Por vezes, as traduções operam verdadeiros milagres. Datado de 1960, o filme Le Petit Soldat, de Jean-Luc Godard, não teve por título, neste pequeno país, o literal O Soldadinho, mas O Soldado das Sombras. Uma tradução feliz, não apenas porque capta a natureza sombria do exército a que o soldado pertence, mas pela conjugação do efeito metafórico do vínculo entre soldado e sombras e, ainda mais, pela presença da aliteração na primeira sílaba de ambas as palavras. Talvez a tradução seja contraproducente, pois contém tal força que dispensa o próprio filme. Ela abre a imaginação a uma viagem que começa no país das sombras que, como qualquer país, tem o seu exército e os seus soldados. Não se sabe se essa pátria obscura se encontra ou não em guerra, nem se a missão do soldado é pacífica ou de combate. Esta ignorância permite que cada um construa uma história, conforme os seus desejos ou as suas necessidades. Haverá quem veja no soldado um agente de paz, um cidadão de um país em que a vida decorre sem os percalços da guerra. Outros fantasiarão o soldado em plena batalha, tomado pelo ardor do confronto, inclinado para o heroísmo. Isto mostra que uma expressão como O Soldado das Sombras é, na verdade, um portal por onde se entra para diversos mundos, muitas vezes estranhos uns aos outros. Contudo, a expressão é apenas um caso particular de um fenómeno muitos mais amplo e geral que é a linguagem. Esta é muito mais do que uma meio de comunicação ou de expressão, mas a abertura que permite aos homens entrar no mundo. Este, porém, deverá ser entendido como um substantivo colectivo. Mundo significa o conjunto infinito de mundos possíveis e imagináveis.
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