Durante séculos, pensei ao acabar uma tarefa que tinha entre mãos, as pessoas confessavam-se para aligeirar a consciência e acertarem contas com o bom Deus. Era um assunto religioso, tratava dos negócios da alma e da vida no além. Agora a confissão tomou conta das vidas profissionais sobre a forma de auto-avaliação. Os confessados, todavia, já não se interessam pela salvação da alma nem pelo além. Confessam-se para salvar o pêlo e mostrarem que, num mundo onde transborda o mérito, eles são merecedores, não do céu, mas de uma daquelas recompensas que fazem lembrar a cenoura que se deve pôr à frente dos burros, para que estes se tornem diligentes. O propósito destas confissões é mesmo – meditei, enquanto olhava para as estranhas configurações das nuvens no céu – mostrar que somos excelentes burros e que merecemos se não a cenoura, pelo menos um rabanete. Nas velhas confissões – um dos pássaros meu vizinho não se cala, não sei se estará a confessar-se em voz alta – expunham-se as chagas da alma, os deméritos da vida, a podridão em que as inclinações do corpo depunha o paroquiano. Agora, exibe-se a imaginação no seu poder criador de feitos e milagres. Os confessados de hoje são todos heróis do trabalho e não pecadores contumazes. Burros de carga, para usar uma linguagem coloquial. Não tarda e começo a zurrar.
quinta-feira, 20 de junho de 2019
quarta-feira, 19 de junho de 2019
Manuscritor e profetas da desgraça
Li que foram descobertas mais duas terras. Fiquei apreensivo, apesar da notícia já poder ser antiga. Agora é moda andarem a descobrir terras por dá cá aquela palha. Percebo que os astrónomos tenham de passar o tempo de qualquer maneira, mas descobrir terras não me parece a mais honrosa. Basta olhar para esta que nos coube e afastar, por uns instantes, a cortina das belas paisagens e das boas acções, para logo se ter uma ideia real do que é uma terra. Um sítio que não se recomenda nem a um inimigo. Por falar em coisas pouco honrosas, também eu tive de ir comprar um material de escrita, pois os próximos dias vão obrigar-me a voltar a escrever manualmente. Numa era tecnológica como a nossa, escrever manualmente é prova provada de que se é um indigente de alto calibre. Além do mais, fico com dores nas costas. Pensando nisso, após comprar o material de escrita, um material reles e barato, fui comprar uns analgésicos. Uma pessoa pode ser indigente, mas precavida. Uma coisa, porém, posso assegurar. Escrever manualmente, ainda o farei, apesar de contrariado, mas nunca me apanharão a descobrir terras, a focar telescópios em estrelas e exultar de alegria porque houve uma intercepção na radiação luminosa, por causa de uma miserável terra passar, ofegante e mal educada, em frente da estrela. Manuscritor, ainda vá que não vá, agora profeta da desgraça, nunca.
terça-feira, 18 de junho de 2019
Capital de distrito
Por motivos profissionais, seria lícito pensar que essas razões são penitência por alguns pecadilhos veniais, tive de ir à capital de distrito. Não há nada como capitais e o país está cheio delas, desde as dos distritos até à do fumeiro ou a dos caracóis com urtigas. Se esta ainda não foi criada, certamente sê-lo-á a breve prazo. Sob o céu cinzento a capital do meu distrito estava bisonha, exaurida, bocejava a torto e a direito. Mal escrevo estas últimas palavras o word sublinha-as a verde e informa-me, obsequioso, que formam uma expressão idiomática da linguagem informal. Eu agradeço e o software responde-me com um imperativo hipotético: Pondere o emprego de uma expressão alternativa. Eu ponderar, posso ponderar, mas não deixo de constatar que o mundo se tornou um lugar onde fervilham conselheiros para tudo e para nada. Voltando à capital, lembro-me como ela era garrida e animosa para os olhos que eu tinha na infância e ia lá para ver parte da família. Os olhos envelheceram e a cidade, apesar das inovações no trânsito e a proliferação de rotundas, envelheceu com eles, levando-me a família e os sítios que, na altura e sem o saber, amava. O mundo poderia ser perfeito, mas há nele uma aposta firme e obstinada na imperfeição.
segunda-feira, 17 de junho de 2019
Estado do tempo
O tempo está mesmo a pedir chuva, pensei. Fui consultar um site de meteorologia e anuncia-se por lá
que ela cairá nos próximos dias. Lembro-me, quando era adolescente, de algumas
pessoas mais velhas se preocuparem excessivamente com o estado do tempo. Havia
uma espécie de ritual na escuta do boletim meteorológico na Emissora Nacional
ou em assistir, no fim do telejornal, à sua emissão na televisão, onde alguém,
comentando uma carta cheia de curvas e sinais esotéricos, anunciava a boa ou má
nova do tempo por vir. Talvez fosse um exercício para determinar o que deveriam
vestir no dia seguinte, imaginava então. Hoje penitencio-me por esses juízos
precipitados. Também eu comecei a interessar-me pelas informações acerca do
estado do tempo, embora nunca pense no que vá vestir amanhã. A minha nova tese
é que o interesse pela meteorologia é um hobby
que se desenvolve a partir de certa idade. Até a esse momento de viragem na
vida, tanta faz que faça sol ou chova. Passada a fronteira, as coisas mudam e
começamos, primeiro de forma encapotada e depois quase maníaca, a consultar a
meteorologia. Principiámos, por certo, a detestar – ou a temer – as surpresas.
domingo, 16 de junho de 2019
Domingos
Os domingos são dias óptimos para surgirem salvadores e venderem-se técnicas de salvação. Na verdade, passam-se poucas coisas ao domingo e a imaginação, fora do controlo que o ganhar a vida impõe, desata a fantasiar. Mesmo há pouco, num dos grandes jornais, encontrei um novo salvador, com uma teoria que nos há-de trazer a definitiva redenção. Para memória futura, fica aqui o registo que o encontrei, que li a prosa remidora. Também é verdade que encolhi os ombros e fui dar uma volta pela cidade. Esta insiste em não encontrar quem a salve e vai enfezando sob o sol. As coisas nunca são como os homens as querem, pensei, enquanto deixava o carro deslizar pelas ruas. As tardes de domingo sempre foram especialmente melancólicas por aqui. Não porque no outro dia seja segunda-feira, mas apenas porque é domingo e as ruas estão desertas, as pessoas fugiram ou mancomunaram-se para criar um ambiente de irrealidade insuperável, como se esse fosse o cenário ideal para uma distopia. O calor é aceitável, valha-nos isso.
sábado, 15 de junho de 2019
Falta de palavras
Uma das coisas que me acontece com frequência é esquecer-me da palavra que estou prestes a proferir. No momento em que a ia mobilizar, ela furta-se à tarefa, foge de mim e, por mais que corra atrás dela, não a consigo apanhar. A sensação com que fico é desagradável. A ausência da palavra é uma lacuna no saber, porque não é apenas o som que me escapa é também aquilo que ele evoca. Estas lacunas devido ao passar dos anos, porém, são menos graves que outras. Olho pela janela e vejo um arbusto cheio de flores que me parecem hesitar entre o rosa e o salmão. Não tenho, todavia, palavra para o designar. Esta falta de palavras para dizer o que se vê pesa-me mais que o esquecimento, mostra-me como eu passo pelas coisas com sobranceria e desdém, sem querer saber-lhes o nome. E se não sabemos o nome delas como falar delas, sem lhes faltar ao respeito? Um pequeno pássaro poisa no arbusto, e é tudo o que a minha pobre linguagem consegue dizer. Deveria passar o tempo a fazer listas dos nomes da flora e da fauna, ou do mobiliário ou, mesmo, dos tecidos. Como se pode falar do mundo se não se tem palavras para ele?
sexta-feira, 14 de junho de 2019
Segundas naturezas
Um pequeno pardal estava pousado no muro da varanda. Parecia
olhar, inclinando a cabeça, para o abismo que havia diante dele. Por vezes,
recuava, com leves estremeções das asas, mas logo se aproximava da borda.
Sentado, olhava-o e perguntava-me se ele saberia voar, se estaria ferido. A ave
recuava um pouco, abanava as asas e dava novos passos para o precipício. O
vento fazia-lhe tremer as penas. Tanta hesitação era sintoma de uma incerteza,
de uma falta de confiança nos seus poderes. A cena prolongou-se por alguns
minutos, até que, num súbito impulso se atirou da varanda para o espaço aberto
diante de si, estendeu as asas, bateu-as e desapareceu. Encontrou-se, naquele,
instante consigo mesmo, pensei. Não tinha outro remédio, a não ser a morte. Aos
homens, porém, é-lhe dada uma terceira hipótese entre encontrar-se consigo mesmos
ou perecer. A de viverem num limbo onde a hesitação e a contingência se tornam a
sua natureza. Não voam nem morrem, ficam a olhar o precipício encolhidos.
Talvez seja isso a natureza humana, uma longa hesitação. As sextas-feiras fazem-me
mal. O pássaro voou, mas eu apenas me deixo divagar, enquanto uma pilha de
livros se ergue perante mim e uma varejeira, que aproveitou o descuido de uma porta
de varanda aberta, choca com o vidro para retornar aos espaço livres, onde
tecerá o seu império. Vou abrir-lhe a janela.
quinta-feira, 13 de junho de 2019
Passar o tempo
Junho progride sem glória nem ignomínia. Vai em passo desengonçado e arrasta consigo corpos, casas, ruas, as memórias que começam a desvanecer-se ou os desejos, tomados por súbita aquietação. Têm sido dias ventosos, oiço dizer. Uma mulher confirma a constatação da outra, enquanto passam por mim e se afastam, logo sendo devoradas pelo espaço onde caminham e pelo tempo que passa. Observo os carros da avenida. Alguns aceleram para travar bruscamente ao aproximarem-se das passadeiras, outros seguem vagarosos, enquanto os seus ocupantes devaneiam, como se ainda estivessem naquele limbo que faz a ligação entre o sono e a vigília. Também eu me sinto nesse limbo. Mantenho os olhos abertos, mas a minha vontade é de correr para casa e deixar-me adormecer. Contenho-me e luto contra o demónio da preguiça. O dever chama-me, digo sem ironia e rio-me. Por motivos terapêuticos, comecei por rir-me das coisas que fazia. Agora, sem esperança de cura, rio-me de mim. Cada um passa o tempo como pode.
terça-feira, 11 de junho de 2019
Distracção
Peguei há pouco no romance O Beijo ao Leproso, de François Mauriac. Ainda não o vou ler,
observo-o apenas como objecto físico. É um velho livro da Colecção Miniatura da Edição «Livros do Brasil» Lisboa. Não tem
data, um acidente corrente até certa altura na edição portuguesa, mas o papel
está muito amarelado. O livro, comprado há pouco, nunca foi lido. As páginas
ainda estão coladas por um pequeno lacre branco. A capa e a contracapa
apresentam sinais de sujidade, talvez por terem estado muito tempo em
exposição. Não sei se o hei-de abrir. Tenho a sensação de que, quando acabar de
o ler, todas as folhas estarão descoladas da frágil lombada e hão-de cair para
me obrigarem a restituí-las à ordem. Agrada-me, porém, a estética da capa. Enquanto
penso em todas estas coisas, penso também nos motivos que arranjo para me
distrair. O sol continua, para minha felicidade, anémico, uma luz aguada lava
paredes e telhados, embate nas árvores para que sombras sejam projectadas na
terra, como se fossem reflexos das copas. Não me apetece ver ninguém, mas não
tarda haverá gente à minha espera. Não há distracção que nos salve daquilo que
tem de ser.
segunda-feira, 10 de junho de 2019
Fora do paraíso
Para fazer uns escassos 100 km, utilizei, para além de um IP, quatro auto-estradas. Estas coisas nunca deixam de me maravilhar e não posso deixar de agradecer aos fundos europeus a misericórdia que têm tido connosco, poupando-nos àquelas viagens homéricas, em que para se fazer aquilo que fiz hoje em bem menos de uma hora, quase se tinha de partir na véspera. Talvez seja para usar tantas auto-estradas que existem feriados como o 10 de Junho. Cheguei ainda cedo, com a cidade banhada por uma luz solar anémica, de tonalidade esbranquiçada, um ar fúnebre. Que peçonha lhe terão dado não faço a ideia. Uns quantos emails caídos fora de tempo lembram-me que a realidade volta amanhã de manhã e o melhor será preparar-me para ela. Respiro fundo, olho para o arvoredo agitado pelo vento e enfrento com denodo a melancolia que se desprende da luz da tarde. Nunca me prometeram que a terra, mesmo com auto-estradas, seria um paraíso.
domingo, 9 de junho de 2019
O contra turista
Deveria
estar a ver o ondular do oceano, sentado numa esplanada, fingindo ser um
turista contumaz. Não estou, há muito que me descobri sem alma turística, coisa
de que não paro de me penitenciar. Encontrei há anos, numa romance de Xavier de
Maistre, o meu ideal de viajante. A literatura não é coisa que faça bem a
ninguém. O título iluminou-me: Viagem à
Volta do Meu Quarto. Li o livro com voracidade, como se tivesse descoberto
no jovem oficial detido no seu quarto uma alma gémea. Sei que isto parece inusitado,
num tempo em que não há quem não viaje, não corra Ceca e Meca, não tenha aventuras
que só o turismo permite para gáudio dos ousados calcorreadores do mundo, que
hão-de contar, sem falha de pormenores reais e inventados, as mil aventuras que
o mundo lhes proporcionou. Tudo para desgraça do ouvinte que, tomado por uma educação
caída em desuso, escuta silencioso, sorrindo como quem faz dura penitência. Eu
não tenho aventuras turísticas para contar, a não ser as viagens sentado à
minha secretária, coisa que omitirei para desprazer dos leitores ávidos de
novidades. O oceano espera-me, mas eu não me espero no oceano.
sábado, 8 de junho de 2019
O começo do futuro
Pego na National Geographic
de Abril e abro-a ao acaso. O tema é as cidades do futuro e desenrola-se à
minha frente um sem número de utopias que nos hão-de salvar da perdição. Fecho
a revista. O futuro cansa-me e mais ainda os profetas, os planeadores e todos
os que têm uma redenção fácil ali mesmo à mão, pronta para nos retirar do
purgatório, ou mesmo do inferno, em que vivemos. Talvez a minha cidade também
tenha um futuro, o futuro de não ter futuro e, assim, se arraste como uma
tartaruga, lenta e pausadamente, sabendo que tem todo o tempo do mundo e que,
por mais vagarosa que seja, há-de sempre vencer o veloz Aquiles. Não sei como é
que a revista veio parar onde está, mas também não me interessa o enigma. Algum
dos filhos a trouxe e a deixou por ali, também ele já exausto de futuro. Os sábados
que têm uma segunda-feira de feriado à sua frente são dias esplendorosos.
Enrolo-me neles e deixo passar as horas, vejo-as desfiarem-se e desaparecerem
nessa garganta funda que é o passado. Nos jornais descubro que, em Nova Iorque,
uma centena de seres humanos se despiram para protestarem contra a censura dos
mamilos femininos no Facebook. Fico mais tranquilo, o mundo, apesar do futuro,
continua a ser o que era. Uns vestem, outros despem. Talvez vá dar uma volta e
procurar o lugar onde, aqui mesmo, começa o futuro.
sexta-feira, 7 de junho de 2019
Os outros
Sentado à secretária, bebo café. Há muito que troquei a errância pela rua em demanda do sítio onde o líquido negro me fosse servido pela comodidade de não sair de casa. Tudo na vida, constato de imediato, conspira para que nos apartemos dos outros, que cortemos o fino arame que nos vincula e faz partilhar crenças e aspirações. Noutros tempos, os outros poderiam ser obstáculos ou aliados, hoje são apenas aqueles que não estão aqui, e o facto de se manterem à distância é motivo se não de júbilo, pelo menos de verdadeiro alívio. Os pássaros meus vizinhos não se calam, parecem repetir, inclementes e obstinados, a mesma sequência de sons, como se quisessem que a mensagem fosse percebida e o seu sentido não fosse vítima de distorções. Para eles ainda parece que existem outros, eu sou quase uma mónada, mas a palavra provocou-me de imediato um refluxo gástrico. O pássaro volta a cantar, enquanto termino o café e sussurro que preferiria ser um grão de areia do que uma mónada. A inércia é um belo exercício.
quinta-feira, 6 de junho de 2019
Uma ilusão
Chove. O vento agita a tarde vestida de cinza e rouba-a à
melancolia dos dias quentes e sem história. Nas persianas fazem-se já sentir as
indisposições atmosféricas, uma depressão a que deram o nome de Miguel, em
honra do temível arcanjo, espero. Recordo as grandes chuvadas de Junho, as
saraivadas indispostas que deixavam as ruas cobertas de granizo e as vinhas
destroçadas. Por vezes, eram acompanhadas por grandes trovoadas, uma atmosfera
tensa e um desejo irracional que tudo desabasse, mas que, por fim, se pudesse
respirar livremente. Com ou sem depressão, a vida continua. Prendem-me à
secretária afazeres inadiáveis, que vou cumprindo com zelo e sem prazer. Um
cedro balança, carros passam, enquanto observo os livros que se acumulam nas
estantes, muitos dos quais não terei tempo para ler. Sinto irritação, não
porque os não vá ler, mas porque ainda julgo que não os ler é uma perda
irreparável. Uma ilusão nefasta.
quarta-feira, 5 de junho de 2019
Insistência
A tarde de voz rouca e agreste desfila como se fosse um
girassol entontecido pela luz. Frases destas enfureciam uma certa seita de
filósofos. Destituídas de sentido, diriam os pensadores tomados pela raiva,
dedos apontados, acusação sem direito a defesa. Como eu os compreendo. Também
os sons da bateria vindos de algum evento festivo aqui perto me chegam
destituídos de sentido. Pressinto o esforço do baterista, o movimento dos
músculos, a cadência das baquetas ao chocar contra pratos e tambores.
Definitivamente, a percussão nem sempre me cai bem. Acontecem as coisas mais
estranhas nesta terra onde nada acontece. A semana desenovela-se com
indiferença. Já esqueceu a segunda e a terça, não tarda aniquilará a quarta. O
baterista ensaia um solo, mas logo desiste. Há pouco corria uma aragem fria,
agora é uma nuvem que tapa o sol. Os músicos insistem e imagino que os ouvintes
resistem. Tocam êxitos do rock dos anos sessenta ou setenta, e eu, suspendendo
o meu ressentimento e incómodo, fico extasiado perante o engenho de quem tenta
parar a roda do tempo e imagina que tem vinte anos e uma vida pela frente. Não
tem, mas também não se cala.
terça-feira, 4 de junho de 2019
Grafias
Olho a capa de uma velha revista e, de súbito, revela-se toda
a perfeição encoberta no limbo do passado. Não por acaso há pretéritos
perfeitos e até mais que perfeitos, apesar de também os haver imperfeitos, como
certas capelas na Batalha. Todas as famílias têm as suas ovelhas negras, foi, à
falta de melhor, a explicação que me ocorreu. A revista, publicada em MCMXXX
pela Litografia Nacional, tem por título Monumentos de Portugal – Cintra. Aí
está toda a perfeição. Que diferença entre a velha Cintra e a Sintra de hoje. O
leitor pode objectar, não sem alguma razão, que a actual é marcada pela dupla curvatura
da linha, ora para trás ora para a frente, de um esse que se contorce, como se
a vila quisesse, nestes tempos de funâmbulos, moldar-se à instabilidade acidental
de qualquer turista. A concavidade da velha Cintra tem, porém, outro carácter.
O cê está ali disponível para acolher dentro de si todas as outras letras e
fechar-se num mistério insondável, que nenhum intruso pressentirá. Enquanto
oiço a algazarra vinda de uma das escolas que há por aqui, medito que só os desavisados
pensarão que a grafia das palavras é coisa neutra, destituída de significado e
das mais terríveis consequências.
segunda-feira, 3 de junho de 2019
Agustina Bessa-Luís
Afinal, também os imortais morrem. Foi o que me ocorreu ao
tomar conhecimento da morte de Agustina Bessa-Luís. Em tempos, tive com os
livros dela uma relação complexa, um misto de fascínio e ódio. Há na sua
escrita uma crueldade enorme que coloca o leitor de cócoras perante o seu
talento. Lê-la era ao mesmo tempo um grande prazer e um exercício de
humilhação. Ao voltar da página, na luz de uma frase, brilhava um estilete que
deslizava sobre a pele do leitor para se enterrar no lugar de onde brota a
vaidade. Há uns anos conheci alguém que vociferava contra todos aqueles que,
como o inútil que escreve estas palavras, julgavam a escritora genial. Uma
idiotice, asseverava. Como é possível julgar genial alguém que não passava de
um Camilo requentado, uma escritora do século XIX? Esqueci o nome e o rosto
dessa pessoa e nunca dei por que tivesse dado à luz a escrita que haveria de
iluminar o século XXI. Um dia destes voltarei aos romances de Agustina, agora
que as ilusões juvenis murcharam e a realidade crua desceu sobre mim. Por
certo, já não os jogarei ao chão e à parede, como, despeitado e preso ao
feitiço da sua escrita, cheguei a fazer. Mesmo quando os pássaros meus
vizinhos cantam, Junho é um mês difícil.
sábado, 1 de junho de 2019
Tagarela
O culpado de tudo isto é o pobre do Coleridge, caturrei,
que ensinou aos leitores que deveriam suspender a descrença quando lêem qualquer
ficção. Um péssimo trabalho, o do poeta inglês, que gerou mais equívocos do que
qualquer outra patranha que a literatura inventou. Agora tendem a confundir-me com
quem escreve estes textos e atribuir-lhe os pensamentos que são meus. Entre mim
e o autor há uma desconformidade tal que há dias e dias que passamos um pelo
outro e nem trocamos um olhar quanto mais uma saudação. Desconfio que o tipo
nem me suporta. Eu, para dizer a verdade, dispenso de bom grado o convívio, mas
é triste para mim esta confusão, rouba-me a identidade e atribui ao tolo do
autor as descobertas, sensações e exalações que são minhas. Se fosse ele a arvorar-se
dono do que digo e sinto ainda o acusava de plágio, mas ele é burro velho e não
cai na esparrela. Remete-se ao silêncio e deixa-me tagarelar. Tagarela, foi
assim que ele me criou.
sexta-feira, 31 de maio de 2019
Assim-assim
Há por aqui um desassossego pouco habitual numa terra que
caminha lentamente, dobrada ao peso dos séculos, ao correr dos anos sob a
sombra do castelo. Para combater a artrite, o reumático e os sintomas de
alzheimer da cidade, inventaram uma coisa a que chamam feira de época e não
falta quem para lá se apresse, corra, se precipite, fingindo que faz uma
revisitação do passado por meia dúzia de patacos. E é esta ficção pouco
imaginativa que traz em polvorosa locais e forasteiros, aumenta o trânsito e
parece trazer alegria e, segundo dizem, coloca a antiga vila no mapa das festas.
Como se sabe, não há coisa melhor que uma terra animada. Tudo isto faz-me
lembrar aquela história de John Stuart Mill que se conta aos adolescentes sobre
a divisão dos prazeres em superiores e inferiores. Estas festividades, ou muito
me engano, não cabem nessa sábia divisão. Nem são tão rasteiras que degradem
quem nelas participe, nem tão elevadas que permitam alçar o espírito de
quem por lá se perde. São uma espécie de assim-assim que vem e logo se vai, sem
que daí venha grande mal ao mundo. Sobre tudo isto que me rodeia não tenho mais
palavras nem sequer pensamentos. A minha mente também ela é uma espécie de
assim-assim.
quinta-feira, 30 de maio de 2019
Quinta-Feira de Ascensão
O dia da espiga deslizou na mansidão do calor e prepara-se
para se entregar como oblação aos poderes da noite. Por aqui, é feriado
municipal e as pessoas devotaram-se ao ronronar das horas esquecidas dos
antigos rituais. Haverá quem dê uma saltada à Chamusca, terra que combina
espigas e toiros, talvez uma festa arcaica vinda sabe-se lá de onde. Eu fiquei
em casa perdido entre pilhas de papéis, protegido contra o império do sol. Não
me posso queixar de falta de rendimento do dia. Foram inúmeras as inutilidades
que fiz. Há quem diga que estou a ficar demasiado velho, tal o cinismo com que olho
o mundo. Há pessoas muito dadas à hipérbole, é o que eu digo. O mundo é o mundo
e confundi-lo com o paraíso é não ter medida das coisas. Apesar de o vituperar
por desfastio e falta de assunto, tremo só de pensar que há quem queira
transformá-lo num paraíso. Se o mundo fosse um paraíso, hoje não era
Quinta-Feira de Ascensão.
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