sexta-feira, 4 de outubro de 2024

Teoria sonora

Acabei de fechar uma janela. O zunir incansável de um ar condicionado entrava pelo escritório e aninhava-se no recôndito da minha mente, caso eu tenha mente e esta possua um âmago escondido não sei bem onde. Estes barulhos mecânicos são uma prova da existência do inferno, pois todos eles são infernais. Ora, se há coisas infernais, então o inferno existe. Esse inferno manifesta-se onde menos se espera. Por exemplo, no parque infantil aqui em baixo, onde as cadeiras de baloiço, em que crianças, sob o olhar de pais cansados, vão e vêm, rangem como mil belzebus depois de uma noite de copos ou mesmo de sex, drugs and rock ‘n’ roll. Até o meu carro está possuído por um súcubo que o faz arfar de modo despudorado. Para a semana, levo-o à oficina para o exorcizarem. Pode-se pensar que esta ligação entre o ruído mecânico e os ventos infernais é pura especulação de um ocioso, numa tarde de sexta-feira anunciadora da ociosidade do fim-de-semana. Não é. A prova é que o céu – isto é, os poderes celestiais – também têm também a sua sonoridade, na vibração das cordas da harpa, da lira ou da cítara. E aqui reside o magno problema da nossa civilização. Enquanto os ruídos mecânicos rangem, guincham, chiam e resfolegam por tudo o que é sítio, harpas, liras e cítaras escondem-se, como se fossem tomadas pela timidez perante o despudor de um caos mecânico. Um dia destes ainda escreverei um apocalipse.

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