Existirá — mas não estou certo — uma incompatibilidade entre a voz poética e a voz filosófica. Eliot, não muito longe do início de As Dry Salvages, escreve: O rio está dentro de nós, o mar está a toda a nossa volta. Bem, não foi isto o que escreveu, quem o escreveu foi o tradutor. Ele escreveu: The river is within us, the sea is all about us. Dito isto, o poeta continua, como se tudo fosse uma evidência que ele, ao escrever, traz à luz para que todos vejam. O filósofo será cego, pois, de imediato, ficará preso na proposição “O rio está dentro de nós.” Meditaria sobre como ele teria entrado em nós ou se, por acaso, teria nascido em alguma parte esconsa do nosso ser. É um filósofo que já tem um apetite de cientista. Medita, mas inclina-se para a observação empírica — o que é um risco tremendo, pois, se insistir nessa inclinação até que se dê a queda, pode descobrir que não há nenhum rio que nos habite, que a proposição de Eliot tem uma natureza metafórica: nenhum rio pode estar dentro de nós. Contudo, se nos observarmos, descobrimos que em nós está qualquer coisa líquida, fluida, qualquer coisa que anseia pela foz, pelo mar onde se dissolve, fundindo águas com águas. O rio pode ser o desejo que nos habita. O desejo está dentro de nós, e o seu objecto está todo à nossa volta. Mas não foi isso que Eliot quis dizer. O que ele quis dizer foi apenas: The river is within us, the sea is all about us. Caso quisesse ter escrito outra coisa, tê-lo-ia feito. Escreveu que o rio está dentro de nós e, depois, esqueceu-se, durante toda a longa estrofe, desse rio, mergulhando no mar. Talvez o rio fosse o próprio poeta que desagua no poema. Isto, porém, são especulações ociosas de quem está a despedir-se da semana útil com as inutilidades que profetizam o fim-de-semana. A luz solar rompeu o cerco das nuvens e os raios crepitam no telhado do pavilhão da escola aqui ao lado. São pequenas explosões invisíveis, em número incontável, mas cujo efeito reverberante atinge os meus olhos e faz saltar em mim uma pequena faísca de júbilo, apesar do troar inquieto do vento nas persianas. Nas varandas do prédio em frente, uma assembleia de anjos discute, mas não consigo perceber o que dizem. O discurso tem um ritmo que anuncia a eternidade, e a voz que o pronuncia é sempre grave. São anjos barítonos e anjos baixos, nenhum deles é tenor. Sabem que eu estou a vê-los, mas não se importam. O assunto que tratam não me diz respeito e, como tal, não consigo perceber as suas palavras; jorram das suas bocas como se fossem rios muito antigos à procura de um mar profundo que as receba. Tudo isto, porém, é falso. Os anjos estão lá e discutem, mas não existe nenhum prédio em frente.
Sem comentários:
Enviar um comentário