sábado, 11 de janeiro de 2025

Ciprestes

Está um belo entardecer, com um sol animado e uma temperatura amena. Os campos que se avistam do sítio onde me encontro estão verdejantes, e uma melancolia suave envolve toda a realidade, onde pontuam velhos ciprestes, que não desistem de apontar para o alto. Olho-os e penso que são árvores de outra época, na qual as coisas elevadas eram dignas de culto. As coisas belas são difíceis, pensava Platão, mas a nossa época prefere a facilidade. Está cheia de facilitadores, de gente que facilita aquilo que é fácil. Ao desprezar a beleza – os artistas, nas suas muitas revoluções, pretenderam matar a beleza, despojar a arte da sua presença – e o difícil, o fácil torna-se difícil, e o acesso fácil agora difícil precisa de ser facilitado. Talvez por isso os ciprestes sejam árvores pouco amadas. Haverá quem diga que esse pouco amor está ligado à sua presença nos cemitérios, à sua associação com a morte. Servirá como desculpa, mas a força retórica com que o cipreste fala aos humanos, uma força muito mais incisiva do que qualquer outra árvore, cujos ramos se lateralizam, torna-se excessiva para uma audiência incapaz de perceber que nem tudo no mundo se equivale, que a ignorância não é a mesma coisa do que a sabedoria ou a douta ignorância, que a verdade e a falsidade têm significados diferentes, ou que a beleza e a fealdade não são uma mera questão de gosto subjectivo. Vou dar um passeio e contemplar os ciprestes.

sexta-feira, 10 de janeiro de 2025

Um dia gasoso

Os dias continuam no estado gasoso. Evaporam-se, como descobri aqui no outro dia. A meio da manhã saí da cidade onde me acolho e fui almoçar com as minhas netas a Campo de Ourique, num pequeno restaurante no Jardim da Parada. Antes de ser restaurante, era um café, onde ia uma vez por outra. Elas estavam cansadas. Uma semana de aulas deixam os alunos exaustos ou, talvez, estejam já consumidos antes de as aulas começarem. Um almoço sem conversas escolares, para animar os espíritos e deixar o spleen adolescente a pairar ao longe. Depois, as horas passaram, a noite, como um exército determinado, fez ressoar as suas botas cardadas e tomou de assalto a fortaleza do dia, um dia triste, com uma atmosfera húmida, carregado de cinza. Passei por uma livraria e comprei a tradução portuguesa, saída em Agosto do ano passado, do Parménides, de Platão. Além do diálogo, o livro tem ainda as Cartas. Ora, é o começo da carta oitava que tem potencial para deixar o leitor perplexo: Farei o possível por vos elucidar acerca dos vossos próprios sentimentos, a fim de que se vos torne deste modo possível levar uma vida perfeita e feliz. Imagino que seja necessário possuir uma enorme presunção para pretender elucidar alguém dos seus próprios sentimentos. E não bastando isso, supor que tal elucidação possibilitará ao elucidado levar uma vida não apenas perfeita, mas também feliz. Se Platão tinha esta pretensão de psicoterapeuta, não admira que, com o desenrolar dos séculos, os elucidadores de sentimentos e agentes da perfeição e felicidade alheias se tenham tornado legião. Pena é que Platão não tenha seguido a sabedoria do seu mestre Sócrates e declarado que sobre os sentimentos dos outros – e mesmo dos próprios – só sabe que nada sabe. Teria sido um grande contributo para a humanidade.

quinta-feira, 9 de janeiro de 2025

O dia de hoje

Uma quinta-feira cheia de tarefas, ainda por cima começada, ainda não eram oito e meia, com a visita dos funcionários de uma empresa que montou, há umas semanas, uma nova caldeira aqui em casa. É uma caldeira cheia de sensores e, por isso, muito sensível. A sensibilidade é tão apurada que decidiu dar erro e não trabalhar, o que me fez passar em branco o duche matinal de ontem e me deixou uma sensação de impureza durante todo o dia. A vinda dos técnicos foi uma boa notícia, a que se adicionou o restabelecimento do dispositivo na sua função. Quando se foram embora, coisa que não foi fácil, respirei aliviado e dirigi-me para o duche matinal, embora a manhã já fosse a meio. Depois, como um mortal entre mortais, tive de providenciar a maneira de pagar as contas e fiz-me à vida, pois múltiplas empresas me esperavam. Fi-las com a sensação de pureza que um bom duche proporciona, como se tivesse acabado de ser baptizado no Rio Jordão. Chegado a casa, saí de imediato para me consolar no café aqui ao lado, pertença agora de um casal de brasileiros, em que ela tem um enorme talento para fazer bolos, múltiplos bolos, combinações requintadas de sabores, todos de uma grande leveza e sem excesso, mas também sem defeito, de açúcar, tudo na justa medida aristotélica, nesse meio-termo virtuoso que torna as coisas valiosas. Raramente, mas muito raramente, me entrego a este despropósito à tarde, mas o dia de hoje obrigou-me a um exercício de consolação. Teria aventuras para contar, as quais engrandeceriam a minha gesta, mais heróica que a do Cid e mais alucinada que a do Quixote, mas guardo isso para quando escrever as minhas memórias, caso não as perca pelo caminho. Por hoje, registo apenas o dragão em forma de bolo que espetei com um garfo e devorei com os dentes com que fui dotado e aqueles que fui adquirindo.

quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Metamorfoses

No pouco que vejo de televisão, consegui encontrar dois equívocos fonéticos cujas consequências só se explicam a partir das metamorfoses descritas por Ovídio. A coisa conta-se em poucas palavras. Num caso, um homem é transformado numa cidade; no segundo, outro homem, com uma casa ilustre, é transformado em marca de atum, senão mesmo em atum. Páris, aquele que ofereceu o pomo da discórdia, raptou Helena, enfureceu os gregos e desencadeou a guerra de Tróia, foi tomado por Paris, a velha capital francesa, que, no tempo de Alexandre, o outro nome de Páris, ainda não existia. Talvez a troca fonética, neste caso, faça ainda parte do castigo imposto por uma das deusas preteridas pelo dito Páris, talvez Atena, talvez Hera, quando decidiu entregar a maçã dourada a Afrodite, o que significava que a escolhera como a mais bela das três. Um homem avisado não se meteria nessas alhadas e, caso fosse coagido, adiaria o julgamento até que o caso prescrevesse. A outra situação de dissonância fonética está ligada a uma festa fúnebre, a trasladação dos restos mortais de Eça de Queirós para o Panteão Nacional. Alguém, ao elencar as  obras do escritor, lembrou-se de referir a Ilustre Casa de Ramirez. Nem a casa, nem o Ramires fizeram mal algum merecedor da metamorfose. O caso explica-se pelo apetite da locutora. Enquanto lia a lista, deu-lhe a fome e pensou numa sandes de atum. Do atum passou, por metonímia, para Ramirez, marca que ela usa no lar, e uma casa ilustre torna-se parte de um plano para montar um negócio de sandes. A locução nas televisões tornou-se, quando se trata da língua portuguesa, num dos lugares mais criativos. E ainda há quem fale na televisão como um dispositivo de alienação.

terça-feira, 7 de janeiro de 2025

Uma tarde gasosa

A tarde evaporou-se; nem sei como, nem porquê. O uso da ideia de evaporação pode parecer bizarro, mas é congruente com os tempos que vivemos. Segundo um conhecido sociólogo polaco, Zygmunt Bauman, vivemos na modernidade líquida. Se ele tem razão, faz sentido pensar que as tardes, bem como as manhãs e as noites, sejam também líquidas, pois pertencem a um mundo líquido. Como é que  uma substância em estado líquido se transforma em vapor? Em termos genéricos, isso acontece por absorção de energia térmica. Foi o que aconteceu à minha tarde de hoje. Ela, devido às transformações ocorridas na modernidade, como ensinou Bauman, passou do estado sólido para o líquido, ainda antes de nascer. E assim continuaria se fosse uma tarde normal. Seria um rio a deslizar com a suavidade para a foz, onde entraria, pelo delta do crepúsculo, no oceano da noite. Contudo, de uma maneira inexplicável, começou a absorver energia térmica, até que passou para o estado gasoso. Nessa altura, sentei-me aqui e disse: a tarde evaporou-se. Fosse eu sociólogo, radicalizaria a visão do mundo moderna recebida de Bauman. Vivemos na modernidade gasosa. Esta transformação na configuração do sistema-mundo foi prenunciada – se não mesmo anunciada – em Portugal, na indústria e comércio de refrigerantes. Quando era criança e adolescente, não havia coca-cola, bebida proibida de entrar no país, mas havia laranjadas e gasosas, que tinham mais gás que uma botija de 13 kg. Foram estas que anunciaram a nova fase da modernidade que acabei de cunhar. Há um momento de pré-anúncio, mas de que não me lembro. Trata-se do pirolito, uma bebida gaseificada, cuja garrafa tinha um engenhoso método de fechamento. Uma bola de vidro, pressionada pelo gás da bebida – imagino que uma mistela – fechava a garrafa. Contudo, nunca entrei em contacto com pirolitos. Também as gasosas não eram coisa com que me desse. Se queremos perceber como tardes, noites e manhãs se evaporam, há que estudar a indústria refrigerante e o antigo mercado de pirolitos e gasosas. Uma arqueologia do estado gasoso do mundo.

segunda-feira, 6 de janeiro de 2025

Viagem sem fim

Terão já chegado ao estábulo? Estou a falar dos Reis Magos. Hoje é Dia de Reis. Ora, há duas interpretações possíveis do dia. Uma seria a comemorativa. Comemora-se um evento que se imagina ter acontecido. Uma outra diz que é o dia em que os Reis Magos visitam mais uma vez o Menino nascido a 25 do mês passado. Não seria um dia de evocação, mas de realização. A primeira interpretação, a interpretação literal, reduz as narrativas religiosas a acontecimentos históricos. Isso coloca um terrível problema de atestação, a qual é impossível. A outra, a interpretação simbólica, é um caminho, não para uma rememoração, mas para descoberta daquilo que se oculta nos símbolos. A visitação dos Magos não é um facto, mas um símbolo, e qualquer símbolo é um jogo onde os opostos coexistem. O caminho será meditar nos opostos que o símbolo da visitação contém, e não são poucos. Cada um poderá começar por aquele que lhe seja mais manifesto. Depois encontrará outros, numa viagem que pode não ter fim.

domingo, 5 de janeiro de 2025

Da permanência

Presumo – mas presunção e água benta, cada um toma a que quer – que S. Pedro, o CEO da grande multinacional que gere o clima neste planeta, tenha tido necessidade de mostrar quem manda e de pôr a concorrência no devido lugar. Tomem lá um domingo de Inverno. Recebemo-lo de bom grado, pensando que assim as coisas estão no seu devido lugar. Quando acordei de manhã – já não era muito, muito de manhã, o que contraria os meus hábitos – ventava com violência, numa aliteração que fazia pensar em vendavais. Há pouco, as ruas foram fustigadas por aguaceiros fortes, que se interrompiam, anunciando uma era de paz, mas logo voltavam, como se as ruas ainda não estivessem suficientemente limpas. As almas, mesmo as mais enlameadas, estavam recatadas, evitando encontros com a água purificadora caída dos céus. O resultado de tudo isto é uma afirmação da permanência contra a mudança: S. Pedro permanece CEO da empresa climática, e eu permaneci em casa, sem vontade de ir à rua. Já basta, amanhã, ter de ir fazer uma visita ao mundo exterior que me espera.

sábado, 4 de janeiro de 2025

Tempo de farsa

Em 1881, Nietzsche publicou um livro com o título Morgenröte (Aurora, em tradução portuguesa). Considera, a certa altura, que, nesses dias, o poder dos costumes foi surpreendentemente enfraquecido. Mais à frente, esclarece o que pretende dizer: onde não há tradição a comandar, não há moralidade; e, quanto menos a vida é regida pela tradição, menor é o alcance da moralidade. A moralidade e os respectivos princípios não seriam outra coisa do que um longo hábito. A tradição seria a colecção desses hábitos que domam as existências individuais para as submeter ao grupo. E isso, por influência da ciência moderna, está posto em causa. Neste momento, um pouco por todo o Ocidente – pois isto é um negócio ocidental –, deparamo-nos com um espectáculo curioso e, na verdade, risível. As pessoas gemem pelos costumes, votam em defesa dos costumes mortos, dos bons velhos costumes, elegem os trapaceiros que lhes prometem trazer de volta a moralidade dissolvida pela morte dos antigos costumes. Ao mesmo tempo, não estão dispostas a dispensar os benefícios da ciência e, ainda menos, os da indústria. Ora, aquilo que mata as tradições, os velhos costumes, os hábitos instalados, é a ciência e a indústria, o casamento entre o conhecimento e a economia de mercado. Todas as revoluções industriais destruíram hábitos enraizados. Como essas revoluções se sucedem cada vez mais rapidamente, os hábitos destruídos estão cada vez menos enraizados. O sentimento de perda será cada vez menor, mas isso torna a vida mais inquietante, pois o próprio passado perde força. A reacção contra a primeira revolução industrial foi muito mais violenta do que contra a revolução trazida pela informática. Isso significa que o passado era um consolo ainda potente para acalmar os espíritos perdidos, expulsos do paraíso pré-industrial. O romantismo não foi outra coisa senão uma revolta e uma modalidade de consolação. A revolução em curso, a da Inteligência Artificial, não vai gerar nenhum romantismo, mas apenas farsas sem fim, onde se grita pelos velhos costumes enquanto se abraça aquilo que os destrói. Este é o nosso tempo: o da farsa.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

Para uma sociologia da imaginação

Como tantas vezes me acontece, um acaso levou-me a um romance – o único do autor – de Branquinho da Fonseca, Porta de Minerva. Estava numa estante e nunca pensei em lê-lo. Contudo, peguei nele e duas circunstâncias levaram-me a mudar de opinião. Uma absolutamente lateral. A capa da minha edição é do pai de um amigo meu, um dos mais importantes designers gráficos portugueses do século XX. A segunda, imagino que a mais decisiva, foi a longínqua memória de ter lido a novela O Barão, a obra-prima do escritor. Quando a li, há décadas, fiquei impressionado, mas não voltei a ela, nem a qualquer outra obra do autor. Entrei, então, pela Porta de Minerva e deparo-me com uma Coimbra talvez dos finais da República. No terço que li, tudo gira em torno dos estudantes, dessa incompreensível, para quem não estudou em Coimbra, praxe, da terrível divisão entre caloiros e doutores, das tradições académicas. O romance não tem o poder magnético de O Barão. Não deixa, no entanto, de ser um interessante documento sociológico sobre uma realidade social que teve no país um peso desmedido e que o conformou naquilo que ainda é hoje, apesar de, imagino eu, esse peso ter sido reduzido drasticamente. Penso, não poucas vezes, que nos falta uma sociologia da imaginação nacional. O objecto de investigação seriam as obras de arte, o trabalho dos grandes artistas, mas também dos medianos e dos menores. O que estaria em jogo não seria a qualidade estética das obras, mas como a imaginação desses artistas nos imagina na narrativa, no teatro, na pintura, na escultura, na poesia, no cinema, na música. Uma coisa é a realidade objectiva que a história e a sociologia pretendem captar, a vida crua com os seus eventos. Outra bem diferente é aquela para que aponta a flecha do desejo, desejo esse que alimenta a faculdade de imaginar. Deste ponto de vista, uma obra menor de um autor esquecido pode ser tão importante, ou mais, do que uma obra do cânone, pois esta será sempre uma excepção. E os nossos desejos raramente são excepcionais.

quinta-feira, 2 de janeiro de 2025

A vida prosaica das ideias magníficas

Já vamos no segundo dia do novo ano e ainda não vi nada de substancialmente diferente daquele que acabou. Quase me apetece perguntar por que espúrias razões acabaram com o ano, se o novo é igual. É provável que, com o desenrolar dos meses, o novo se diferencie do velho, mas sempre se podia ficar mais um tempo em 2024, desacelerando o tempo, dando mais e maiores horas a cada dia, alterando mesmo o calendário para 14 ou 15 meses. Todas estas ideias magníficas que me nascem na mente encontram a barreira inultrapassável que o homem comum ergue contra o génio, pois só um génio poderia ter ideias tão desaparafusadas. Este génio dedicou o dia de hoje ao trabalho, embora – pois sempre é um génio envelhecido – tivesse de passar pela dentista, uma rapariga novinha e doce que dificilmente se imagina, mesmo que se seja genial, de broca em punho ou de alicate a puxar um dente tomado por uma qualquer moléstia (o que não era o meu caso), a superintender a boca dos pacientes. Não contente com isso, ainda fez uma visita à farmácia, onde, além de comprar medicamentos, trocou umas palavras com o farmacêutico de serviço sobre certos efeitos secundários que um medicamento não se cansa de produzir. No fundo, a vida é isso: uma salsada de consequências benéficas misturadas com efeitos secundários. Chegará o momento em que os efeitos secundários suplantarão as consequências benéficas, mas as coisas são o que são e também o que não são. O não-ser ainda fará, de algum modo, parte do ser, mas hoje não estou inclinado para a ontologia. Não choveu neste segundo dia do ano. Não me parece que isso seja um bom presságio. Não tarda e teremos as barragens a reclamar pela falta de água. Um péssimo acontecimento.

quarta-feira, 1 de janeiro de 2025

Primeiro dia

Chegou o crepúsculo do primeiro dia do ano. Recolhi-me, como se este fosse um dia de meditação, mas não meditei sobre nada. Talvez tenha meditado, mas essas meditações foram tão secretas que nem o próprio meditador deu por elas. Na rua, havia uma luz solar límpida, mas a preguiça evitou que me expusesse a ela e ao frio que a acompanha. O sol de Inverno, como todos sabem, é uma armadilha para incautos. Disfarça-se de promessa calorosa para atrair os ingénuos ao frio que faz reinar. As festividades estão consumadas. Amanhã, a realidade volta com toda a sua colecção de imperativos. Obedecerei, pelo menos a alguns; a outros deixá-los-ei flutuar até que se dissolvam por si mesmos. Fui fechar uma persiana. Olhei para a rua e não havia ninguém, nem os constantes passeadores de cães, nem os extraviados da família, nem os loucos que aproveitam estes dias para exibir gratuitamente a sua loucura. Uma quietude como a que carcomia as cidades naqueles dias em que uma pandemia tomou de assalto a casa do homem. Podia ter evitado esta metáfora, tão cansada está que não passa de uma catacrese; mas também eu estou cansado e não me apetece inventar metáforas no primeiro dia do ano. Não me ficava bem. Seria um exercício exibicionista, apesar do anonimato que cobre autor e narrador destes textos. Deveria escrever anonimatos, pois ambos são anónimos, mas com uma diferença substancial. No caso do autor, foi-lhe dado um nome no registo civil e no baptismo. Já o narrador não foi registado, nem baptizado, tão pouco crismado. O autor negou-lhe o direito mais básico que é ter um nome como chave de uma identidade. Não me vou revoltar com isso, pois o primeiro dia do ano é o menos indicado para revoltas, sublevações e insurreições. Cumpro ordens. Foi para isso que o autor me criou, para narrar o que lha passa pela mente, embora eu não tenha a certeza se a sua mente existe de facto, mas se fui criado por ela, pelo menos terá existido.

terça-feira, 31 de dezembro de 2024

Fim de ano

O último dia do ano pouca diferença tem do primeiro dia do ano seguinte, disse-me há pouco um amigo a quem telefonei para dar os parabéns. Não sei, continuou, se é preciso mais pontaria para nascer no último dia do ano ou para o fazer no primeiro. As minhas reflexões sobre o calendário nunca tinham chegado a este capítulo, mas também não nasci no último dia do ano; nem no primeiro. O ano despede-se. Fá-lo como o fazem todos os anos. Em silêncio. Os homens, porém, não se calam e hão-de encher o planeta com o seu vozear sem fim. Daqui a pouco irei fazer uma caminhada, coisa pequena, pois suponho que estará frio na rua. O próprio Sol parece ter perdido energia, mas isso é uma ilusão. Ele continua a arder com vigor, numa afirmação de poder que nós, seres humanos, agradecemos, mas que não deixamos de temer, pois não nos vá acontecer como aconteceu ao pobre Ícaro. Lá fora, uma criança chora, o baloiço range, os transeuntes apressam-se, talvez tenham um réveillon. Não, não, dantes é que havia réveillons, hoje não se usam palavras francesas para designar coisas dessas. Aquiesci, mas não faço ideia do que seja a New Year’s Eve. O melhor é não me meter por esse caminhos e meditar, enquanto caminho, na passagem de ano.  Amanhã será outro ano. E outro dia.

segunda-feira, 30 de dezembro de 2024

Uma lógica insurreccional

Foi em Vico que li, como título de um capítulo de Ciência Nova, a expressão lógica poética. O conteúdo desse capítulo não vem ao caso, mas apenas a expressão. Poética surge como uma qualificativo da lógica, permitindo pensar que existem lógicas que não são poéticas. Isso conduz à questão de saber o que constitui a poeticidade de tal lógica. O melhor caminho, porém, será partir da poesia e tentar descobrir nela a lógica que a ordena. O discurso poético é uma insurreição contra a semântica, a sintaxe e a própria lógica que preside ao discurso corrente. Rasga o sentido corrente das palavras, cultivando a ambiguidade através da anfibologia, da metáfora, da sinédoque ou da metonímia. Subverte as regras sintácticas ordenadoras do discurso usando hipérbatos, anástrofes ou, de modo radical, sínquises. Apaga os imperativos dos velhos princípios lógicos ao cultivar oxímoros, paradoxos, antíteses e contradições. Há uma profunda coerência no ataque poético ao discurso corrente e à lógica que preside ao pensamento correcto. Poderíamos dizer que há uma coerência na produção da incoerência semântica, sintáctica e lógica. O estranho é que, apesar desta insurreição contra a coerência do discurso, a poesia não é destituída de sentido, nem de ordem sintáctica ou de lógica. Um poema abre o pensamento, a linguagem e a experiência para um além que estava oculto pela semântica, a sintaxe e a lógica correntes. A poesia é dotada de uma lógica insurreccional contra os limites semânticos, sintácticos e lógicos que determinam o horizonte do pensamento e da experiência dos homens. Oferece pontos de fuga e vislumbres de mundos possíveis que, por norma, parecem impossíveis.

domingo, 29 de dezembro de 2024

A fria vingança

Como é sabido – a teoria da literatura não esquece de o referir – há uma descoincidência entre autor e narrador. Apesar destes textos não serem literários ou, no melhor dos casos, serem exemplos de má literatura, também há neles não apenas um desencontro entre autor e narrador, mas um verdadeiro conflito de pontos de vista. Eu, pobre narrador, sou uma criação ficcional de um autor anónimo, o qual não me permite fazer coisas que ele faz. Por exemplo, falar de política. Ora, descobri há pouco uma enorme colecção de artigos do autor sobre esse tema. Crónicas publicadas num jornal regional, de acordo com a sua natureza provinciana, para não dizer paroquial ou mesmo tacanha. Estive a ler textos de 2012 e de 2024. Senti-me recompensado e vingado. Ele envelheceu. Os textos de 2012 eram muito mais vivos e acutilantes do que os actuais. Não foi só o corpo dele que envelheceu, o olhar que perdeu fulgor, mas a sua verve e o modo como expressa as suas extraordinárias – quero dizer, disparatadas – ideias sobre a coisa pública também envelheceram. Falta-lhes a jovialidade e sobra-lhes o cansaço. Enquanto narrador, dava-lhe um conselho. Dir-lhe-ia: não guardes para amanhã o que podes fazer hoje. E quando ele me perguntasse o que deveria fazer hoje, dir-lhe-ia: deixar de escrever para jornais. Isto, porém, é impossível, pois é um autor despótico que nunca se permitirá escutar o que um narrador tem para lhe dizer. Assim, e para vingança, vou deixá-lo patinar no seu envelhecimento, que será também o seu envilecimento, até que os seus escritos não sejam mais do que um longo exercício de decrepitude. A vingança serve-se fria.

sábado, 28 de dezembro de 2024

Poeta, não profeta

Em 1572, foi publicada a primeira edição de Os Lusíadas. O poema de Camões é uma prova clara de que poeta e profeta não coincidem na mesma pessoa. Talvez se pudesse mesmo afirmar que a capacidade poética é inversamente proporcional ao poder profético. Vale a pena visitar a sexta estrofe do primeiro Canto: E vós, ó bem nascida segurança / Da Lusitana antiga liberdade, / E não menos certíssima esperança / De aumento da pequena Cristandade; / Vós, ó novo temor da Maura lança, / Maravilha fatal da nossa idade, / Dada ao mundo por Deus, que todo o mande, / Pera do mundo a Deus dar parte grande. Como se sabe, trata-se da dedicatória a D. Sebastião. Quase tudo o que nela se afirma é manifestamente falso. É verdade que essa falsidade só se revelou em 1578, na batalha de Alcácer Quibir. Não, D. Sebastião não foi a segurança da liberdade dos portugueses, pelo contrário, nem confirmou a certíssima esperança do aumento da pequena Cristandade. Ainda menos se tornou o temor dos mouros. A maravilha fatal daquele tempo, foi fatal, mas não uma maravilha, e foi fatal não para os inimigos, mas para si mesmo e para os portugueses. Escrevi que quase tudo o que Camões afirma sobre D. Sebastião é falso. Não disse tudo pois não sei se os últimos dois versos são verdadeiros ou falsos. O que sei é que os poetas farão melhor em não se pôr a fazer adivinhações rimadas sobre a vontade de Deus, a qual é, para os homens, mais escura que a noite escura. Isto partindo do princípio de que Deus existe e tem uma vontade, pois mesmo que se admita a existência de Deus, não é claro que um ser divino tenha uma vontade, coisa que parece ser humana, demasiado humana, para que possa ser atribuída a Deus.

sexta-feira, 27 de dezembro de 2024

Por amor ao dever

As festividades natalícias estão consumadas, o que é um grande alívio. Hoje, já me pude sentar à minha secretária, sem que obrigações – informais, por certo, mas mesmo assim obrigações – me façam levantar e andar por aqui e por ali. Coisa que contraria o meu espírito de sedentário ultramontano. A minha viagem preferida é aquela em que nunca saio do mesmo lugar, onde o princípio, o meio e o fim coincidem. Não é uma viagem fácil, pois existe sempre uma pressão para que a pessoa se desvie da sua rota e ande por caminhos que não são os seus, e todos os caminhos que existem por este mundo não me pertencem. Andar por eles é como invadir uma propriedade privada. Imagino que a espécie humana terá se não um gene, pelo menos uma forte inclinação cultural para andar sempre em movimento. Não por acaso, colonizou praticamente todo o planeta e, não contente com isso, sonha colonizar outros planetas. Isto coloca um problema. Terei uma anomalia genética que me eliminou o gene do nomadismo ou a minha socialização gerou um mostro sedentário? Seja qual for a resposta a esta excruciante questão, a verdade é que quando viajo no mesmo sítio sinto que vou muito mais longe do que quando me ponho a viajar como um turista. Turista acidental, claro. Voltando às festividades natalícias que em teoria são do meu agrado, mas que na prática se tornaram penosas, a boa notícia é que o conjunto de deveres estão cumpridos. E isto pode ser utilizado como um excelente exemplo de acção moral, segundo o critério de Kant. Cumpro os deveres natalícios não por sentir neles um interesse particular, nem por ter uma especial inclinação por eles, mas simplesmente por serem um dever. Faço-o por amor ao dever e não porque tema as consequências de não os cumprir ou espere um benefício pelo seu cumprimento.

terça-feira, 24 de dezembro de 2024

Fazer exercício

Foi o meu exercício matinal. Tive de ir a uma rua desconhecida de uma cidade aqui ao lado. Como se tornou moda, também esta cidade tem um fascínio – talvez um fetiche – com o reordenamento do trânsito, alterando-o segundo um critério tão secreto que nem os próprios responsáveis pelas alterações o conhecem. Valeu-me uma aplicação denominada Waze, que me levou à porta do estabelecimento a que queria ir. Além desta capacidade de me guiar pelo labirinto das ruas cheias de proibições, permissões e sentidos obrigatórios, tem uma outra, milagrosa. Ao dizer chegou ao seu destino, eu parei o carro, liguei os quatro piscas, saí, recolhi a encomenda, paguei – tudo isso sem que um polícia se interessasse pelo meu carro. Terei, um dia destes, de acender uma vela a S. Waze, protector dos infractores de estacionamentos proibidos. Talvez – penso agora – a razão tenha sido outra. Os agentes da autoridade, tomados pelo espírito natalício, fecham os olhos a estes pequenos delitos de trânsito. Uma terceira possibilidade é que andem todos entretidos a comprar os últimos presentes de Natal para oferecer aos cônjuges ou candidatos a cônjuges. Declaro, por minha honra, que não fui comprar nenhum presente, nem qualquer coisa que se relacione com o Natal. Fui a uma mercearia buscar a tradução que me faltava, das três publicadas em Portugal, do Ulisses, de James Joyce. O proprietário do estabelecimento tinha-a anunciado num dos sites de venda de livros em segunda mão e, como era aqui ao lado, aproveitei para fazer exercício. Estas vésperas de Natal não são fáceis.

segunda-feira, 23 de dezembro de 2024

Singularidade e comunidade

Os versos de John Donne, No man is an island, / Entire of itself; / Every man is a piece of the continent, / A part of the main, tiveram uma enorme fortuna, apesar de terem sido escritos no século XVII, época em que a afirmação do indivíduo, enquanto singularidade diferenciada do todo, começava a estabelecer-se e a lançar as raízes do individualismo posterior. Imagino, não poucas vezes, que a arte do romance está intimamente ligada a essa tensão entre o indivíduo e a totalidade – o continente, no poema de Donne. Em A Parede, Marlen Haushofer radicaliza essa individualização, mas para encontrar uma comunidade mais funda. A personagem, uma mulher de que nunca se conhecerá o nome, descobre que, de um momento para o outro, ficou separada do mundo humano por uma parede ao mesmo tempo invisível e intransponível. Mais, começa a ter razões para pensar que a espécie humana terá praticamente desaparecido. Esta singularização forçada e radical – imposta não se sabe bem nem porquê, nem como, nem por quem – leva-a a procurar refazer o continente, agora com os animais com que estabeleceu laços no território onde ficou confinada. A protagonista descobre que existe uma rede mais funda do que aquela que se estabelece socialmente com seres da mesma espécie. Para ela, na morte destes seres – do cão, da gata, do vitelo – podem aplicar-se os versos finais do poema de Donne: Any man's death diminishes me, / Because I am involved in mankind. / And therefore never send to know for whom the bell tolls; / It tolls for thee. Ela morre também na morte deles. A radicalidade da narrativa de Marlen Haushofer torna patente a necessidade de comunidade – e de comunhão – sentida pelos humanos. Uma experiência bem diferente é a de Peter Kien no romance Auto-de-Fé, de Elias Canetti. Ele é obsessivamente solitário e intrinsecamente misantropo. É a manifestação de uma crença e modo de ser contrários ao verso de Donne. Kien é uma ilha rodeada por livros. E quando estabelece relação com Therese – primeiro, sua governanta; depois, mulher – o desastre é total. A saída da singularidade e o fazer parte de uma comunidade, tão pequena quanto a de um casal, é a porta aberta para todas as desgraças. O romance moderno, aquele que poderá ter nascido com o D. Quixote, de Cervantes, o Simplicissimus, de Johannes von Grimmelshausen, ou, antes destes, Gargântua e Pantagruel, de Rabelais, parece ser uma meditação contínua sobre a singularidade de seres que só podem existir mergulhados numa totalidade.

domingo, 22 de dezembro de 2024

Pequenas blasfémias

As percepções mudam mais rapidamente do que pode imaginar, disse, depois de intróito formal dos cumprimentos, o padre Lodovico Settembrini. Está a falar por enigmas, respondi. Ah... tem razão, ultimamente tenho sido acusado com regularidade de estar a ficar enigmático. Se fosse misterioso, ainda compreendia, volvi. Estava a referir-me ao romance que estou a ler. Melhor, a reler mais uma vez, afirmou o padre Lodo. Perante o meu silêncio, continuou: trata-se do Ulisses, do Joyce. Não me parece uma leitura própria de um sacerdote jesuíta, disparei. Ele, porém, riu-se e informou-me, sentencioso: não há leitura que não seja própria de um jesuíta, já o devia saber. Saber, eu sabia. Era dele, do Ulisses, que eu estava a falar, das percepções que mudam. O livro foi publicado em 1922, em França; a sua importação foi proibida para o Reino Unido até ao início da década de trinta. Também os EUA o proibiram até 1933. Consideravam-no obsceno. As percepções de obscenidade, nesses países, demoraram cerca de uma década a mudar. Hoje, porém, ao ler-se o romance – continuou o padre –, nem se compreende a acusação. Muito me conta, respondi a rir. Pensava que aquilo que o poderia preocupar não era tanto o sexo, mas a heresia inicial de Buck Mulligan, o ritual blasfemo a parodiar, com a bacia de barbear, o sacrifício eucarístico. Já não tenho idade para me preocupar com essas coisas. Se vivesse naquela época – sublinhou, com vivacidade italiana, o meu amigo –, talvez me sentisse indignado, mas não passa de literatura. Ainda bem que o diz, respondi. Temos um jesuíta contra o Índex, alvitrei. Está atrasado no tempo, ouvi do outro lado. O Index Librorum Prohibitorum foi instituído por Paulo IV, em 1559, e abolido por Paulo VI, em 1966. Não me parece – disse eu – que, apesar do Índex ter passado à história, a leitura do Ulisses, com essa referência constante ao paganismo grego, seja a leitura natalícia mais adequada. Pelo menos, para um sacerdote. Não se preocupe, respondeu-me. Nós temos um mecanismo que trata de limpar as possíveis manchas trazidas pelas leituras ou pela vida. Uma espécie de tira-nódoas, concluí. Não obtive resposta à pequena blasfémia.

sábado, 21 de dezembro de 2024

Um portal

Por vezes, as traduções operam verdadeiros milagres. Datado de 1960, o filme Le Petit Soldat, de Jean-Luc Godard, não teve por título, neste pequeno país, o literal O Soldadinho, mas O Soldado das Sombras. Uma tradução feliz, não apenas porque capta a natureza sombria do exército a que o soldado pertence, mas pela conjugação do efeito metafórico do vínculo entre soldado e sombras e, ainda mais, pela presença da aliteração na primeira sílaba de ambas as palavras. Talvez a tradução seja contraproducente, pois contém tal força que dispensa o próprio filme. Ela abre a imaginação a uma viagem que começa no país das sombras que, como qualquer país, tem o seu exército e os seus soldados. Não se sabe se essa pátria obscura se encontra ou não em guerra, nem se a missão do soldado é pacífica ou de combate. Esta ignorância permite que cada um construa uma história, conforme os seus desejos ou as suas necessidades. Haverá quem veja no soldado um agente de paz, um cidadão de um país em que a vida decorre sem os percalços da guerra. Outros fantasiarão o soldado em plena batalha, tomado pelo ardor do confronto, inclinado para o heroísmo. Isto mostra que uma expressão como O Soldado das Sombras é, na verdade, um portal por onde se entra para diversos mundos, muitas vezes estranhos uns aos outros. Contudo, a expressão é apenas um caso particular de um fenómeno muitos mais amplo e geral que é a linguagem. Esta é muito mais do que uma meio de comunicação ou de expressão, mas a abertura que permite aos homens entrar no mundo. Este, porém, deverá ser entendido como um substantivo colectivo. Mundo significa o conjunto infinito de mundos possíveis e imagináveis.