem saber qual a tonalidade da tarde que vivem, apenas querem vivê-la na plenitude que toda a inocência implica. As vozes calaram-se, mas o ranger das roldanas das cadeiras de baloiço ocupou o palco. Não há pássaros no horizonte e isso é tudo o que me ocorre.

quarta-feira, 23 de outubro de 2024

Fado

Sou especialista em esperas num consultório médico. Uma coisa deplorável. Hoje, porém, aprendi a mitigar a avaliação dessas esperas. Uma ida às Finanças foi uma lição exemplar. Três horas e meia depois de chegar, fui atendido. O funcionário foi gentil, mas não tratei de nada, pois faltou um papel do banco, banco esse que através de um funcionário disse não ser necessário. O facto de ter sido atendido e a explicação que recebi de como podia tratar do assunto online amenizaram-me a indisposição. Falta, porém, ir ao banco e conseguir o papel que as finanças pretendem, coisa que não me parece que seja fácil e que me fique barata, segundo percebi da conversa de hoje. Antes de mim estava uma pessoa que foi toda a vida emigrante na Suíça e não percebia como é que estas coisas eram assim por cá. Como para tudo, também para isto tenho uma tese. É uma questão genética. Os portugueses, entre os quais me incluo, apesar de nem sempre passar por tal, têm um gene especial. Esse gene tem por função tornar complicado tudo o que é simples. Mal o português vê um processo simples, logo trata de o tornar complexo. Esse gene está intimamente conectado com os genes que suportam a inteligência, pois, apesar da decisão de tornar complexo o que é simples ser eminentemente estúpida, o português consegue encontrar uma teia de explicações que justificam a complexificação. O normal é a inteligência suportar acções e decisões inteligentes. Não é o caso em Portugal. O nosso gene da inteligência tem por função fundamentar decisões estúpidas. O mais interessante de tudo isto é que nós nem somos culpados. Que culpa pode haver em alguém que não fabricou os seus próprios genes, mas os recebeu? Nenhuma. É a isto que se chama fado

terça-feira, 22 de outubro de 2024

Instabilidades

Como ontem, o dia de hoje tem uma luz vibrante. O céu, de um azul-pálido, é sulcado por pequenas nuvens de uma cinza esbranquiçada. Formam uma frota dispersa, em fuga, depois de uma derrota em alto-mar. Quase se ouvem os gemidos dos marinheiros moribundos, mas será apenas a imaginação de um narrador sem ocupação. Talvez o bom tempo tenha vindo para ficar. Se assim for, chegará a hora em que se ouvirão lamentos pela falta de água, pelas terras secas, pelas culturas perdidas. Nenhuma novidade. A questão da novidade é interessante, talvez mais do que se pensa. Se pensarmos que tudo o que acontece é único e irrepetível, que nenhum momento é idêntico a outro, chegaremos, de imediato, à conclusão de que tudo o que acontece é novidade. Ora, a ideia que transportamos de novidade está fundada na oposição entre o velho e o novo. Ora, se tudo é constantemente novo, então não há lugar para o jogo de oposição entre velho e novo e, como corolário, não há qualquer novidade. Os móveis velhos daquela sala são, na verdade, continuamente novos, pois a cada instante que passa eles tornam-se outros, numa alteração contínua e sem fim. Eu, narrador deste instante, não sou o narrador que começou o texto, pois a escrita de cada letra me fez ser outro, por muito que eu afirme que sou o mesmo, que sou o velho narrador de há pouco ou de há dez anos. O problema é que não sabemos como lidar com o fluxo da diferenciação e consideramos como iguais coisas – isto é, tudo o que existe – que, constantemente, se tornam diferentes. Confundimos a nossa necessidade psicológica de estabilidade das referências com o facto de as coisas serem estáveis. Não são. Nós também não.

segunda-feira, 21 de outubro de 2024

Um delírio palavroso

Os textos escritos neste blogue, durante o ano de 2024, enchem, com o de hoje, cento e trinta cinco páginas A4, com um espaçamento de 1,15 entre linhas. São mais de 82 mil palavras. Todas esta informações são-me dadas pelo processador de texto. Fico siderado pela capacidade de encher tantas páginas sem que tenha uma finalidade para o fazer, nem lhe encontre um sentido que justifique tão expansivo delírio palavroso. Contudo, as adversativas são coisas extraordinárias, há uma analogia com a vida. Também ela, por muito que isso nos desgoste, se desenrola sem finalidade e sem que um sentido se perceba no acontecimento de haver matéria viva num universo de matéria morta. Os textos que escrevo são como a vida. Acontecem como ela. Que relação há entre eles e a matéria morta da minha mente? A mesma que entre a matéria viva e a matéria sem vida do universo. As segundas-feiras são difíceis para este narrador. Nunca encontra objecto de narração e agarra na primeira coisa que saltita diante dos seus olhos. Podia ser a sombra que se estende a esta hora pela cidade e pelos campos. Podia ser o leve ondular das folhas das acácias. Podia ser aquele cão que arrasta uma dona que não larga o telemóvel, enquanto o animal está desejoso de conversar com ela. Podia ser outra coisa qualquer, mas foram as centro e trinta e cinco páginas de coisas inúteis. Agora, porém, vou dedicar-me à utilidade e não é tratar do jardim, que, aliás, não tenho.

domingo, 20 de outubro de 2024

Caprichos

Exercícios de cegueira.  Ontem e hoje procurei um livro para emprestar a um dos filhos. Nada. Percorri estantes e pilhas. Zero absoluto. Olhei para aquela pilha, em que tinha quase a certeza de que era aí que ele devia estar, mais de uma dúzia de vezes. Percorri-a com dedo, livro a livro. Nada de encontrar o malfadado romance. Agora, mesmo no minuto do destinatário, no caso uma destinatária, se ir para Lisboa, olho para a pilha e lá estava ele, bem visível. Há várias possibilidades. Uma delas é que o livro não queria ser emprestado e se escondia. Outra, talvez mais plausível, é que o livro saiu na sexta-feira à noite e só regressou hoje, durante o almoço, quando todos estavam distraídos. Também é possível que o meu inconsciente não quisesse emprestar o livro, mas por muito que me esforce não encontro razão para isso. Pelo contrário. Resta o mistério da cegueira daquele que procura e não encontra. Aliás, não fui o único procurador e não fui o único a deter-me naquela pilha. O livro não estava lá. Nem ontem nem hoje de manhã. Ou então havia uma cegueta generalizada aqui em casa. Generalizada e especializada. Cegos apenas para aquele objecto. Talvez fosse boa ideia comprar mais umas estantes, foi a conclusão unânime, embora eu tivesse pensado que, mesmo arrumado, segundo o critério por aqui usado, não seria visível a não ser na hora que ele decidisse que, afinal, não se importava de viajar até Lisboa. As coisas, tal como os seres humanos, são caprichosas e volúveis.

sábado, 19 de outubro de 2024

Auxiliares de leitura

Experiências. Pega-se num romance, por exemplo, Os Maias, e coloca-se no ChatGPT. A partir daí pode-se pedir uma série infinita de tarefas. Uma experiência curiosa é de pedir que interprete a obra à luz de uma certa teoria literária ou de uma teoria psicanalítica. Pode-se pedir uma interpretação à luz do pensamento de um filósofo, de um antropólogo, etc. O que acontece não é desprezível. O chatbot selecciona um conjunto de conceitos e de teorias proveniente do autor ou da teoria referida no prompt e aplica-os à obra, oferecendo uma leitura baseada naquela perspectiva. Pode-se, então, coleccionar múltiplas leituras psicanalíticas, filosóficas, literárias, religiosas, enfim, do que se quiser. A obra é como a partitura de uma sinfonia ou de um concerto. Depois, os diversos maestros vão-na interpretando conforme a sua visão musical. Ora, esta proliferação, ao infinito, de possibilidades tem alguma utilidade para o leitor? Desde que ele não substitua a leitura da obra pela leitura dos textos gerados pelos algoritmos, o processo pode ser enriquecedor da leitura. O horizonte do leitor alarga-se e a sua capacidade de acolher a obra torna-se mais ampla e mais esclarecida. Um romance, como qualquer obra de arte, é um objecto simbólico. Ora os símbolos suscitam múltiplas interpretações, as quais nunca esgotam o sentido com que esse símbolo está sobrecarregado. Aquilo que estes chatbots nos oferecem é a possibilidade de ter outros pontos de vista que permitam enriquecer a nossa leitura da obra. Em si mesmas, aquelas interpretações valem pouco ou nada, pois não são interpretações, mas podem ajudar os seres humanos a serem melhores leitores. E isso não é pouco. A inteligência artificial não substitui os seres humanos. Só eles podem interpretar Os Maias, mas os algoritmos têm capacidade de associar frases com sentido que os seres humanos compreendem, apesar de o chatbot gerador não compreender o que fez. E isto não deixa de ter significado, pois podemos alargar a nossa compreensão a partir de algo que resulta de um ser que não compreende, não interpreta, não sabe, pois manipular informação, ainda que com acerto, não é compreender, nem interpretar, nem saber.

sexta-feira, 18 de outubro de 2024

Pluralismo sensorial

Deixei-me embalar por uma peça de Arvo Pärt, Für Alina, e adormeci sentado defronte ao computador. Como lidar com estas humilhações? O melhor é não lidar e aceitar as coisas como são e, neste caso, recomeçar a ouvir a peça, a qual, diga-se, tem qualquer coisa de embalador. Talvez fosse um exercício de hipnose. Nunca se sabe o que vai na cabeça de um artista. Talvez a cabeça não seja um órgão artístico. Será mais propícia ao filósofo e ao cientista. Também não será o coração. Se a cabeça suporta o filósofo e o cientista, se o coração suporta o homem religioso, o que suportará o artista? Os sentidos. Os artistas pensam com os sentidos, enquanto o monge pensa com o coração e o filósofo e o cientista com a cabeça. Ora o artista tem a primazia, pois enquanto os outros têm ao seu dispor apenas um órgão de pensamento, a cabeça ou o coração, o artista tem cinco. É verdade que há uma especialização. Artes visuais, artes auditivas. Artes tácteis, já menos habituais. Depois, talvez fosse melhor falar em artesanato olfactivo e gustativo. Seja como for, o artista, mesmo que o seu produto se concentre num dos sentidos, parte da pluralidade sensorial. Do monismo da razão, do monismo do amor, passa-se ao pluralismo da sensação. E será este pluralismo primordial que acaba por tornar a arte a mais enigmática das actividades humanas. Hegel pensava que o Absoluto se manifestara primeiro na arte grega, depois na religião cristã e encontrava o seu elemento na filosofia, isto é, na filosofia dele, Hegel. Ora, o conceito, mesmo que dialéctico, é uma abstracção. Só a arte, no seu pluralismo, manifesta a vida desse absoluto. Como se vê, adormecer diante do computador não é coisa recomendável. Uma pessoa acorda com a cabeça cheia de pensamentos sem préstimo e sem sentido, o que é ainda pior.

quinta-feira, 17 de outubro de 2024

Uma questão de coragem

Em 1984, o filósofo político francês Julien Freund publicou uma obra com o expressivo título La Décadence. Quando trata da atmosfera de decadência nas literaturas contemporâneos (é necessário não esquecer que o livro foi publicado há 40 anos), escreve: O que me parece digno de relevo é que o artista e o escritor têm muitas vezes, devido à sua sensibilidade específica, uma intuição premonitória das ameaças que podem pesar sobre nós no futuro, ou, antes, tornam-nos sensíveis a fenómenos que por diversas razões evitamos aprofundar e dos quais não queremos tomar uma consciência demasiado precisa. Imagino que a grande arte e a grande literatura o sejam porque lidam com esse perigo ainda escondido. O que está em jogo não é uma questão de profecia, mas de coragem. O artista e o escritor não são profetas, nada lhes foi revelado para ser transmitido aos homens. Eles acedem às mesmas informações e intuições que estão disponíveis para todos. Mas, como Freund salienta, o homem comum evita confrontar-se com o conteúdo dessas informações e intuições. O artista e o escritor olham-nas de frente e é esse olhar frontal que se transforma em obra que parece premonitória. Não é o confronto com o desconhecido que torna grande uma obra, mas é a coragem de encarar aquilo que todos podem ver, mas de que ninguém quer tomar consciência. Precisamos de cuidar dos nossos negócios e o melhor é tomar por divisa um dia de cada vez.

quarta-feira, 16 de outubro de 2024

Um intervalo

Por vezes, há períodos da vida em que esta parece um intervalo. São vividos na expectativa de chegar a hora em que tudo é mais sério, mais decisivo. Quando, porém, chega essa hora, descobre-se que a energia foi consumida pela expectativa. Os intervalos são muito mais cansativos do que se supõe. Sei disto, continuou o padre Lodo, não apenas por experiência própria. O confessionário é um lugar de grande aprendizagem. Pensava, respondi, que os padres esqueciam o que ouviam, mal acabavam a função de confessores. Afinal, as confissões são motivo de meditação e aprendizagem, acrescentei. O padre Lodo riu-se. Não podemos apagar a memória, apenas temos o dever de estar calados. Um dever de silêncio, o que não é pequena provação para muitos. Passa-se alguma coisa? A minha pergunta foi recebida com um curto silêncio, depois ouvi um porquê. Porque só costuma ligar ao fim-de-semana e ainda estamos a meio da semana. É verdade toda a gente está presa nos hábitos, ninguém escapa. Apeteceu-me ligar hoje, disse ele. Talvez esteja num daqueles tempos de intervalo e sinto que isso é, na minha idade, ridículo. A única coisa séria e decisiva que posso esperar é morrer. Não exagere, respondi. Não, não estou a exagerar, ouvi. Na verdade, temo que a minha vida se tenha tornado um intervalo até à hora em que deixe este mundo. Falta-me qualquer coisa, algo que seja mais sério e decisivo. Talvez falte a todos, asseverei sem grande convicção. Talvez, respondeu, também ele sem convicção. Desligou sem me perguntar pelos netos. Fiquei preocupado.

terça-feira, 15 de outubro de 2024

Pequenas teorias

A certa altura, num dos seus ensaios, Robert Musil escreve: E, agora, exponhamos uma pequena teoria. Não interessa a teoria que Musil expõe, mas o facto de ser pequena. Por uma questão de elegância todas as grandes teorias, na sua capacidade explicativa, devem ser pequenas, na dimensão. Isto não significa que todas as pequenas teorias sejam grandes explicações. Por aqui, serve de exemplo, não faltam pequenas teorias, mas não ajudam a compreender seja o que for. Nelas não se dão grandes explicações. Para ser mais exacto, não se dá qualquer explicação. As pequenas teorias que aqui são semeadas são exercícios contemplativos, mas sem objecto de contemplação. Valem pela sua enunciação e, na verdade, não possuem qualquer sentido. Têm uma sintaxe, mas não uma semântica. E tudo isto que se disse acerca das pequenas teorias que, por vezes, este narrador propõe é também uma pequena teoria. Seja como for, vale mais meditar sobre isto do que sobre os documentos que preciso de levar às finanças – julgo que agora se chama autoridade tributária – ou como fotografar o número de série da caldeira aqui de casa. Pequenas tarefas, para as quais não possuo nem pequena nem grande teoria. Chove e há beleza nessa ocorrência, o mundo torna-se mais real e a vida mais grave. O mau tempo infunde gravitas na existência. Também isto é uma pequena teoria.

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

Devaneio

Chegado a casa, preparei-me para ir fazer a minha caminhada. Estava nesses preparos e desatou a chover. Não, não começou a chover. Desatou é a expressão exacta do acontecimento. A chuva é composta por cordas líquidas, como um observador atento poderá comprovar. Há cordas mais grossas, há mais finas e, como não podia deixar de acontecer, há as que não são grossas nem finas, mas, talvez por serem virtuosas, ficam entre os dois extremos. Pelo menos seria a opinião de Aristóteles se escrevesse sobre a virtude das cordas. Ora, as nuvens não são mais do que grandes, complexos e confusos nós de cordas que se entrelaçam e mantêm o cordame coeso e a flutuar na grande planície dos céus. Quando chove, é porque esses nós se desatam e as cordas vêm por aí abaixo, desejosas de regressar à terra de onde partiram. Toda a chuva é um exercício de regresso de um exílio penoso. O céu não é a casa da água. Não era disto que me propus escrever, mas da facilidade com que troquei a acção pela contemplação. Em vez de agir, pondo-me ao caminho, exercitando os músculos e acumulando pontos cardio, aproveitei a chuva e fiquei a olhar para ela. Ver chover, estando resguardo, não é uma experiência menos rica do que contemplar o fogo numa lareira. Ambas as experiências dispensam a acção e abrem a imaginação ao devaneio, fazendo com que o contemplador entre num mundo que os sentidos desconhecem e a razão ignora.

domingo, 13 de outubro de 2024

Cultivo da indigência

Escrevi um texto para outro sítio que não este e que não vem ao caso. Depois de o escrever, decidi perguntar ao ChatGPT a sua opinião, uma espécie de avaliação. Deu-me uma série de conselhos, pertinentes, reconheço, mas não segui nenhum. Um desses conselhos era sobre um certo acontecimento. Ora, o que diz o ChatGPT? Diz que a explicação é interessante, mas está numa única frase longa e cheia de detalhes. Dividir essa informação em várias sentenças pode torná-la mais digerível. Eis um conselho sensato, na linha de outros que me deu, mas que revela um problema. E esse problema está no lado do leitor e não daquele que escreve. O leitor deixou de suportar frases longas, compostas por múltiplas orações. Não se pense que isso nasceu da influência das redes sociais. O Twitter não tem culpas no assunto, pois o problema é muito anterior. Vem da imprensa. As frases devem ser curtas, para prender o leitor. Talvez em tempos recuados tivesse existido alguém que sonhasse em ter leitores educados que apreciariam a complexidade textual, leitores que teriam prazer em seguir um complexo fio de ariadne que os traria à liberdade da compreensão, pois a compreensão é uma das modalidades da libertação, nem que seja da ignorância. Ora, o que triunfou foi a rapidez comunicacional, a busca por uma suposta transparência que permita tornar os textos digeríveis. O Twitter é o herdeiro, em modo hiperbólico, dessa tradição jornalística. Ora o ChatGPT foi educado – digo-o, literalmente – nessa preocupação com o leitor incapaz de decifrar uma frase um pouco mais complexa. Há todo uma cultura instalada, na qual os chatbots estão a ser socializados, que está mais preocupada com os processos de digestão do que na activação de conexões neuronais. Enfrentar textos complexos treina o cérebro para a complexidade. Lidar com textos simples, pode ajudar a digestão, mas torna indigente a faculdade de pensar.

sábado, 12 de outubro de 2024

Um bom fim

Viviam pouco os poetas românticos. Foi o que pensei ao ler uma breve nota biográfica sobre D. José de Esponceda, um dos mais importantes poetas românticos espanhóis. Viveu entre 1808 e 1842. Em 1840, empreendeu uma viagem entre Gibraltar e Lisboa, de que resultou um relato breve publicado no número 8 de El Pensamiento, de Setembro de 1841. A narrativa tem os seus traços de humor. Uma viagem de barco, claro, uma viagem verídica. Um dos passageiros era um comissário de guerra irritadiço, colérico como um porco-espinho e mais afilado do que uma agulha inglesa. Um outro passageiro, uma mulher, de que Esponceda nunca conseguiu saber a nacionalidade, amaldiçoava com destreza e espírito satânico em todas as línguas do mundo. Era uma torre de Babel quando se entretinha a blasfemar. Ora a senhora era casada com um homem que tinha feito a campanha da Rússia com Napoleão e parecia pachorrento e honrado. Criou Deus poucos homens de menor entendimento. Na viagem, além da exímia e multilingue blasfemadora, havia mais duas mulheres que, segundo o autor viajante, se pertenciam ao belo sexo, era mais pelo sexo do que pela beleza. A comida para a viagem só podia ser excelente, pois as provisões consistiam num bacalhau resistente ao dente como sola de sapato e salgado que nem salmoura. A história, porém, tem um belo fim. Chegados a Lisboa, foram visitados pela autoridade marítima que lhes pediu dinheiro. Ele, Esponceda, escreve: Dei-lhes cinco pesetas, as únicas que tinha, e deram-me de troco duas pesetas que atirei ao Tejo. Não ia entrar numa capital tão grande com tão pouco dinheiro. Ora quando se encontra um bom fim, o melhor é não procurar outro.

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

Inquirições e ocultações

Uma chuva persistente impediu-me de sair para caminhar. Não sou caminhante na chuva, está visto. Será que os nossos longínquos antepassados, digamos de há cinco ou dez mil anos, se abrigavam da chuva? Ou caminhariam sob ela, como se isso fosse a coisa mais óbvia a fazer? Isto levanta uma outra questão. Qualquer um de nós, mal começa a chover, se não tem um chapéu de chuva ou coisa que o substitua, procura de imediato abrigar-se. Contudo, os desportistas, como os jogadores de futebol ou os corredores da maratona, não abandonam a competição e procuram abrigo. Será que o fazem porque neles ainda ressoa uma memória ancestral do tempo em que os homens não se abrigavam da chuva, se é que esse tempo existiu? São estas magnas questões que me atormentam o espírito, agora que se aproxima a hora crepuscular onde o dia e a semana útil morrerão. Neste momento, lá fora uma luz cinzenta ainda mostra o que posso avistar da cidade. Reparo nas acácias. Parecia, ainda em Setembro, que as suas folhas amareleceriam este ano mais cedo. A aparência não se confirma. O amarelo está contido e as folhas continuam num verde exaltante que nem a cinza da tarde consegue toldar. As árvores do bosque da escola ao lado, reparo agora, ainda não cresceram o suficiente para taparem o anúncio luminoso de uma cadeia multinacional de hambúrgueres, que parece estar ali para me espiar. Já do outro lado, um simples pinheiro quase ocultou uma das torres que posso avistar do castelo. A vida é um exercício de ocultações, concluo, embora omita as premissas que levam a tão destemperada conclusão.

quinta-feira, 10 de outubro de 2024

Nobel da literatura

De Han Kang, agora premiada com o Nobel, apenas li A Vegetariana, de que gostei bastante. Como não acompanho as intrigas em torno do prémio, fiquei surpreendido com a atribuição. Até porque a premiada é relativamente jovem, ainda na casa dos cinquenta. Tenho a convicção, talvez errada, de que a generalidade dos Nobel atribuídos na literatura é para autores já em fim de carreira, uma espécie de consagração final. Não será o caso da premiada deste ano. A ideia do prémio é interessante, mas sofre de um defeito. O facto de ser anual tornou o Prémio Nobel da Literatura uma banalidade. A princípio, mesmo durante décadas, isso não se notaria, mas agora que número de premiados é grande, muitos deles já esquecidos, a nobelização terá menos impacto no público do que há cem anos. O primeiro Nobel da literatura foi atribuído ao poeta francês Sully Prudhomme, em 1901. Quem lerá ainda os seus poemas? Imaginemos que o Prémio era dado de cinco em cinco anos. Os vinte contemplados num século formariam uma excepção. Com cem parece que a excepção se aproxima da regra. É uma hipérbole, mas torna patente a banalização de se ser laureado com o prémio. Depois, o impacto editorial torna-se cada vez menor. A atribuição do prémio a Jon Fosse, no ano passado, parece ter tido pouco ou nenhum efeito na velocidade da sua publicação em Portugal. E Jon Fosse é um grande escritor. Como haverá escritores que desejam ardentemente o Prémio, também haverá aqueles que fogem dele. Sartre, por exemplo, recusou-o. Pasternak foi obrigado a recusá-lo.

quarta-feira, 9 de outubro de 2024

Desreconhecimento

Ao acaso, numa das estantes, peguei um livro. Era de Oswald Spengler, uma tradução de 1980 publicada pela Guimarães, de O Homem e a Técnica. Ao ver o título, pensei por que raio terei comprado o livro se não o li. Ao abri-lo, porém, deparei-me com o livro todo sublinhado e anotado por mim. Uma das páginas brancas de separação de capítulo estava completamente escrita. Reconheço a minha letra. Eu li o livro. Estudei a obra. Mas será que o li mesmo, agora que não encontro em mim vestígio dessa leitura? Mesmo ao ler as anotações feitas pela minha mão, estas são-me estranhas. Uma novidade, apesar de serem esmagadoras as provas de que um dia terei dominado bem o que aquela obra diz. Tornei-me um estranho. Entre mim e mim há um hiato, no qual esse mim anterior se tornou um outro, um radicalmente outro, perante o qual não há reconhecimento. Não se trata de uma desavença como aquela que dá vida a um dos poemas portugueses de que mais gosto, Comigo me desavim / Sou posto em todo o perigo; / Não posso viver comigo / Nem posso fugir de mim. // Com dor da gente fugia, /Antes que esta assi crecesse: / Agora já fugiria / De mim, se de mim pudesse. / Que meo espero ou que fim / Do vão trabalho que sigo, / Pois que trago a mim comigo / Tamanho imigo de mim? O meu problema não é o de Sá de Miranda, pois este ainda se reconhece como inimigo de si mesmo. O meu caso é mais radical e mais triste. Deixei de me reconhecer. Só podemos ser inimigos daqueles que reconhecemos. A inimizade é uma forma, talvez superior, de reconhecimento do outro. Eu, apenas, me desreconheço. Nem para imigo de mim sirvo.

terça-feira, 8 de outubro de 2024

Pathos romântico

Imagino, por vezes, que o mundo teria sido melhor caso o Romantismo nunca tivesse existido. Um mundo onde a ascese da razão servisse para dissolver o espasmo emotivo seria menos dado a grandes perturbações. Quando se celebra o Romantismo sublinha-se a afirmação da individualidade e presume-se a benevolência da subjectividade. Esquece-se, porém, que esse romantismo originou o nacionalismo, ao qual acrescentou a alavanca da emoção e o martelo da paixão. O resultado dessa mistura de emoções, paixões e sentimentos fundados na subjectividade foi simples e objectivo, duas guerras mundiais. O Classicismo e o Iluminismo representavam a rédea curta com que o espírito apolíneo punha ordem no seu irmão, o espírito dionisíaco. Ora, o romantismo foi uma estratégia para Diónisos se libertar da dura disciplina que lhe travava o poder dissolvente inerente à sua natureza. Libertado o deus, o resultado, que ainda não acabou de se manifestar, não foi particularmente entusiasmante. E o problema não está no suicídio do jovem Werther ou do também jovem Simão. O problema está mesmo nos milhões de jovens que enxameiam os cemitérios militares e que não se suicidaram por amor, mas participaram em rituais de suicídio colectivo, criado por um pathos romântico.

segunda-feira, 7 de outubro de 2024

Sensatez e conversão

Quando andei na escola primária, o dia de abertura das aulas era a 7 de Outubro. Na primeira classe, na do meu ano, porém, as aulas começaram a oito, pois sete foi a um domingo. Era um calendário propício à criançada e ainda não consigo perceber por que motivo o meu neto já vai para a quarta semana de aulas. Compreendo que isso seja um alívio para os pais de hoje, mas o alívio dos adultos soa-me a tortura dos mais pequenos. O facto de o começo do ano escolar ser tardio não me impediu de fazer as aprendizagens que tinha de fazer e, estou desconfiado, nada garante que este acréscimo de quase um mês – e talvez não se fique por aqui – não acrescentará nada, do ponto de vista cognitivo, aos alunos. Dar-lhes-á, ainda mais, uma sensação de tédio e o sentimento de que aquilo nunca mais acaba. Pensei isto enquanto fazia a minha caminhada crepuscular. Aproveitei uma aberta e pus-me ao caminho e quando estava mesmo a chegar a casa lembrei-me de que devia comprar nozes. A frutaria é mesmo ao lado. Entrei, comprei nozes e diospiros. De nozes sempre gostei, mas os diospiros é amor recente. Aliás, foi um velho ódio que se transformou em amor, talvez numa paixão. Como se deu essa transformação no meu gosto? Não faço ideia. Foi uma conversão. Paulo de Tarso, a caminho de Damasco, teve uma visão ou audição de vozes e do ódio aos cristãos passou a ter por eles um amor zeloso. A minha estrada de Damasco foi mais prosaica, apenas me converteu à fruta odiada, mas não tive visões nem audições especiais. Hoje é 7 de Outubro, se houvesse sensatez neste país, era hoje que o meu neto começaria as aulas.

domingo, 6 de outubro de 2024

Tigres de papel

Não devia escrever estas coisas aqui, mas não resisti a citar um texto de um homem político que, noutros tempos, inflamou o coração de jovens fogosos, mas que não encontravam quem lhes apagasse o fogo. Espero do autor destes textos e proprietário do blog a caridade da indulgência para com este quase fiel narrador. O homem político é Mao Tse-Tung, alguém que escreveu coisas (sic) com títulos extraordinários, como Uma simples faísca pode pegar fogo a toda a pradaria. Imagino que fosse isso que atraísse os jovens fogosos do Ocidente, que viram nele um deus, que, sabemos hoje, era um deus que não passava de um tigre de papel, uma adaptação de outro título do mesmo homem forte da China, o célebre O imperialismo americano é um tigre de papel. Ora, aquilo que prendeu a minha atenção, foi um título mais prosaico, Conversa sobre questões de filosofia. O texto começa da melhor maneira: Só quando há luta de classes pode haver filosofia. É uma perda de tempo discutir epistemologia à parte da prática. Os camaradas que estudam filosofia deviam ir para o campo. Deviam ir para lá este Inverno ou na Primavera que vem para participarem na luta de classes. Os que não estão bem de saúde também deviam ir. Ir lá não mata ninguém. O mais que lhes acontece é apanharem uma constipação, e se se agasalharem bem não há problema. Não sei a razão, mas isto fez-me lembrar o nosso actual Presidente da República, numa daquelas declarações que faz quando vai ao multibanco ou decide ir comer um gelado. Deixemos, porém, as analogias de lado, pois são sempre enganadoras. Há nestas declarações duas coisas extraordinárias. A primeira liga-se à questão filosófica. Para compreender o racionalismo de Descartes, o empirismo de Locke e Hume ou o transcendentalismo de Kant, não há nada melhor do que ir para o campo, embora, imagino eu, o campo nunca tenha inspirado qualquer teoria epistemológica. A outra coisa é que os camaradas que estudam filosofia – por certo, um equívoco – deviam ir para o campo, não para trabalhar no campo, mas para participarem na luta de classes. Eram coisas destas que incendiavam imaginações no Ocidente, o que é compreensível. Uma razão sensata logo descobriria a infantilidade destas ideias. Só a imaginação, talvez sob efeito de algum psicotrópico, veria nelas um futuro radioso para a humanidade. Ou talvez aquilo que maravilhasse a juventude europeia dos anos sessenta e setenta do século passado fosse o cuidado que o grande timoneiro – era assim conhecido o homem político em causa – tinha com a saúde dos doentes e o agasalho dos friorentos.

sábado, 5 de outubro de 2024

Dia do começo e do recomeço

Hoje é, neste país, o dia do começa e do recomeço. A 5 de Outubro de 1143, começou este país. Como era costume, o início foi uma Monarquia, o Reino de Portugal. Quase oito século depois, talvez porque o país estivesse cansado, isto de acumular séculos exaure as forças a qualquer um, deu-se o recomeço e, como era costume, o reinício foi uma República. Há grandes lições a tirar de tudo isto. O dia 5 de Outubro é privilegiado para começar ou recomeçar qualquer coisa. Se alguém se quiser casar, aconselho o 5 de Outubro, mas se se divorciou e quer recomeçar, nada melhor do que um 5 de Outubro. Começos e recomeços garantidos. A outra lição, mais de índole política, ou melhor, de psicologia colectiva, é que este país é um fiel seguidor da moda. Se a moda é o reino, então ele é um reino. Se a moda muda e se torna republicana, logo ele renasce como república. Nos dias que correm, não há uma querela, a não ser em grupos ínfimos de monárquicos tardios, sobre a questão da república e da monarquia. Felizmente, pois é uma querela sem sentido. Não é a ideia monárquica ou a ideia republicana que nos guiam, é a moda. Se a moda for monárquica, seremos monárquicos. Se for republicana, seremos republicanos. O que diz isto da nossa psicologia colectiva? Diz-nos que somos uma comunidade precavida e que não gosta de contrariar o Zeitgeist. É essa precaução que nos tornou um país de brandos costumes. Eles são brandos porque não são nossos. Usamo-los como quem usa um casaco emprestado, que um dia devolverá. Aqui que ninguém nos ouve, nós nunca fizemos grande questão de ser um reino nem uma república. E nisto reside a nossa virtude.

sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Teoria sonora

Acabei de fechar uma janela. O zunir incansável de um ar condicionado entrava pelo escritório e aninhava-se no recôndito da minha mente, caso eu tenha mente e esta possua um âmago escondido não sei bem onde. Estes barulhos mecânicos são uma prova da existência do inferno, pois todos eles são infernais. Ora, se há coisas infernais, então o inferno existe. Esse inferno manifesta-se onde menos se espera. Por exemplo, no parque infantil aqui em baixo, onde as cadeiras de baloiço, em que crianças, sob o olhar de pais cansados, vão e vêm, rangem como mil belzebus depois de uma noite de copos ou mesmo de sex, drugs and rock ‘n’ roll. Até o meu carro está possuído por um súcubo que o faz arfar de modo despudorado. Para a semana, levo-o à oficina para o exorcizarem. Pode-se pensar que esta ligação entre o ruído mecânico e os ventos infernais é pura especulação de um ocioso, numa tarde de sexta-feira anunciadora da ociosidade do fim-de-semana. Não é. A prova é que o céu – isto é, os poderes celestiais – também têm também a sua sonoridade, na vibração das cordas da harpa, da lira ou da cítara. E aqui reside o magno problema da nossa civilização. Enquanto os ruídos mecânicos rangem, guincham, chiam e resfolegam por tudo o que é sítio, harpas, liras e cítaras escondem-se, como se fossem tomadas pela timidez perante o despudor de um caos mecânico. Um dia destes ainda escreverei um apocalipse.

quinta-feira, 3 de outubro de 2024

A benévola ilusão

Respiro fundo e penso que todos chegamos a um momento em que percebemos que o nosso tempo passou, que já não conseguimos lidar com a realidade tal como tínhamos feito. Nesse momento, percebe-se que se está a mais, e que é tempo de ocupar os dias de outro modo, um modo que a realidade nos permita. Não sei se pensei isto ou se o terei sonhado, pois, como o disse Descartes, não há critério seguro para distinguir o sonho da vigília. Aliás, com o passar dos anos descobrimos que não há critério seguro seja para o que for. O que existe é uma ilusão, a certa altura da vida, em que se é detentor de critérios seguros para o que se pensa e para o que se faz. É essa ilusão que evita que soçobremos num cepticismo contumaz e na mais pura apatia. A natureza, com a generalidade das espécies, foi generosa, pois não as dotou da faculdade de pensar e ligou-as às respostas instintivas que lhes permite sobreviver, sem que possam pensar nisso. Com a espécie humana, a mesma natureza decidiu fazer uma experiência e dotou-a de pensamento. Logo percebeu que a ideia não fora a melhor, pois pensar pode ter as mais funestas consequências para uma espécie que sabe que sabe que sabe que é finita e limitada. Então, essa mesma natureza, compadecida dos homens, deu-lhes a imaginação para fabricarem as ilusões que os prendem à existência, que lhes disfarça mesmo a evidência de que o seu tempo passou.

quarta-feira, 2 de outubro de 2024

Esperança

A saga do código para facultar a quem me entregue a encomenda continua. Ontem, não me entregaram aquilo que anunciaram entregar. Fizeram nova anunciação hoje, decretando a hora da entrega entre as quinze e as dezasseis. Caminhamos rapidamente para as dezoito, e nada de encomenda. Eu percebo bem a pessoa que anda na distribuição. É um pacote com livros e tudo o que se relacione com livros não implica pressa. É coisa de gente ociosa. Para piorar as coisas, fiz nova encomenda na mesma editora. Os três volumes das obras completas de Mário-Henrique Leiria e outros três volumes das Mil e Uma Noites, numa primeira tradução feita a partir dos mais antigos manuscritos árabes existentes. Deixemos estas coisas de lado, tudo se há-de compor, e se os Reis Magos, vindos do longínquo Oriente, conseguiram chegar a Belém, apenas com uma estrela por GPS, também o condutor da distribuidora há-de encontrar o caminho até aqui. Espero, e esperar é um sinal de esperança. Acabei há pouco uma daquelas reuniões em videoconferência, que, por amor à exactidão, se deveriam chamar vídeo-reuniões. Estas coisas acontecem para que os participantes se sintam pessoas modernas, pois seria uma grande tristeza alguém viver em plena modernidade – ou mesmo na pós-modernidade – e não se sentir moderno. Agora, não há livro que não traga em si um marcador de livros. Acumulo-os numa caixa, mas aquele de que mais gosto é um da velha livraria Buchholz. Há muito que não entro lá. E ao pensar nisto, senti-me como um traidor. Tenho de lá voltar um dia destes e levo as minhas netas, para uma visita cultural. Além de livros, há música clássica e música etnográfica, músicas do mundo, por norma, de grande qualidade. Vou caminhar um pouco, antes que chegue o crepúsculo.

terça-feira, 1 de outubro de 2024

Um código por facultar

Aqui estou eu, obediente, à espera. Recebi um SMS de uma transportadora que me informa – talvez me avise, não sei bem – que a encomenda com a referência tal será hoje entregue entre as 15:30 e as 16:30. Enviaram-me um código que deverei facultar a quem me entregar aquilo de que estou à espera. Antecipei a ida à farmácia, de modo a estar bem antes das 15:30 em casa e, neste momento, já passam das dezassete horas. Ainda não consegui facultar o código a ninguém e persisto neste acto de espera. Ainda sugeri, a quem fiz a encomenda, que a enviasse para um ponto de recolha. Seria tudo mais fácil. Decidiram, porém, que estava na altura de testarem a minha paciência e decidiram o contrário do que tinha sugerido, aliás em resposta a uma pergunta que me foi feita. Talvez Portugal seja um país difícil. Por que razão fazem perguntas, se não estão dispostos a ouvir a resposta? Por que motivo estipulam horas que jamais hão-de cumprir? Tenho uma teoria. Esta coisa de fazer perguntas ao cliente ou de estipular horários com algum rigor é uma cobertura de modernização importada do estrangeiro, daqueles sítios em que os clientes são pessoas a ser estimadas e os horários são para cumprir, caso contrário isso tem consequências negativas. Como por aqui não há qualquer consequência, os velhos costumes dum país saído há pouco da Idade Média rompem com enorme facilidade aquela finíssima capa de verniz com que se esconde a autocomplacência perante si e o desprezo pelo outro. Continuo à espera. Precisava de sair, mas se não receber hoje a encomenda, no caso de a virem entregar, vai ser o cabo dos trabalhos para que me chegue às mãos. Continuo com o código e não tenho a quem o faculte.