Há uma semana que os presépios tomaram conta da sala. A um
canto, está o presépio tradicional embora sem musgo e depois, distribuídos
pelos móveis, múltiplos pequenos presépios que com os anos se foram acumulando.
Já ninguém se lembra como a coisa começou e, verdade seja dita, não foi assim
há tanto tempo. A cada um as suas idiossincrasias. Hoje ainda não saí de casa.
A névoa cobre a terra, oculta o hospital que haveria de se ver da minha
secretária, abre-se num horizonte de cinza contra o qual se recorta o pequeno
bosque da escola ao fundo da rua. O Outono corre para o Inverno, deixando na
memória estes dias que pedem recolhimento. Inopinadamente, enquanto escrevo
isto, a Microsoft informa-me que o meu Office vai deixar de ser actualizado. Recomenda-me
que adquira uma versão mais consentânea com os dias de hoje. Também eu há muito
deixei de ser actualizado e, por mais voltas que dê, não consigo comprar uma
versão mais moderna de mim. Sempre posso usar um daqueles programas gratuitos
alternativos aos da Microsoft, mas no meu caso nem gratuita há uma versão
alternativa. Não porque eu seja uma singularidade, mas porque não há qualquer
vantagem em haver outra versão de mim. A natureza é sábia e usa a frugalidade
para evitar a multiplicação do erro. Tenho muito que fazer. A corveia que me
permite enfrentar a dura necessidade não me dá descanso. Oiço uma música
chamada Ships Along the Harbor. Vejo
o cais, os barcos atracados, o ondulado das águas, sinto o sopro do vento
marítimo e os meus pés a caminhar na humidade do porto. Tudo isto sentado com
uma pilha de papéis na frente para ler. O Natal aproxima-se e ainda não cuidei
da secção dos presentes.
domingo, 8 de dezembro de 2019
sábado, 7 de dezembro de 2019
O deslizar do sábado
O sábado deslizou-me da mão num ápice. Esteve luminoso, mas já se embrulhou num cobertor de cinza e não tarda veste o roupão negro da noite. Se eu fosse o autor destas frases, haveria de pintar a cara de negro. Recordo-me com melancolia do tempo em que as horas subiam e desciam a encosta do dia com um passo tão vagaroso que parecia haver uma suspensão do tempo. Era uma antevisão da eternidade, mas nessa altura a eternidade não me interessava para nada e aquilo que mais queria era que o tempo passasse até àquela hora em que algum prazer, modesto que fosse, esperasse por mim. Pelo acumular de pretéritos imperfeitos do conjuntivo só posso suspeitar que mesmo para um prazer modesto o desejo era grande. Não devia entregar-me a hermenêuticas gramaticais que raramente levam a bom porto. Hoje comprei um bolo-rei, o primeiro da época. Confesso que me tornei desleal ao rei e, por norma, presto vassalagem à rainha, desde que esta saiu do tabuleiro de xadrez para se transformar em bolo de Natal e Ano Novo até aos Reis, mas hoje as rainhas não estavam disponíveis. Muito gente abomina a fruta cristalizada. Eu sei que é uma grande xaropada, mas condescendo com ela e não sinto que, ao comê-la, os parentes sejam arrastados pela lama. Também não devia usar expressões ao gosto popular. Ainda por cima é o segundo não devia que uso. Talvez devesse – mais um pretérito imperfeito do conjuntivo – psicanalisar-me para descobrir o trauma que me leva a repetir o desconsolado não devia.
sexta-feira, 6 de dezembro de 2019
Passar para a página seguinte
Crianças de um jardim de infância das redondezas aterraram no parque aqui em baixo. As vozes são agulhas que se espetam pelos ouvidos, até a cabeça explodir. A quietude das tardes de sexta-feira foi imolada ao deus da infância. Como em tudo, também aqui os deuses estão em desacordo. Enquanto o da infância olha com desvelo o burburinho e a verrumante agudeza dos gritos, o da velhice franze o sobrolho e vigia o tumulto com rancor e mal dissimulado ressentimento. Apesar deste ser o melhor dos mundos possíveis, a sua ordem está longe da perfeição. Abro ao acaso um livro e a página pergunta-me, com ar sobranceiro, se as pessoas são responsáveis pelo que fazem. Não sei o que dizer. Se digo que não, serei acusado de irresponsável. Se digo que sim, não faltará quem me chame presunçoso. A solução será passar para a página seguinte e fingir que não se viu qualquer pergunta. As vozes calaram-se, as crianças voltaram para o seu lugar. Na avenida, uma mulher passeia vagarosa um cão. Um carro pára junto à passadeira e outra mulher atravessa-a. Chegada ao outro lado, hesita como se não soubesse o que fazer com o corpo. Decide-se e recomeça a caminhada, presa ao desconforto de ser quem é. Vejo as iluminações de Natal ainda apagadas e lembro-me da tristeza que sobre mim cai sempre que estão acesas. Eu sei que ninguém se interessa pelo Natal, mas as autoridades públicas podiam disfarçar. Logo à noite, terei um jantar natalício. Espero que ninguém se lembre de cantar.
quinta-feira, 5 de dezembro de 2019
Do amor aos adjectivos
A manhã desceu não sem ímpeto a escadaria em direcção aos arrabaldes da tarde. Nos dias em que o Outono se vai desfazendo das suas folhas mortas e o Inverno assoma impante no horizonte, a fronteira que separa a manhã e a tarde torna-se mais porosa, contaminando-se uma à outra, deixando-me sem saber a quantas ando. Num dos jornais de hoje, uma escritora afirma que os adjectivos não servem para nada. Fico pesaroso por eles, pela desconsideração e vexame públicos que assim os atinge. Poderia perguntar quem, se não os adjectivos, há-de, por exemplo, qualificar e determinar o pobre do substantivo, mas não pergunto. Já não sei onde, Roland Barthes diz que se usa o adjectivo agradável quando não se quer dizer nada. Como foi a nossa noite de amor, pergunta ele e ela responde, hum… agradável, agradável. É para isto que servem os adjectivos. Que achas do meu texto? Magnífico, se possível com ponto de exclamação, responde-se. Isto é uma qualificação do texto? Não, é apenas a forma que temos para não dizer nada. Usar adjectivos – e não apenas o agradável – é de uma grande utilidade, pois a maior parte das vezes não temos nada para dizer ou temos e não o queremos fazer. O adjectivo é um indício de uma civilização superior que utiliza a qualificação para ostentar o silêncio. No horizonte, nuvens esbranquiçadas toldam o azul dos céus. A tarde, depois de garrotear a manhã, chegou ameaçadora. Estou por conta da ameaça. Não posso dizer que seja agradável.
quarta-feira, 4 de dezembro de 2019
O esplendor de um dia de Inverno
Não há dias mais gloriosos que os frios banhados pelo sol.
Olho para a frase e lembro-me de um poema de Eugénio de Andrade que começa
assim Obedecem-me agora muito menos, / as palavras. Penso na sorte que ele teve
por ter havido um tempo em que elas lhe acataram as ordens. A mim sempre
recusaram submissão, talvez por falta de talento para usar nelas a rédea ou
o chicote. Ocorreu-me agora um dito de Nietzsche sobre a necessidade de levar o
chicote, mas recuso-me a partilhá-lo não vá ofender a sensibilidade da época.
Também é possível que a máxima do filósofo alemão não quisesse dizer nada, nem
aquilo que nela está dito nem aquilo que nela se subentende. Seria apenas o
esplendor de um dia de Inverno em que a neve cintila sob a luz impiedosa do
sol, um exercício de pirotecnia para semear o céu com fogos-fátuos e a terra
com invólucros destroçados pelo rebentar da pólvora. Passa-me pela cabeça que
não se deve confiar em filósofos, principalmente se são alemães, mas também
devo abjurar este pensamento, tão pouco ao gosto dos dias que correm. Como eu
quereria dizer se frequentas as palavras, não esqueças o chicote. Não o digo,
pois não foi a vocação de domador aquela que os deuses depositaram nas volutas
do meu código genético.
terça-feira, 3 de dezembro de 2019
Cair em tentação
Não sei como nem porquê, a toranja tornou-se aqui em casa um
bem de primeira necessidade. Há pessoas para tudo e até para uma coisa dessas.
Tendo-se acabado as que havia, fui ao hipermercado aqui ao lado em busca do
santo graal, não propriamente o cálice sagrado onde José de Arimateia recolheu
o sangue de Cristo, mas dos frutos amargos que dão um excelente sumo para
começar o dia. Ainda dentro da superfície comercial, não resisti a passar pela
zona dos vinhos. Trazia o cálice e o sangue. O pior foi ao sair. Um cheiro a
farturas atropelou-me. De saco de compras na mão, como um sonâmbulo, lá me
encaminhei para a roulotte. No
caminho, murmurava não me deixes cair em tentação, não me deixes cair em
tentação, olha a balança. Ninguém me ouviu, ninguém quis saber da balança, nem
do colesterol, nem da saúde, nem me quis aliviar da tentação. Eu também não.
Uma fartura. É assim que o mundo se perde. Vem a serpente, tenta uma pessoa, o
cãozinho pavloviano que há em nós saliva e o mal está consumado. Talvez o sumo
de toranja compense. Há que não perder a fé.
Há que desconfiar
Todos os dias alteio mais um pouco o muro que me rodeia.
Fecho-me lentamente ao mundo, cubro com cimento as fendas na muralha,
certifico-me da qualidade do isolamento sonoro. Ainda não é perfeito, mas a
perfeição não é coisa que se consiga de um dia para o outro. Ponho-me a
imaginar que o que sou é apenas o resultado de um programa genético. Uma bela
desculpa para a minha falência, embora tenha o inconveniente de rasurar algum
pequeno mérito que possa, aqui ou ali, ter tido. A última coisa que quero neste
momento é uma meditação sobre o livre-arbítrio. Estava a falar do software que me faz ser o que sou e este
parece que me conduz a um inexorável isolamento. Nos dias em que estou de humor
benigno digo que deveria ter entrado para um convento, daqueles mais rigorosos,
para a trapa ou para a cartuxa. Riem-se do dislate e ninguém acredita. Eu
também não, mas lentamente vou construindo a minha cartuxa, limpando-a do incómodo
que a presença do mundo traz e entregando-me a um silêncio cada vez mais
espesso. Falta-me o talento para a oração e há no mundo algumas coisas que
ainda fazem cintilar os meus olhos, mas até isso pode ser um exagero. Há que
desconfiar de tudo, principalmente de mim mesmo.
segunda-feira, 2 de dezembro de 2019
Da possibilidade da perfeição
Vinha aqui dissertar sobre a imperfeição e a identidade entre o ontem e o amanhã, mas a quem podem interessar coisas como essas? Há pessoas, cruzo-me com elas todos os dias, que aderem de tal modo à realidade que chegam a parecer reais. Há muito que desisti da minha realidade e até da minha aparência. Como se vê é muito fácil dizer coisas sem sentido. Difícil é encontrar alguma com sentido para dizer. Fará sentido afirmar que lá em baixo um bando de adolescentes se alarga na efusão dos sentimentos contaminado pela efervescência das hormonas? Sobre a espécie humana, as árvores apresentam uma vantagem desmedida. São silenciosas e nos dias de sol projectam uma sombra benfazeja. Li um romance em que a personagem central se transformava numa árvore. Parece bizarro, mas nessa transformação há mais sabedoria do que nas vãs pretensões que alimentam a mente dos homens. Enraizar-se na terra, estender-se para o céu e fazer um voto de silêncio para a vida. Talvez a perfeição não seja impossível.
domingo, 1 de dezembro de 2019
Dia da defenestração
Faz hoje anos que os Braganças substituíram os Filipes no
trono de Portugal. Por muito que goste de Espanha, e gosto muito, dá-me sempre
uma boa disposição particular o facto de não ser espanhol. Depois há aquele
pormenor insidioso da defenestração do Miguel de Vasconcelos. A política tem
destas coisas, uma certa tendência para o exagero e para actos irreversíveis. Ia
contar que a execução do colaborador dos espanhóis – supremo símbolo do traidor
em Portugal – tinha sido o primeiro assassinato político de que tinha
consciência. Seria uma mentira e embora seja obrigado a mentir muitas vezes
nestes textos não o faço de propósito. O primeiro foi o de John Kennedy e ainda
recordo o meu pai a comentar o assunto com a minha mãe. O caso do Vasconcelos,
narrado numa aula da escola primária por um professor ou professora patriota,
ficou preso à imaginação pela palavra e pelo modus operandi. Não era todos os dias que se ouvia uma palavra como
defenestrar, ainda por cima aplicada a alguém que não só não merecia ir para o
céu como todo o castigo aplicado era pouco. Não se pense que falar do céu é
coisa despropositada. Lembro-me muito bem, na sequência das aulas de história
recebidas naqueles tempos em que a razão não tinha sido contaminada pelo vírus
da crítica, de ter pensado como era bom pertencer a um povo cujos governantes e
personagens históricas eram não apenas grandes heróis como pessoas
particularmente santas. Deviam estar todas na glória de Deus. Talvez o feriado
de 1 de Dezembro sirva para assinalar o caso do único português que pela sua
aleivosia foi atirado pela janela e só parou de cair quando Satanás o apanhou e
o levou para o reino dos infernos. Ainda hoje dou comigo a pensar que as nossas
elites se já não são heróicas, os tempos não estão propícios para a coragem, continuam
firmes no caminho da santidade. Pelo menos, não tem havido defenestrações.
sábado, 30 de novembro de 2019
Disposição para a culpa
No lugar onde me encontro neste momento chove de mansinho,
uma água hesitante, como se as nuvens se sentissem culpadas de molharem quem
passa, mas a culpa não fosse suficientemente forte para se conterem. É isto que
também se passa com as acções dos homens. Se eu fosse uma pessoa decente e
moderna diria acções dos homens e das mulheres, mas sou anacrónico, certo tipo
de decências passam-me ao lado e se cultivo a anáfora tento evitar a
redundância. Como as nuvens, também eu não consegui conter-me e deixei que o
fel impregnasse a malfadada prosa e me desviasse daquilo que queria dizer. As
más acções humanas nascem muitas vezes duma hesitação trazida por um sentimento
de culpa não suficientemente treinado e vigoroso. Uma boa educação deveria
começar por incrustar bem fundo na alma a disposição para a culpa. O autor
destas palavras, ao pô-las na minha boca, não tem qualquer consideração por
mim. Que Deus lhe perdoe. A chuva não pára, as pessoas passam alheadas, chapéu
aberto, e não tarda tenho de pôr-me a caminho. O que vale é que não me esqueci
do guarda-chuva.
sexta-feira, 29 de novembro de 2019
Os lírios do campo
A sexta-feira progride entre o cinzento dos céus e a
tristeza da cidade. Há sempre neste dia da semana um pathos que, contra o que seria de esperar, faz descer nos corações
um véu de melancolia, como se o desejado fim-de-semana fosse mais uma ameaça
pela sua transitoriedade que um motivo de júbilo pela sua existência. Somos
difíceis de contentar. Talvez exista uma memória histórica que se tenha
entranhado no nosso código genético e que dispara, sem que se saiba porquê,
estes estados de alma. Li que hoje em dia os seres humanos livres trabalham
muito mais que os servos da Idade Média. Eu sei que todo o fulgor que nos
rodeia, essa possibilidade de fazer compras sem fim, de não perder qualquer
promoção, de nos atafulharmos de tudo o que não precisamos, eu sei, dizia, que
isso exige muito trabalho, que devemos estar sempre mobilizados para a grande
batalha produtiva. E depois lembro-me que os lírios do campo não trabalham nem
fiam, mas que Salomão em toda a sua glória nunca se vestiu como qualquer um
deles. Temo que a educação religiosa que recebi me tornou completamente
desadequado ao mundo onde sobrevivo. Ou talvez eu fosse já desadequado e que a
educação recebida, a que não dei a sequência que era desejada, me sirva de
desculpa. São ínvios os caminhos do Senhor.
quinta-feira, 28 de novembro de 2019
O caso do santo que não faz milagres
À tarde um acaso profissional levou-me a pensar em Perry Mason e Paul Drake. Não me esqueci, claro, de Della Street. Há muitos anos que não convivo com estas pessoas, mas houve uma altura em que a sua companhia foi para mim fonte de grande prazer. Pensei em Mason e Drake porque necessitava dos seus serviços para uma das tarefas que a existência me impõe. Foi um pensamento instrumental, confesso. Talvez eles possam ajudar-me a resolver o caso do santo que não faz milagres. Sei que estou a tornar-me obscuro, mas a vida também é feita de obscuridades. Quem seja o santo e que milagres queria eu dele, não vem agora à colação. De Della Street lembro-me da imutabilidade da sua aparência, de nunca se aventurar na casa dos trinta anos e da eficiência e fidelidade profissionais. Talvez numa parte recôndita da minha alma habitasse, naquele tempo, um fraquinho por ela. Tudo é possível, pois são mais as coisas que não sabemos que aquelas que sabemos. Estas são as cogitações que me obrigam a pensar, muitas vezes contra a minha vontade, mas quando se é o produto da imaginação doentia de um déspota não é de esperar outra coisa. Se soubesse onde é que guardei o número do escritório do Mason, ainda lhe ligava hoje.
quarta-feira, 27 de novembro de 2019
Um belo livro
Tenho entre mãos o belíssimo livro de poesia de Ana Luísa
Amaral, Ágora. Comprei-o há pouco e
ainda não tive tempo para ler qualquer poema, mas a beleza do objecto, antes
que a do espírito se manifeste, vem-lhe do corpo. Uma edição de capa dura, onde
se reproduz a pintura Jacob lutando com o
anjo, de Bartholomeus Breenbergh, nascido
em Utreque no ano de 1598. Cada poema é acompanhado pela reprodução de um
quadro. Num deles, de Georges de La Tour, vê-se uma Madalena penitente, e todo
o livro é um jogo de diluição de fronteiras ou de contaminação. A tarde parecia
propícia para a leitura. Hoje não houve até agora ensaio do grupo de baile da
escola aqui ao lado, mas um aspirador ruidoso teima em assegurar o asseio de um
dos apartamentos do prédio. Também nas instalações da antiga agência bancária,
prossegue uma batucada sem ritmo, que se repercute nas paredes e desagua em
mim. Folheio o livro com cuidado e vejo as pinturas. Há duas Salomés, mas o que
me prende os olhos é uma reprodução de Ecce
Ancilla Domini, de Dante Gabriel Rossetti. Ali vejo tudo o que há de
feminino numa mulher, mas esta minha frase precisa de ser censurada, pois os
dias não correm de feição a considerações metafísicas. Enquanto a tarde desliza
brandamente sob um céu mesclado de azul e cinza, eu fico a olhar com demora a
escrava do Senhor. Afinal, o grupo de baile sempre tem direito ao seu ensaio.
terça-feira, 26 de novembro de 2019
Submetidos à irmandade
Gostaria muito de crer que a proposição “os pinguins são
seres humanos” é verdadeira, como me afiançaram talvez por desfaçatez ou distracção.
Nunca se sabe o que move os indivíduos pertencentes à nossa espécie. Apesar do
meu esforço em torcer a consciência, tive de me declarar incrédulo. Não ser
crente num mundo como aquele que frequento para obstar à maldita necessidade é
errado e começa a ser perigoso. A minha realidade existencial é superintendida
por uma espécie particular de teólogos. Estes têm por divisa o quanto mais
absurdas forem as nossas crenças com mais empenho as devemos impor. Fazem-no
com denodo e sem cansaço. Com o passar dos anos a produção teológica tornou-se
exorbitante e não se observa nenhum sinal de abrandamento. A matéria de fé é
tão extensa e a dogmática tão hiperbólica que é impossível que qualquer um dos
superentendidos pela irmandade não seja numa qualquer altura um verdadeiro
heresiarca. Como todos sabemos, os heresiarcas não costumam ter um bom destino,
e talvez seja por isso que aqueles que como eu se submetem à irmandade tenham
sempre a consciência pesada. Não por um qualquer pecado capital, mas por sustentarem
por palavras e acções uma qualquer heresia da qual não têm consciência. Já
pensei estabelecer uma correlação entre o tipo de textos que escrevo e os dias
da semana. Talvez se mostrasse que as terças-feiras não são especialmente
propícias para escrever coisas com nexo. Fico por aqui, pois espera-me uma
tarefa sem a qual o mundo ficaria bem pior.
segunda-feira, 25 de novembro de 2019
Versão free
Avariou-se o termóstato da caldeira. Pressuroso, fui à
etiqueta colada ao dispositivo para ver o número de telemóvel de quem cuida
destas coisas, uma empresa familiar. Queria falar para o filho, mas digitei o
número do pai que estava na linha de cima. Apareceu uma senhora que não era a
mãe, nada sabia de termóstatos e muito menos de caldeiras. Depois de me
desculpar, pensei que não estava mal. Dois erros numa única tarefa, das mais
simples que se pode atribuir a alguém. Se pudesse despedia-me a mim mesmo e
substituía-me por uma versão melhorada, que se enganasse menos ou visse melhor.
Temo, porém, que nem numa versão premium,
daquelas pagas e renováveis ano a ano, o serviço estaria ao nível desejado.
Pensando bem fico-me pela versão gratuita ou para parecer cosmopolita,
coisa que não sou, pela free. Não é
grande coisa mas tem a vantagem de
contribuir para a poupança nacional.
domingo, 24 de novembro de 2019
Neblinas e inacabamentos
O domingo nasceu coberto de neblina. O hospital é apenas um esboço suave perdido numa planície de cinza e o arvoredo da escola ao fundo parece uma cortina de pano escuro suspensa de um tecto indeciso. Os pombos rasgam o céu de penumbra, abrindo pequenas fendas por onde brota mais e mais neblina. Um corvo perdido na paisagem urbana funde-se na névoa e tudo é quietude e silêncio. O café da praceta aqui ao lado está fechado e as crianças que costumam ocupar o parque infantil desertaram, levadas pelos pais para lugares menos húmidos. Estou aqui sentado a enrolar palavras como quem enrola tabaco para se entregar ao prazer de o queimar. Também todas as minhas palavras têm como destino arder, dissolver-se em fumo e mostrar que nelas nada há. Daqui a pouco o meu neto será baptizado e talvez isso mude a sua vida. A minha teria sido muito diferente caso não tivesse sido levado à pia baptismal? O hospital acabou de desaparecer. Agora só vejo um prédio erguido num descampado que uma qualquer crise não deixou acabar. Aquele prédio não é mais que a imagem da vida, um exercício inacabado que dura até que a última crise consagra o inacabamento definitivo. Talvez um dia fale aqui de uma carta que Max Weber dirigiu à viúva de um amigo acabado de morrer. Talvez.
sábado, 23 de novembro de 2019
Encontro com o mordomo
Hoje tive, logo pela manhã, um novo desentendimento com a balança. Mais trezentos gramas que no sábado passado. Depois de uma semana inteira de intensa meditação transcendental e de recitações do mantra sagrado e as coisas estão piores. Só pode ser da pilha, pensei. O mais assisado é mudar-lhe a fonte de energia. E foi com estes pensamentos que saí de casa. No café que, uma vez por outra, me acolhe, alguém, voltando-se para mim, diz bom dia. Havia por certo no meu rosto um sinal de perplexidade, pois ouço-o dizer então não me conhece? E sem deixar-me responder, acrescentou sou o mordomo. Ainda há dias falou de mim. Claro, era o mordomo. Deixei a cozinheira de lado e perguntei-lhe pela duquesa. É espanhola, respondeu-me. Não sabia. Sim, continuou, muito próxima do Rei. Ao ver o ricto que se me desenhou na face, riu-se com duas gargalhadas sonoras. Você é um patriota, mas não se preocupe, o Filipe está muito ocupado com a Catalunha que não tem tempo para pensar em invadir Portugal. Essa coisa dos Filipes foi há muito e a traição dos Braganças já foi vingada. Além disso esses eram Habsburgos e este é Bourbon, disse ele com entoação castelhana. Pensei perguntar-lhe o que fazia ali, mas evitei dar-lhe oportunidade à confissão. Declarei que um dia gostaria de conhecer a duquesa, embora estivesse mais interessado na cozinheira, o que omiti. Como despedida perguntei-lhe se ele se lembrava da frase de Talleyrand sobre os Bourbons, ao que respondeu que era um simples mordomo. Eu sorri da vitória e saí. O sábado começou mal, mas compôs-se.
sexta-feira, 22 de novembro de 2019
A aceleração do tempo
As minhas sextas-feiras estão longe da perfeição. Começam
com uma lentidão exasperante, com os segundos a arrastarem-se trôpegos e
indecisos pelo caminho, quase incapazes de se transformarem em minutos,
evitando o mais que podem que estes se combinem em horas, ronceiros a fazer
gala na indolência, madraços subjugados ao pecado mortal da preguiça. Imagino
que por virtude de um almoço revigorante, chegada a tarde, esses mesmos
segundos são tomados por uma louca azáfama e dão em acelerar pela pista fora,
como se tivessem por missão conquistar a pole
position e saírem na frente da corrida. Nada lhes tolhe as pernas e quanto
maior é a presteza com que passam, mais rápido se movem. Chegada a noite, cada
minuto passa à velocidade de um segundo e não há sinalização de trânsito nem
radar que os leve a amolecer o ímpeto. Se eu fosse um homem de engenho,
apunhalava uns tantos, deixando-os a sangrar para que os outros segundos os
vissem com olhos de ver e tomassem tento, aprendendo com Zenão e tornando-se em
verdadeiros Aquiles que nunca hão-de alcançar a vagarosa tartaruga. Falta-me veia para executor e, dir-me-ão, arte para encontrar motivo para escrever
coisas decentes, que animem o mundo ou edifiquem as gentes para que estas não entrem
no caminho da perdição. Muitas são as vias que nos levam à loucura, umas mais
lentas outras mais rápidas. Haverei de lá chegar.
quinta-feira, 21 de novembro de 2019
Moral da história
Estava a ler uma pequena história que metia um mordomo e uma cozinheira. Histórias destas são sempre edificantes, mas não a vou contar, pois falta-me talento para pregador. O mais que posso desejar é que um e outro possam prosseguir tranquilos a vida dentro da história, que esta cresça e se torne primeiro numa novela e, depois, num grande romance. Aqui, porém, a realidade torna-se complexa e pode acontecer que o mordomo de passagem pela cozinha e ao ver a faca da cozinheira se sinta inclinado ou a matá-la, ao sentir-se traído pelo motorista, ou a suicidar-se, cansado de esperar o amor da proprietária da faca. Nessa altura o leitor fica confuso, pois não sabe se a faca pertence à cozinheira ou se é propriedade da duquesa para quem a cozinheira dá o melhor dos seus talentos. E uma nova perturbação é introduzida com esta última frase, pois não fica claro que talentos oferece à duquesa a sua cozinheira, pois esta pode ser pessoa de engenho e que sirva na cozinha e noutros lugares do palácio, que por pudor, não me atrevo a especificar. O mais certo, porém, é que o mordomo evite a cozinha, não veja a faca e à falta do objecto não se desencadeie nele a pulsão de morte, o que seria de lamentar. Sempre gostava de saber, por mórbida curiosidade, quem é que anda a dormir com quem e que relações há entre a duquesa e o pessoal que dela cuida, para poder extrair uma moral para história e vir aqui fazer grande pregação.
quarta-feira, 20 de novembro de 2019
Inclinação para o plágio
Hoje enrolei o dia com o manto das coisas inúteis. A frase é pretensiosa, mas não me ocorreu melhor início para este diário. Quanto mais inúteis são elas, mais merecem aplauso e consideração. Não estou a protestar contra a ordem da natureza, mas a sublinhar que é assim. Já não tenho idade para me revoltar contra a realidade, até porque ela não deixaria de ser o que é, por mais que eu reclamasse. Este é o melhor dos mundos possíveis e as coisas estão sabiamente ordenadas. Contrariam os meus desejos, desmentem as minhas crenças, riem-se das minhas convicções. Não fosse assim, o mundo não seria mais que a projecção do caos que me habita. Não sei se estas filosofices que me saem dos dedos – e não da razão, pois a minha já teve melhores dias – se devem ao culto do inútil a que me ative todo o dia ou se à sanha esburacadora com que o homem do berbequim eléctrico enfrenta a dureza das paredes naquele sítio que já foi uma agência bancária. Tenho a secretária cheia de livros, mas não se pense que é por avidez de leitura. Estão desarrumados, esperam que tenha piedade deles e os ponha nos seus devidos lugares. Sobre o homem do berbequim têm a infinita vantagem de não fazerem barulho e, se os interrogo sobre o que está neles, mantêm-se mudos. Esta é a segunda citação filosófica não identificada que faço. Ainda sou acusado de plágio. Na escola aqui do lado, o grupo de baile continua perdido no seu Brideshead. Acho que tenho de ir mostrar a garganta à médica. Aposto que um dos dois não vai cumprir o horário.
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