Hoje ainda não saí de casa. Há pouco, fui espreitar a Sá Carneiro, mas nem reparei no que se passava naquela avenida. Os olhos ficaram retidos no friso das orquídeas. Durante um tempo, apenas cinco estavam floridas. Quatro delas eram brancas. Não sei se este avanço – também é pujança no porte – associado ao branco é alguma antífona em honra da pureza, talvez uma proclamação sobre a eminência daquilo que não está maculado. Esta é uma linguagem esotérica que os dias de hoje não compreendem, mas isso também não será de admirar. Não cabe aos dias terem compreensão – nem os de hoje, nem os de ontem, ou de amanhã. Era isto que me ocorria enquanto observava com atenção o lento florir das outras, das que são manchadas de múltiplas cores, e concluía que o belo tanto reside no que está puro como no que está maculado, e a beleza é a coisa mais terrível que existe ao cimo desta terra. Ela toca em qualquer coisa que nos desconserta. Por isso, temos de fazer uma longa aprendizagem sobre o modo como lidar com ela. Facilmente lidamos com o bem, o verdadeiro e o justo, mesmo que façamos o mal, sejamos contumazes na mentira e agentes da injustiça. Com o belo, porém, ficamos fascinados, e esse fascínio mergulha-nos nas profundezas obscuras que habitam no fundo da consciência, naquele mar revolto a que se costuma dar o nome de inconsciente, que nos empurra tantas vezes para o mal, a mentira e a injustiça. Na beleza não há utilidade. O bem, o verdadeiro e o justo são úteis, mas a beleza não pertence ao jogo da utilidade. Por isso, será abissal, provoca-nos e afasta-nos. Nunca sabemos se o que sorri nela é a vida ou a morte.
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