O mundo exterior invade-me o escritório: o grupo musical da escola secundária vizinha teima em ensaiar música dos anos sessenta e setenta do século passado, enquanto um bando de adolescentes ocupa o tempo, com o vozear que lhe é próprio, antes de entrar para o instituto de línguas. Não sei o que é pior; talvez nenhuma das coisas seja um mal em si mesma — só a sua conjugação se torna um pouco disruptiva. Num dos textos sobre cultura, Antonio Gramsci diz, não sem cândida inocência: a filosofia da práxis não tende a manter os «simples» na sua filosofia primitiva do senso comum, mas, pelo contrário, a conduzi-los a uma concepção superior de vida. Polemizava com aquilo que seria a filosofia católica, a qual, depreende-se, desejaria manter os simples na sua simplicidade. O equívoco de Gramsci reside no pressuposto de que os simples querem abandonar a sua simplicidade e o doce conforto do senso comum. Gramsci morreu em 1937, e a denominada filosofia da práxis ainda não tinha feito a prova do tempo. Talvez hoje Gramsci tivesse menos ilusões. Pensa-se sempre que a simplicidade dos simples — para nos mantermos fiéis ao jargão do pensador e político italiano — se deve a uma estratégia dos opressores, da qual a filosofia católica seria um instrumento. Quando as sociedades se abrem à possibilidade de os simples saírem da sua simplicidade, são eles que gritam contra quem os queira tirar desse lar, onde se sentem, verdadeiramente, chez-soi. Quem ler com atenção a célebre Alegoria da Caverna percebe que já Platão tinha percebido isso. Ora, Nietzsche, na sua relação intempestiva e destrambelhada com o cristianismo, disse que este não passava de um platonismo para o povo — e nisso terá alguma razão. Isto permite afirmar o seguinte: se Platão percebeu que o desejo dos simples é manterem-se na sua simplicidade, então também o cristianismo o compreendeu. Corolário: a filosofia católica percebeu muito melhor o desejo dos simples do que a filosofia da práxis. Os simples não desejam uma concepção superior de vida, mas ouvir umas músicas do seu tempo de juventude ou deixar o som vibrar com vigor nas gargantas, se vivem na simplicidade da adolescência. Tenho de ir com o meu neto ao parque infantil.
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