As sextas-feiras chegam e partem a uma velocidade galopante. Parecem cavalos de corrida e nós, seres humanos, não passamos de infelizes jockeys que não sabem se conseguem equilibrar-se no cavalo, quanto mais refreá-lo, fazer com que o animal se contenha num passo vagaroso. Passei o dia envolto em assuntos que embora não sirvam para grande coisa – na verdade, não servem para nada – me são exigidos pela dura necessidade. A azáfama impediu-me de ter assunto para narrar, pois aquilo que me azafamou é inenarrável. Se quero contar uma ou outra aventura, desta gesta cavaleiresca que é a minha vida, tenho de voltar ao dia de ontem. Consegui, por fim, comprar uns atacadores. Desesperava. Sempre podia recorrer à internet e encomendar um par de cardaços, como se diz no Brasil, à marca dos sapatos, que por acaso é americana. O problema é que não me apetecia dar seis euros por umas coisas para fazer laços, para além dos custos de envio. Não é que tenha inclinação de forreta. Não tenho, mas achei imoral o preço. Investiguei descobri um sapateiro perto de casa. Tem atacadores, perguntei. Tenho vários, o que quer? Lá expliquei. Perguntou-me o comprimento. Disse que os quero substituir medem 89 cm. Não pode ser, não existem com esse tamanho. Tenho de 90. Óptimo. Devo ter medido mal, acrescentei, e perguntei quanto era. Um euro, ouvi. Sabe quanto me pediam na marca? E lá debitei os seis euros. O homem ficou de cara ao lado, como se aquilo fosse uma ofensa. Depois, acrescentou: e se calhar são tão bons quanto estes. Não, são piores, pois os meus ficaram em frangalhos em pouco tempo. Esta conversa que não interessa a ninguém tem, contudo, várias lições sobre a moral, a economia e, também, acerca do valor de ter um sapateiro perto de si. Podia contar outras histórias, mas para hoje chega. Sempre é sexta-feira.
sexta-feira, 14 de janeiro de 2022
quinta-feira, 13 de janeiro de 2022
Uma incógnita irresolúvel
Há experiências que não são fáceis. Não sei como acomodar em mim ver definhar, no meio de uma demência galopante e de uma degradação física sem retorno, alguém que foi activo, com poder de iniciativa e capacidade de ordenar a vida à sua volta. A realidade sempre me pareceu uma coisa perversa. Mesmo quando ela se apresenta como benévola e geradora de alegria e esperança, esconde o terrível. Muitas vezes lamentamos a ordem moral do mundo, o triunfo do mal sobre o bem. Não menos lamentável, porém, é a ordem da natureza, na qual a vida está assente no alicerce da dor. Nem uma longa conversa com o padre Lodo me retirou do coração o sentimento de impotência perante a realidade. Não é que o meu amigo, apesar de sacerdote, se proponha a um fácil discurso consolatório. Pelo contrário, há nele qualquer coisa que parece estar para além da religião que decidiu abraçar, um fundo trágico, herdado da antiguidade. As leituras dos trágicos gregos, sobre os quais temos longas conversas, inscreveram nele uma marca indelével. Ou talvez o próprio cristianismo se funde numa tragédia, apesar da promessa da ressurreição da carne. Da aparelhagem escorre uma música do Tingvall Trio com o nome Memory. O problema, porém, é que mesmo uma memória poderosa e dada à minúcia não resiste ao galope da demência, de tal modo que chega a não reconhecer os próprios filhos, pergunta-lhes quem são. Chegam os ecos de uma conversa online entre avó e neta. O assunto? A Matemática, a resolução de exercícios, a determinação do x, mas talvez, por mais que se tente, o x seja eternamente irresolúvel, uma incógnita contumaz que nunca deixará que lhe retirem o véu.
quarta-feira, 12 de janeiro de 2022
Inconfiáveis
Amanhã preciso de ir a um sítio onde me é exigido um teste negativo à COVID. Por isso, lá fui mais uma vez submeter-me ao império da zaragatoa. Agora, que a noite já desceu e segue firme pelas horas dentro, estou à espera do resultado. Nem percebo por que razão o veredicto não é dado logo, pois os testes antigénio feitos em laboratórios ou farmácias não me parecem diferentes daqueles que fazemos em casa. O que muda é a certificação. Não somos seres confiáveis e, por isso, em vez de estarmos em casa a introduzir a zaragatoa pelas narinas até tocar na raiz do cérebro, temos de nos submeter a terceiros para obter o certificado de bom comportamento. No fundo, somos todos o Pedro da história de Pedro e o Lobo. Não a de Prokofiev, mas a que é atribuída a Esopo (bem, já não me lembro se o pequeno pastor desta história se chamava Pedro). Somos todos uns alegres mentirosos a que ninguém leva a sério. Pelo menos três pessoas que eu conheço decidiram ir ao estrangeiro e deixaram-se contaminar pelo vírus. Descobertas quando queriam retornar à pátria, estão agora retidas até se descontaminarem. Há uma estranha sensação no ar. Conforme cresce o número de contaminações, as pessoas agem como se a pandemia estivesse a acabar, como se ela não fosse mais que um fogo-de-artifício, que acaba sempre em apoteose. Continuo à espera do resultado da zaragatoada. Será que me trocaram as letras do email?
terça-feira, 11 de janeiro de 2022
Uma questão de tamanho
Há pouco lembrei-me de um título de um filme dos irmãos Cohen, que também é título de um dos romances de Cormac McCarthy, Este País Não É para Velhos. Isto a propósito de uma insidiosa forma de exclusão que os livreiros decidiram pôr em marcha, para afastarem da sua clientela pessoas cuja idade já não permite ler com conforto, apesar dos óculos, letras minúsculas com que decidem imprimir os livros, que esperam vender. Por motivos que não vêm ao caso, decidi abrir o livro Palácio de Cristal, de Peter Sloterdijk. Quando me predispunha a ler umas páginas, sinto-me expulso da leitura e quase ouvi o editor murmurar este livro não é para velhos. Se me fosse permitida a política, haveria de organizar um movimento para regular o tamanho das letras que formam palavras com que são construídos os livros. O regulador assegurar-se-ia de que nenhum livro seria impresso sem que as letras tivessem um certo tamanho, pois aqui o tamanho conta. Para evitar exclusões, entenda-se. Esta, porém, não foi a minha grande aventura de hoje. Ao chegar à porta do prédio onde vivo, digito o código de entrada e nada. Olhei para o dispositivo com olhar de quem pede esmola, mas ele manteve-se impávido e comprometido com a sua decisão de não cooperar com os moradores. Vou ao molho de chaves que arrasto comigo e, depois de algumas experiências, descobri que não tinha chave da porta de entrada. Como um cão abandonado, fiquei à porta aguardando que alguém saísse do prédio para eu entrar. Agora, tenho outra aventura. Onde estará a chave que eu deveria ter? O melhor é ligar para o condomínio e pedir que me façam outra. Isto, se não me esquecer. Como se vê, o mundo existe apenas para desfazer os nossos planos, para se rir dos nossos possíveis mais próprios. Esta última frase, além de ridícula, era dispensável, mas ninguém pode deixar de ser quem é.
segunda-feira, 10 de janeiro de 2022
Uma assinatura
A data é 11/3/56, por cima da data está uma assinatura. Quando a vi desconfiei que tinha comprado um livro que merece ser guardado. A história é simples. Adquiri online o romance Homens Sem Caminho, de Castro Soromenho, uma segunda edição. Há uns tempos comecei a juntar – não sou, na verdade, um coleccionador – romances portugueses que ninguém lê. Vou comprando ao sabor da minha disposição. Os livros em segunda mão trazem, por vezes, ecos dos antigos proprietários. Dedicatórias, apontamentos, notas à margem, comentários. Este tinha apenas uma data e a assinatura do proprietário. Aliás, a assinatura resume-se apenas ao apelido, Vespeira. Ora, este é o nome de um conhecido pintor surrealista, um dos artistas mais importantes do chamado terceiro modernismo português. Fui à procura na Internet de reproduções de quadros dele e confirmei que a assinatura que consta no livro é exactamente igual à que ele punha nos quadros. Não tenho um quadro de Vespeira, mas tenho um livro que foi dele, que o comprou ainda antes de eu nascer. Não se pode ter tudo. Marcelino Vespeira morreu em 2002, há quanto tempo terá sido vendida a sua biblioteca ? Quanto a Castro Soromenho, a este nunca o li. A sua ambiência narrativa é o mundo colonial português. Foi muito traduzido e, no seu tempo, era uma personagem literária respeitadíssima. Hoje, pouca gente terá ouvido falar dele. Portugal mata a memória dos seus escritores a uma velocidade estonteante.
domingo, 9 de janeiro de 2022
A imobilidade
Há domingos que não sei o que fazer com eles. Parecem uma suspensão inútil por dentro da pedra dura da realidade. Tivesse-me sido dada uma ciência infusa sobre a textura dos dias da semana, esta ignorância não teria lugar. Ainda não me aventurei no frio que cobre a cidade. O céu apresenta-se vestido de múltiplos matizes de cinza, desde a quase negra, até à quase branca, mas as nuvens parecem imóveis, só o tempo, com a sua espada de cristal, corre, sem necessidade da energia do vento. Na praceta, três homens, sem máscara, rodeiam uma moto. Há capacetes no chão. Um deles passa a mão pelos cabelos, outro dá passos à volta do veículo. O terceiro esgueira-se pela rampa que dá acesso às garagens de um prédio. A quietação celeste foi perturbada pelo voo de dois pássaros. Na avenida, pessoas vão devagar, cobertas de Inverno. Uma rapariga, quero dizer uma mulher ainda nova, vai atrelada a um pequeno cão. Visto de cima, o animal parece vestir um pulôver sem mangas. Caso a mulher nova – no Brasil, o termo rapariga é mal-afamado – seja brasileira, então o cão há-de estar com um suéter, que é o que por lá chamam ao pulôver. Fico sempre espantado com as coisas inúteis que sei, embora devesse ficar ainda mais, mas não fico, com as coisas úteis que desconheço. Segundo algumas opiniões, a que não me atrevo contestar, todas as coisas que sei pertencem à categoria da inutilidade. Os homens continuam a conferenciar. Alguma coisa terá acontecido ao motociclo. Um dobra-se e examina o motor, outro corre, de novo, pela rampa que dá acesso à garagem. A moto, como as nuvens no céu, continua imóvel, mas o tempo não pára de passar.
sábado, 8 de janeiro de 2022
Susceptibilidades
O dia começou mal. Não bastava ter-me levantado tarde, coisa que está fora dos meus hábitos há muito, tive um desagradável encontro com a balança. A coisa – para não usar uma qualificação mais desagradável – teima em continuar a afrontar-me devolvendo-me pesos insultuosos sempre que a piso. Talvez ela fique ofendida por ser pisada. Quem gosta, nesta vida, de ser pisado? Os dispositivos – e não apenas as balanças – são seres muito susceptíveis. Ontem, por exemplo, o GPS do telemóvel ficou muito irritado e decidiu gozar com os pobres passageiros do carro. Depois de passar uns dias em Coimbra com as minhas netas, no retorno decidimos levá-las a Conimbriga. Era o fim do passeio cultural. Ligada a aplicação, a senhora que fala dentro do aparelho lá foi dando indicações. O problema é que falhei uma curva à esquerda e ela em vez de me mandar voltar para trás, continuou a dar indicações, metendo-nos a todos por aldeias inverosímeis e, não contente com isso, por estreitos caminhos do campo, terra batida, buracos cheios de água, instigando-nos sempre para a frente, ou para a direita, ou para a esquerda. A certa altura comecei a desconfiar que estava a ser literalmente gozado, fiz inversão de marcha e mandei calar a senhora. Na primeira aldeia, perguntei o caminho, como se fazia antigamente, e lá cheguei às ruínas. Não tenho certeza se as netas gostaram mais das ruínas ou da aventura de andarem perdidas pelos campos, sem saber se chegariam a algum lado. Como se vê, e esta era a minha tese, os dispositivos são seres muito sensíveis, impiedosos e vingativos. Agora, estou a ouvir Fado de Coimbra, pois ao descer da Universidade para a baixa da cidade, encontrei uma casa dedicado à canção coimbrã e decidi comprar dois CD. Tenho de os ouvir pelo menos uma vez.
quinta-feira, 6 de janeiro de 2022
Balanços e rebeliões
Ainda não nos despedimos do tempo das contabilidades. Na comunicação social, surgem todos os dias os balanços, o deve e o haver. Há quem fale de que se deve deixar de contabilizar os infectados, mas contar apenas aqueles que desenvolvem doença grave que conduza à hospitalização. Mesmo que venha a ser assim, a contabilidade continuará a ter lugar no espaço público. Há muito que a estatística se interessa por todos os tipos de fenómenos sociais, agora, porém, ela tornou-se uma atracção pública. Talvez esta exposição dos números tenha contribuído até aqui para que eles não sejam mais altos. Como se pode observar, estou com evidente falta de assunto, apesar do dia ter estado agradável e não me faltarem aventuras para narrar. A questão, porém, é que urdir uma trama narrativa exige estar voltado para esse lado. Ora, até um narrador tem direitos, e um dos direitos mais importantes é recusar-se a narrar, uma espécie de direito à rebelião, como aquele que um filósofo do século XVII, tido por pai do liberalismo, reconheceu aos povos submetidos à tirania. Apesar da paternidade de tão ilustre filho, ele possuía curiosas convicções sobre a tolerância. Por exemplo, advogava que as diversas igrejas, desde que não se metessem em política, deveriam ser toleradas, com excepção da Igreja Católica. Também os ateus não poderiam ser tolerados. Podia narrar as razões que lhe atormentavam o espírito para que o pai da tolerância fosse intolerante, mas não me apetece. A noite está a cair, e há coisas que é melhor não falar à noite. Estive a ver uns exemplares da revista Paris Match do ano que nasci, havia mesmo um do dia em que vim ao mundo. A experiência é devastadora. Se aquele era o meu mundo, então este já não é. Talvez existem diversos mundos possíveis que possam coabitar uns com os outros. Talvez. Seja como for, a revista custava à época 50 francos em França e, neste cantinho esquecido dos deuses, 8$50.
quarta-feira, 5 de janeiro de 2022
Ausência de espírito
Devia ter tirado uma fotografia, mas esqueci-me. Ontem estiveram cá todos os meus netos. O reboliço, porém, ocupou-me a mente e nem me ocorreu o exercício fotográfico. A isto chama-se, julgo, falta de presença de espírito. Quem tem o espírito presente não falha oportunidades, como os grandes jogadores de futebol não falham golos com a baliza aberta. Não é bom sintoma começar a fazer analogias com o mundo obscuro da bola, até porque dele sei pouco ou, para ser mais exacto, nada. Para além de não ser dotado com oportuna presença de espírito, cheguei a uma fase em que mesmo aquilo que me visita o espírito se varre num abrir e fechar de olhos. Imagine-se que se tem a intenção de levar o objecto X para o lugar Y, mas antes há que fechar a janela Z. Fechada a janela, já o X e o Y entraram naquele limbo de onde hão-de sair, se saírem, daí a umas horas. Ontem, tive de fazer cara feia ao meu neto. Parece divertir-se imenso em pegar num objecto – seja o brinquedo W – e atirá-lo ao ar, o que tem sempre a grande possibilidade ou de cair em cima da cabeça de alguém ou de partir qualquer coisa. Ele ficou muito sério e prometeu não continuar a verificar se a gravidade funcionava, embora não creia que tenha ficado convencido de que atirar coisas ao ar não é um belíssimo passatempo ou uma óptima experiência com a qual ele poderia aprender uma pouco de Física. Na idade dele, porém, explicações para pouco servem, mais vale uma cara feia. Como paga, ele mascarou-se de monstro e passou longos minutos a assustar-me. Vendo-me assustado, tirava a máscara e dizia sou eu avô, e recomeçava. Hoje, quando me levantei, estava uma bela manhã, mas a beleza logo começou a declinar. O azul dos céus tornou-se cinzento e as ruas ficaram mais soturnas, como se cheirassem a mofo. O tempo passa.
terça-feira, 4 de janeiro de 2022
Corpo conservador
Ainda não me habituei a escrever o último dois de 2022, os dedos fogem sempre para o um. Isto será uma prova de que o corpo, comandado pelo cérebro, tem uma inclinação conservadora. Fora ele revolucionário, eu escreveria, automaticamente, 2023 ou mesmo 2024. Caso, porém, o corpo fosse reaccionário, os dedos haveriam de escrever 1821 ou 1822. Recusar o ano em que se está é um sintoma de conservadorismo, um caso daquilo a que vulgarmente se chama instinto de conservação. O tempo não nos mata, mas traz com ele aquela que nos há-de ceifar. Poderia ter escolhido uma metafórica mais criativa, mas estou cansado. Tive de sair de casa para pôr o telemóvel de uma das minhas netas a consertar. Aproveitando a saída, dirigi-me à Fnac – aqui, apesar da dimensão risível da cidade, também há uma loja Fnac, assim haveremos de nos julgar menos provincianos – para levantar um livro que tinha encomendado online. Por desfastio, comprei mais três. Vim carregado de poesia e mesmo assim não encontro imagens dignas de registo. Como antes de sair de casa ouvi sempre podias ir levantar-me as calças que foram emendar as bainhas e, é mesmo ao lado, podias trazer um chouriço de carne, lá fui em demanda das calças reembainhadas e do chouriço de carne – atenção, não seja gordo, ouvi ainda – e, também por desfastio, passei pela zona dos vinhos, o que é sempre uma visita aprazível. Entre livros de poesia e garrafas de tinto do Douro, trouxe para casa não sei quantos produtos que, ao sair, nem tinha imaginado comprar. É assim que uma pessoa cede aos imperativos da sociedade de consumo. Fora eu um asceta rigoroso, um monge de estrita obediência, nem poesia nem vinhos, apenas água pura e um livro de orações coçado pelo uso, mas não sou. A minha neta mais nova está a choramingar, embora sem abundância de lágrimas. As sessões de Matemática dela com a avó – com a outra neta a função é mais apaziguada – têm uma coloração bergmaniana, dão sempre em lágrimas e suspiros. É a vida das marionetes, pensei.
sábado, 1 de janeiro de 2022
Estamos em 2022
Estamos todos mais descansados. Afinal, sempre existe o ano de 2022. Chegou por aqui entre fogo-de-artifício, pessoas a brindar e outras submetidas àquela terrível provação das doze passas e não sei quantos desejos. Estava para passar as passas, mas como eram bastante boas, acabei por cumprir o ritual enquanto fazia videochamadas para a família. Na azáfama, esqueci-me dos desejos. Quando meditei nessa falta, concluí que fora o melhor. O mais sensato é não desejar nada. Até, porque, passados uns minutos uma pessoa esquece-se daquilo que desejou e não tem hipóteses de verificar experimentalmente se a conexão entre passas e desejos formulados funciona. Apesar de me ter deitado a hora muito razoável, levantei-me tarde, coisa a que não estou habituado e torna o dia um pouco zanaga. Não imagino por que razão esta palavra me surgiu. Os dias não têm olhos, logo não podem ser zanagas. Talvez nos olhem de lado. É uma hipótese, mas de confirmação tão difícil de testar quanta a da causalidade entre passas e realização de desejos. Estou preocupado comigo. O que me terá dado para fazer estas referências, já são duas, ao método científico. As notícias são animadoras. Uma equipa de cientistas portugueses – mais uma vez a ciência – desenvolveu um nariz electrónico que consegue detectar odores apesar da humidade. Parece que esta é inimiga da captação de aromas. Por falar em aromas, recordei-me que a palavra é usada para designar certos produtos químicos adicionados industrialmente a alimentos para lhes dar determinados sabores. Como se vê, até a indústria mais soturna tem um lado poético. Seja como for, estamos em 2022, na noite do seu primeiro dia. Nem sempre é fácil constatar a realidade.
sexta-feira, 31 de dezembro de 2021
Um ano sem facécias
Tinha escrito um longo texto. O computador, porém, decidiu que estava cansado e recusou-se a fazer seja o que for. Tive de o desligar e tornar a ligar. Quando retornei, apesar de ter gravado o texto escrito, este desaparecera. Um sinal, por certo, para que eu compreendesse que tudo o que tinha escrito era puro lixo, matéria morta, à qual não deveria voltar, pois, caso contrário, ainda seria transformado em estátua de sal. Achei desagradável partilhar a sorte com a mulher de Lot e abstive-me de retornar aos tormentosos assuntos que me ocupavam e que se perderam nalgum buraco negro do universo virtual. Sendo assim, não tenho assunto para hoje. Nenhum acto heróico a acrescentar a esta gesta. O sol desmaiado chama o fim do dia e o cansaço anuncia que o ano está por horas. Foi um ano mau, 2021? Talvez, mas, como acontece sempre, poderia ter sido pior. Também poderia ter sido melhor. Oiço o pianista de jazz Marc Copland. Há alguns anos assisti, nesta pequena cidade de província, a um concerto dele para apresentação de um álbum. Nunca percebi como foi possível isso ter acontecido, pois foi o único concerto dado em Portugal. Esperemos que o ano vindouro não se entregue, como o actual, a facécias virais, que tenha tino e não ande por aí a molestar os espíritos dos homens. Já bastam estes para se molestarem a si e aos outros. Também é necessário que os anos tenham juízo, e os últimos não têm dado grandes provas de o possuírem. Deveria haver possibilidade de os devolver, sempre que vêm avariados. A defesa dos consumidores precisa de estar mais atenta a estas coisas.
quinta-feira, 30 de dezembro de 2021
Sol de Inverno
O ano, o triste ano de 2021, parece decidido a despedir-se em beleza. Saí há pouco e a cidade está coberta por um magnífico sol de Inverno. Esta expressão lembrou-me uma canção de Simone de Oliveira com o mesmo nome. Cantou-a, fui verificar, no Festival da Canção de 1965. Naquele tempo, os festivais da canção eram motivo de reuniões familiares, os jornais publicavam grelhas para se ir registando a pontuação. Haveria preferências domésticas. Um acontecimento. Depois vinha o festival da Eurovisão, um novo acontecimento, embora aí as coisas corressem sempre mal. Os jurados dos diversos países esqueciam-se quase todos de pontuar a canção portuguesa, que acabava lá para os últimos lugares. Corriam múltiplas teorias sobre essa conspiração aleivosa contra as cantigas pátrias. Fui ao Youtube e ouvi a Simone cantar Sol de Inverno. Para dizer a verdade, não achei nada mal, pelo contrário. A interpretação da Simone é muito, muito boa. Estou a ficar velho. Ainda há uns anos nem me dignava lembrar desta canção, quanto mais… Li que só teve um ponto na Eurovisão dado pelos monegascos, gente simpática, disponível para a caridade. Não tarda muito e estou a comentar a Desfolhada. O que me vale é que lá para meio da tarde chega o meu neto.
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021
Uma questão de luz
Uma luz belíssima repousa na escola aqui ao lado. As copas das árvores reverberam e até as paredes surgem aos olhos como tendo uma dignidade que, na verdade, não têm. Blocos em cimento fazem um conjunto de onde está ausente a grave dignidade que outrora revesti o edifício de uma instituição de ensino. Havia neste um toque aristocrático, um sinal de que aquele lugar servia para uma elevação do espírito. Os edifícios das escolas modernas são uma confissão de que o saber já não tem qualquer relação com o mundo do espírito, mas é apenas uma questão técnica para gerir as necessidades da vida, apesar da retórica humanística e das homílias cívicas. Estava eu tão lançado nesta diatribe contra a decadência do bom gosto quando sou interrompido por assuntos familiares. É verdade, até um narrador tem assuntos familiares. Resolvidos estes, volto para aqui, mas a luz que me animou no início desapareceu, engolida pelo espectro da noite que se aproxima. Na praceta, ainda há crianças a correr e a gritar, as árvores estão imóveis e o hospital, ao longe, tocado pelo crepúsculo, parece ainda mais lúgubre. Num site noticioso vejo que uma jovem mulher, condenada a uma longa pena por homicídio, se suicidou. O mais tenebroso, contudo, são os comentários. Há qualquer coisa de infecta no coração destas pessoas. Talvez sejam vítimas de um vírus para o qual não há vacina que lhe limite os danos. A iluminação pública acendeu-se.
terça-feira, 28 de dezembro de 2021
Disembroil
Ao escrever Dezembro o corrector do Word assinala com um traço vermelho e oferece para substituição a palavra Disembroil. Não faço a mínima ideia de que língua perdida veio a sugestão. Faço uma pesquisa, mas a ignorância continua. Talvez o meu processador de texto tenha chegado a uma autonomia tal que conseguiu inventar uma língua, com a qual pretende corrigir tudo o que eu escrevo. Imagino que a cacofonia não seria maior do que aquela que resulta do meu uso do português. Há que esperar as facécias mais inesperadas. Levantei-me cedo para tratar de algumas coisas vindas da terra escura da realidade. Bem poderia estar em descanso preparando-me para a transição de ano, coisa que, apesar de trivial, exige uma longa preparação espiritual e, sejamos sérios, física. Ora, lidar com os imperativos da realidade não ajuda nem corpo nem espírito, pois a dita realidade conspira continuamente contra quem a ela veio. Dá-lhe dores, despesas, desavenças e desamores, dá-lhe mais umas quantas coisas começadas por dê, mas que não me ocorrem por agora. Neste momento, dá-me uma quebra de energia, talvez porque chegou a hora de almoçar e eu arrasto-me neste texto à procura de alguma coisa para dizer, mas não me acode mais nada do que Disembroil.
segunda-feira, 27 de dezembro de 2021
A era da zaragatoa
Nestes quase dois anos, os que dura a pandemia, já vivemos diversas eras. A era do confinamento, a era da máscara e, agora, a era da zaragatoa. Esta esteve sempre presente nas eras anteriores, mas tornou-se, por estes dias, o elemento central. As pessoas fazem filas para serem zaragatoadas. Também eu, há pouco, me coloquei numa dessas filas. Ela foi caminhando devagar e, por fim, tive direito a que me escarafunchassem o nariz com uma pequena zagaia. Ainda não sei o resultado, mas já nem faço prognósticos, pois estes nem mesmo no fim do jogo dão certo. Preciso de fazer uma visita a uma pessoa internada num daqueles sítios que exigem um teste. Caso tenha nota negativa, vou tentar fazer uma dupla visita. Há muito que se sabe que a matemática é fundamental para a vida civilizada, mas nunca se pensou que até uma simples análise tenha de ser calculada para se poder tirar o máximo proveito dela, caso ela permita tirar algum proveito e não obrigue a quarentenas, telefonemas para o serviço nacional de saúde e o temor do que poderá vir a acontecer, pois nestas coisas, o melhor é não ter qualquer certeza. Em compensação, o dia tem estado magnífico. É no Inverno que amo o Sol e os dias ensolarados trazem ao coração – e também à velha razão – uma alegria inesperada. Esperar os resultados da zaragatoa faz parte daqueles fenómenos que Peter Handke caracterizou, no título de um livro, como a angústia do guarda-redes antes do penalty. Uma pessoa pensa sempre naqueles com quem tem estado, se não vai ser causa da doença deles. Tudo isto é cansativo, mas há que aprender a viver de zaragatoa em zaragatoa.
domingo, 26 de dezembro de 2021
Uma reforma do Natal
Hoje é um domingo que vem depois de um sábado que parecia um domingo. Isto perturba-me a relação não apenas com o calendário, mas também com a realidade. Esta parece-me ainda menos verosímil do que habitualmente. Como é possível viver numa semana que, na prática, embora não em teoria, tem dois domingos, um num dia e o outro no dia seguinte. Se eu pudesse resolver estas coisas, haveria de propor que, assim como o dia da ressurreição de Cristo é móvel no calendário e fixo na nos dias da semana, também o dia de nascimento do mesmo Cristo ganhasse mobilidade no calendário, mas se tornasse fixo no dia da semana. Por exemplo, o Dia Natal seria sempre às quartas-feiras. Isso evitaria casos como aquele que acontece comigo. Pensar que existem dois domingos seguidos, sem que uma semana entre eles se intrometa, perturba-me. Pessoas menos caridosas hão-de achar que as Festividades não me fizeram bem à sanidade mental. Pensem como quiserem, mas isso não atinge a grandeza e o rasgo da minha concepção do Dia de Natal. Não é porque uma ideia tenha ocorrido a um asno que ela é má. A minha ideia é óptima, apesar de ser minha. O dia está triste, tristíssimo. Cinzento, chuvoso, sem gentes pelas ruas. Mesmo assim, arrisquei e fui a uma aldeia aqui perto que costuma ter, à beira da estrada, bancas de produtores locais a vender laranjas, marroquinas, tangerinas, tângeras, por aqui ditas tanjas, resultado da lei do menor esforço que permite às línguas progredirem em direcção à cacofonia universal. Não comprei tângeras nem tangerinas, mas laranjas e deixei-me levar por umas marroquinas. Esta piada era dispensável, além de ser de mau gosto. Espero, contudo, que ninguém fique a pensar, pelo facto de não comprado tangerinas nem tângeras, que tenho alguma coisa contra a cidade de Tânger. Não tenho. É quase noite e ainda não consegui adaptar-me a este segundo domingo.
sábado, 25 de dezembro de 2021
Deu em pantanas
Tudo pronto, alinhado à porta para ir para o carro. O almoço de Natal seria em Lisboa. Expectativa de ver as netas, de lhes oferecer os presentes, de sentir a sua animação de adolescentes. Um telefonema e tudo se esboroa. Uma das participantes autotestou-se e deu positivo. Devido aos contactos com parte dos que iriam amesendar, decidiu-se pela anulação da viagem e uma súbita nuvem de tristeza abateu-se por aqui. Apesar de não ter havido contacto, também nos submetemos ao ritual do escarafuncho. Por enquanto, tem havido uma sólida fidelidade ao negativo, mas há um conjunto de projectos que irão ser adiados ou, pura e simplesmente, cancelados. Planear é, por certo, uma coisa muito razoável. Contudo, a realidade, com a sua inclinação para a hipérbole, é pouco dada a razoabilidades. Faz o que muito bem entende e rasga em segundos aquilo que levou dias a projectar, quando não mesmo anos. O Natal do ano passado, apesar de tudo, ainda disfarçou, embora estivesse longe dos Natais canónicos. Este ano deu tudo em pantanas. Acho que vou pôr um CD na aparelhagem. Alba, um ensemble dinamarquês, interpreta canções de Natal escandinavas, numa gravação com o nome It Barn Er Fød - Old Yuletide Songs From Scandinavia. Quase há vinte anos que este CD faz parte do Natal. Há que encontrar alguma compensação. Deu em pantanas, escrevi lá em cima. Muito gostava de saber de onde veio essa infeliz expressão. Infeliz num duplo sentido. Infeliz porque é esteticamente feia e porque designa uma situação infeliz. Ainda por cima hoje é o dia em que todos devem dizer Feliz Natal.
sexta-feira, 24 de dezembro de 2021
A ordem do mundo
Assim como a torrada cai sempre com a face amanteigada para baixo, também, por mais cuidado que se tenha e listas que se façam, falta sempre, no dia 24, qualquer coisa essencial para os festejos natalícios. E uma pessoa lá tem de se pôr a andarilhar por aqui e por ali para adquirir o que estava em falta. Foi o que me aconteceu. Fui despachado, logo de manhã, a grande velocidade, para ir a um supermercado comprar coisas mais que necessárias e de seguida que fosse pelo Bolo Rainha encomendado. Zeloso, cumpri, embora tenha aproveitado para passar por uma garrafeira e reforçado o stock de vinhos e, tão importante como isso, passei por uma farmácia e comprei seis testes ao SARS-COV2. Perguntei se tinham. Sim, responderam. Posso levar seis? Os que quiser, ouvi. Muito bem, trouxe seis sem ficar com a consciência maculada por um espírito açambarcador. Aquela farmácia terá testes para dar e vender, embora só venda. Cumprida a missão, voltei para casa e estou emaranhado neste dia acinzentado, todo ele melancolia, embora as pessoas andem pelas ruas, encham os supermercados, lojas, cafés e pastelarias. Ao olhar pela janela, ao observar a palidez da luz, ocorreu-me que a ordem do mundo está longe da perfeição. Não quero com isto incorrer em alguma heresia, mas não seria destituído de sentido que essa ordem do mundo, chegadas as festividades de Natal e de Ano Novo, suspendesse a pandemia, para as pessoas poderem desfrutar sem constrangimentos das tradições. A seguir, recomeçava, como recomeçam os jogos de futebol, após o intervalo. Fora eu a ordenar o mundo e muita coisa tornar-se-ia perfeita, até a própria desordem seria ordenada, com tempo para o caos e tempo para o cosmos. Agora chove bem e talvez neste aguaceiro exista mais sabedoria do que na minha visão sobre a ordem do mundo. Talvez, saliento.
quinta-feira, 23 de dezembro de 2021
Princípio da Incerteza
Acordei cedo e, quase de imediato, fui submetido ao ritual do autoteste à COVID-19. Pedi que me escarafunchassem as narinas com a zaragatoa. Que palavra horrível inventaram. Suportei a actividade amadora, embora determinada a fazer bem a operação. A seguir entreguei-me a uma sessão de espirros. Não vale a pena preocupação. Cumpri a etiqueta respiratória. Se contaminei alguma coisa, foi a manga da camisola que tinha vestida. Alguns sintomas desagradáveis, coincidentes com os da nova variante, levaram-me ao acto. Se isto se passasse há dois anos, nem ligava, pois, todos os Invernos tenho direito pelo menos a uma destas visitas inoportunas. Mas não posso evitar o Zeitgeist e achei que me deveria submeter à pequena sessão de tortura narinal. O teste deu negativo, embora eu continue com os mesmos sintomas. Aqui, poderia fazer uma transferência audaciosa, do princípio da incerteza de Heisenberg, da mecânica quântica para o meu estado existencial. Caso fizesse tal transferência, que não faço, diria que quanto menor for a incerteza dos meus sintomas, tanto maior será a incerteza da sua causa e vice-versa. O problema é que eu sou um mero narrador, um ser virtual criado pela imaginação delirante de um autor espúrio, e não uma partícula subatómica a voltejar feita barata tonta em torno de um núcleo. Eu não tenho posição nem momento linear, embora sinta algum corrimento nas narinas e impressões rugosas na garganta. Invenções do autor, claro, que faz tudo isto para me prejudicar a reputação. Já pensei em fundar um sindicato de narradores, para se defenderem da prepotência dos autores, mas a inclinação individualista tolheu-me o ímpeto revolucionário e justicialista. O pior foram estes três espirros. Cumpri a etiqueta respiratória, pois até um narrador virtual tem etiqueta respiratória, mesmo que não respire.