Este é o dia mais pequeno do ano. Também este deve ser o texto mais pequeno, não apenas em dimensão, mas na relevância dos assuntos. É um texto solsticial de Inverno que tem a energia de nada dizer. Deixa que as palavras a escrever soçobrem no silêncio, como a luz se dissolve nas trevas. A matéria do mundo e o espírito extramundano calam-se, como se tudo estivesse para acabar na sonolência do crepúsculo.
domingo, 21 de dezembro de 2025
sábado, 20 de dezembro de 2025
Tábua de salvação
A suspensão voluntária da descrença proposta por Coleridge, como uma espécie de fé poética, seria aquilo que permitiria ao leitor acompanhar a leitura de obras com personagens fantásticas como se estas fossem reais; um pacto tácito entre autor e leitor. A expressão teve – e tem – um enorme sucesso, tendo-se transferido do terreno da literatura fantástica para outros géneros fantásticos, como a ficção científica, mas também para a ficção literária. Não seria descabido, todavia, pensar que, para ler, por exemplo, livros de História baseados em investigação séria, também é preciso suspender voluntariamente a descrença, descrença aqui baseada na desconfiança na possibilidade de recuperar, através da investigação, o passado – melhor, de construir uma imagem ou representação exacta desse passado. Todavia, essa não será ainda a utilização mais proveitosa e corrente que se faz da tese de Coleridge. Onde ela é mais eficaz é na nossa relação quotidiana com a realidade, tanto a natural como a social e a individual. Vivemos segundo um conjunto de crenças sobre essas realidades que estão muito longe de terem fundamento. Ora, se procurássemos o fundamento dessas crenças, a vida tornar-se-ia impossível, pois ficaríamos presos em investigações que nunca teriam fim. A educação é o processo em que aprendemos a suspender a descrença sem que nos apercebamos disso. Formamos crenças sobre a ameaça da descrença, mas esta, pelo hábito em que somos formatados, está suspensa. Voluntariamente? Não, se se olha do ponto de vista do indivíduo; sim, se se observa a partir da espécie. A espécie humana é aquela que aprendeu a suspender a descrença para poder persistir. Só de modo muito limitado e controlado é que se permite o questionamento das crenças e se põe de lado essa suspensão voluntária da descrença, que é a tábua de salvação de uma espécie que teve por destino ser dotada de razão.
quinta-feira, 18 de dezembro de 2025
Lassidão
Numa da estantes, estava um pequeno caderno de capa dura. Na prática, um bloco-notas. Terá já uns anos, apesar de parecer novo. O que desmente essa plausível juventude é o elástico que se apresenta lasso e incapaz de cumprir a sua função de manter o caderno fechado. Está em branco, com a excepção da primeira página, onde descubro uma lista de nomes, escrita com a minha letra, mas cujo nexo não consigo entender. Seis desses nomes eram-me desconhecidos. Os outros dois eram os romancistas László Krasznahorkai, o Nobel da literatura deste ano, e Elsa Morante, autora do romance A História. Os outros nomes, fui pesquisar, eram de um mestre zen japonês, de dois místicos medievais, de um autor, também medieval, de legendas de santos, de um psicólogo norte-americano e de um historiador holandês. Gostava de saber duas coisas: há quantos anos escrevi essa lista; o que estava a fazer aquela gente junta. Depois do nome de László Krasznahorkai estão, entre parêntesis e separadas por ponto e vírgula, duas palavras, mas não consigo decifrar nenhuma. Há uma lição, porém, que é evidente. Muitas das coisas que fazemos, se não a maioria, morre sem dar qualquer fruto. Nem tentativas são, apenas esboço que, por certo, não chegou ao estatuto de ideia. Olho o bloco-notas, a sua bela encadernação e apiedo-me dele, pelo elástico castanho bambo e pela página conspurcada pela minha letra, sem que disso tenha havido qualquer resultado. Também os objectos não devem ser usados em vão.
quarta-feira, 17 de dezembro de 2025
Docta ignorantia
Mais uma semana e estar-se-á naquele dia de azáfama preparatória que culminará com o jantar da noite de Natal. Uma semana talvez seja suficiente para a preparação dessa noite. Tal como no futebol – pelo menos, no de antigamente, que é aquele que conheço – havia uma semana para preparar um jogo que estava liquidado em menos de duas horas. Hoje, nada sei de futebol, embora ainda vá sabendo alguma coisa de noites de Natal, mas mesmo nesta sabedoria estou a caminho da docta ignorantia. Não sobre Deus, que era a douta ignorância de Nicolau de Cusa. Este sublinhava, assim, a limitação da razão humana para conhecer o absoluto. A minha, porém, é sobre as coisas mais triviais que os homens têm a pretensão de conhecer, seja com a razão, seja com os sentidos. Sou mais radical que o velho Cusano. A minha ignorância é, ao mesmo tempo, infinitamente grande e infinitamente pequena. Um problema de coincidentia oppositorum. No caso deste narrador desprovido de veia narrativa, a ignorância é sobre o infinitamente grande, sobre o infinitamente pequeno e sobre aquilo que fica entre os dois. O que perfaz uma verdadeira coincidência de desconhecimento. Um agnóstico. Mesmo o que sabe sobre as noites de Natal é mais ignorância do que sabedoria. Resta a sabedoria do futebol de antigamente, mas também essa não é uma autêntica sabedoria histórica, mas um conjunto de memórias que insistem em não ser apagadas com a passagem dos anos. Por vezes, entro por dentro de um discurso e descubro que ele é um labirinto. Descubro também que Ariadne se esqueceu de me dar o fio que me traria a bom porto. Perco-me e perder-se é ainda uma forma de ignorância, mas pouco douta.
terça-feira, 16 de dezembro de 2025
No princípio, era a onomatopeia
Ao ler um verso – levando a mão à boca entoei a canção inteira das onomatopeias – de Herberto Helder, ocorreu-me que todas as palavras que usamos podem ter a sua origem remota em onomatopeias, em imitações de sons naturais. O problema, porém, é se esta imaginação foi agora produzida por mim ou se é o resultado de uma leitura antiga que o tempo apagou. Sei que há quem pense que as palavras que usamos são metáforas mortas, que estando mortas passam a ter uma significação corrente, vulgar, que permite a comunicação entre nós. No princípio estava a poesia, que o tempo transformou em prosa. Contudo, a hipótese onomatopaica da origem da língua talvez seja mais interessante: seria a natureza a falar através do aparelho de fonação humano. Com o correr dos séculos, aquilo que era uma expressão criada por uma imitação directa dos sons naturais, perdeu o contacto com essa natureza, autonomizou-se e ficou submetido à memória e às regras humanas do uso da linguagem. Isto que estou a imaginar, porém, já deve ter sido pensado por alguém, mas desconheço quem, ou não me lembro por quem. Pensemos na palavra árvore. Quase ouvimos o vento passar entre os ramos, mas esta é uma palavra muito tardia, descendente da latina arbŏre. Esta terá tido um antecedente indo-europeu, e este outros que nem reconstruídos conseguimos imaginar. Deixemos esta arqueologia para os arqueólogos da linguagem. Se for aceitável a origem onomatopaica de todas as palavras, o poeta não podia ter cantado a canção inteira das onomatopeias. Faltar-lhe-ia o fôlego para projecto tão hiperbólico. Talvez ele quisesse impressionar o leitor. E o verso seguinte, separado não apenas pela mudança de linha, mas também por um ponto e vírgula, parece confirmar este desejo de impressionar o leitor ao escrever: era guerra. Como se caça uma fêmea com tanto sangue entre as ancas? Um problema impressionante e difícil de resolver. Pelo menos enquanto não soubermos que onomatopeias estiveram na origem de palavras como guerra, caça, fêmea, sangue e, de modo especial, ancas. Tivesse eu acesso a essas onomatopeias – as primeiras que saíram da boca humana – logo explicaria a estratégia de caça. Assim, limito-me a esperar que alguma fêmea me cace, enquanto procuro o arco. Elas são nisso muito melhores do que os machos, apesar destes pensarem o contrário. Elas conhecem a origem onomatopaica da linguagem, mas recusam-se a partilhá-la, a não ser com as suas filhas fêmeas, para que estas sejam, também elas, caçadoras, cheias de onomatopeias prontas a lançar do arco das suas bocas.
segunda-feira, 15 de dezembro de 2025
Uma parábola
Os dias continuam a empequenecer. O pior, para eles, é que isso não deriva de uma escolha sua, tão pouco é o resultado das suas acções. Os dias são puros, virginais, contudo não se conseguem subtrair à acção do destino. E este é injusto. Para uns dias, decretou ele a pequenez; para outros, a grandeza. O mais absurdo é que os dias pequenos se sentem culpados da sua pequenez, e os grandes, da sua grandeza. Deixaram-se contaminar pela narrativa meritocrática, dir-se-á. A verdade, porém, é que pequenez e grandeza – dos dias, note-se – são decretadas por uma entidade que nem pequenos nem grandes dominam ou sequer conhecem. Se eles conhecessem aquilo que lhes determina a dimensão, teriam outra percepção da sua vida. Os pequenos sentir-se-iam menos infelizes; os grandes, menos orgulhosos. Será isto uma parábola sobre a grandeza e a pequenez dos homens? Não, claro que não. Os homens são responsáveis. Ora se alguém tem um metro e sessenta, isso deve-se a más decisões suas. Também aqueles que têm um metro e noventa, têm-no porque fizeram boas escolhas. Sim, este texto é uma parábola, mas a sua referência são as coisas que não existem como os dias e as noites.
domingo, 14 de dezembro de 2025
Um jesuíta não se reforma
Há muito tempo que não o ouvia, disse, respondendo à saudação vinda pelo telemóvel. Tenho andado ocupado. Uma viagem a Itália, assuntos de família, e actividades da Companhia. Quando é que um jesuíta se reforma, perguntei ao meu amigo, padre Lodovico Settembrini, padre Lodo, como é conhecido. Um jesuíta nunca se reforma, respondeu. Pode é não ter forças para prosseguir no caminho. Por vezes, vão me faltando, mas, apesar dos oitenta terem chegado já há uns anos, ainda resisto. Uma questão de persistência, sublinhei. Isso, respondeu, mais do que resisto, persisto, sem problemas de maior, talvez um pouco surdo e algum reumático, mas há uns santos analgésicos que ajudam a suportar as crises, disse. Na verdade, continuou, a actividade é reduzida, o que me dá tempo para ler. O que anda a ler? Jon Fosse, respondeu. Quer descobrir a razão por que ele se converteu, perguntei. Não tenho essa ilusão. O que leva as pessoas a converterem-se, nem as próprias sabem. Foi o que aconteceu consigo? Claro, uma improbabilidade, mas aqui estou. Voltando ao norueguês, prosseguiu, parece um exercício litúrgico em forma de narrativa. Há uma iteração constante, respondi, e iteração por iteração, prefiro o Thomas Bernhard. Ouvi um riso. Sim, sim, é a sua costela de cínico misantropo, mas eu acho, continuou, que, mais tarde ou mais cedo, vai preferir Fosse a Bernhard. Talvez eles sejam estações num caminho. No início, o austríaco e, no fim, o Fosse. Não foi, porém, para discutir literatura que liguei, mas para saber quando vem a Lisboa. Descobri um belo restaurante para os lados da Lapa, onde se podem experimentar pratos dos sítios por onde os portugueses andaram. Podemos juntar o grupo. Respondi, que marcasse o dia. Contudo, informei, estou condenado à frugalidade. Estamos no Advento, não na Quaresma, ouvi. Imagino, disse eu, mas, por questões de saúde, entrei para uma Quaresma sem fim à vista, a não ser aquele que está destinado a cada um. Uma cedência pontual à gula, respondeu, não é pecado mortal. Ri-me.
sábado, 13 de dezembro de 2025
A loucura da Terra
Veio a noite. Uma constatação. Contudo, há nesta constatação uma presunção que denuncia um erro do espírito. As noites e os dias não vêm nem vão. Também é uma imprecisão afirmar: caiu a noite. Não, a noite não cai. Se ela caísse, ouvir-se-ia um estrondo, alguém ou alguma coisa poderia ficar esborrachado. Nada disso acontece. Nem sequer podemos dizer que, como sucede em casa, se apagou a luz. Não há um interruptor para ligar e desligar a luz do dia. O facto é que apenas o planeta rodou sobre si mesmo e pôs-nos, por algumas horas, escondidos do Sol, o qual permanece, em aparência, estático, cabendo aos planetas o triste serviço de rodarem à volta de si mesmos, como se tivessem enlouquecido, enquanto orbitam o astro. Portanto, nem a noite nem qualquer agente humano ou divino são sujeitos da acção veio a noite ou caiu a noite. O único sujeito é a Terra que girou sobre si mesma, o que, como foi dito acima, é sinal loucura. Talvez o verdadeiro sujeito de frases como veio a noite, veio o dia, caiu a noite, levantou-se o dia seja não a Terra, mas a sua loucura. Se temos noite e dia, devemo-lo à loucura que se apoderou da Terra que, num acesso de melancolia, se pôs a girar sobre si mesma. Um dia, quem sabe, o Sol como patriarca do sistema solar, a mande internar num hospício para planetas. Então, deixaremos de ter dia e noite. Uns terão só dia; outros apenas noite. A Terra, porém, curar-se-á e ficará imóvel, como imóvel estava o deus de Aristóteles, a que este dava o prosaico nome de primeiro-motor: não se movia, mas fazia mover o mundo. Também eu gostava de ser um motor imóvel. Saiu-me um destino avesso ao desejo: sou móvel, mas de motor nada tenho.
sexta-feira, 12 de dezembro de 2025
Um mistério
Num dos livros, em segundo mão, que comprei online e que me chegou ontem, havia, por baixo da dedicatória do autor a um seu amigo, uma assinatura de posse e a indicação do mês – Novembro – e do ano – 1964. O nome é feminino e a assinatura é clara, permitindo o nome da desconhecida proprietária da obra. Procurei, dentro do livro, mais vestígios daquela mulher, em vão. A única coisa que me resta é um nome próprio composto por dois, um que caiu em desuso e outro, Maria, que parece nunca ter passado de moda, seguido de um apelido reduzido à inicial e um outro completo. A letra, apesar de muito bem desenhada, afasta-se dos estereótipos da letra feminina da época. Quem em 1964 leria, em Portugal, Ignazio Silone, o autor do pequeno romance A Raposa e as Camélias? Talvez a detentora do livro fosse professora num Liceu de província. Para matar as horas enxameadas da melancolia do interior, lia romances. Talvez fosse uma leitora contumaz, uma intelectual em formação, em tempos de universidade. Não. Prefiro-a como professora, ainda no início de carreira. Sem marido. Claro que ela, tal como a vejo dentro da sua letra, merece um marido, mas esse tipo de coisas pouco tem que ver com o mérito. Há nela, percebo-o pelo modo como coloca o hífen entre Novembro e 1964, uma beleza discreta, rodeada por um leve pudor e uma segurança que afastaria os homens. Todos? Ela esperava que não, disso estou certo. Se casou, perguntam-me. Ainda não o sei. Só saberei se, um dia, num outro livro comprado num alfarrabista vier uma assinatura de posse com aquela letra, aquele nome adornado com o acréscimo de um apelido. Se ela tivesse menos vinte anos, por certo não me importaria, tal como a vejo no desenho da sua letra, que fosse o meu. Não foi, ela não tinha menos 20 anos.
quinta-feira, 11 de dezembro de 2025
Falibilidades
Há pouco, nem sei a razão, pensei que hoje era dia 12 de Dezembro. Enfim, acertei no mês, apesar de falhar no dia. E quando não se falha no dia, há-de ser na hora ou no minuto, pois quanto aos segundos, são tão fugidios que falhar neles não é falhar, mas acertar por aproximação, umas vezes por excesso; outras por defeito. O meu nível de falibilidade já está no grau três. O grau quatro é falhar no mês, e o cinco é não acertar no ano em que se está. A partir daí é inútil introduzir novos valores na escala de falência temporal. Quando se atinge o grau quatro, a situação é grave. A patologia avançou mais do que devia. Trocar o dia 11 com o 12 ainda é aceitável, trocar o mês, mesmo para um ser humano, é falibilidade em excesso. E há quem o troque. Diga: Ah! Este Junho está frio, até parece que estamos em Dezembro. Mais raro, também há quem pense: este ano de 1987 está a ser difícil, ou que afiance que estamos em Dezembro de 2056. Haverá tratamento para isso? Não sei. Quando vou ao médico nunca lhe falo do assunto, senão manda-me fazer pilates. Já fui assim insultado por dois, por motivos diferentes. A princípio pensei que ele estava a falar de Pilatos, de Pôncio Pilatos. Achei estranho que a conversa derivasse para acontecimentos bíblicos e nem percebi a que propósito eu devia fazer de Pilatos. Ainda olhei para as mãos, para ver se as tinha de lavar. Tudo em ordem. E Pilatos não era pilates. Depois, percebi que era qualquer coisa tipo ginástica. Franzi o sobrolho. Disse que sim senhora, cumprimentei o médico, saí do consultório, paguei a consulta. Chegado à rua perguntei-me: em que raio de ano estamos nós? Não consegui perceber.
quarta-feira, 10 de dezembro de 2025
O primeiro Maigret
Acabei de ler o primeiro caso do comissário Maigret, Pietr, o letão. Provavelmente, já o teria lido há muito, numa época distante em que lia os casos de Maigret. Simenon não é um escritor de policiais. É um grande escritor, mesmo nos policiais. Não é a lógica que dirige o inquérito, como em Sherlock Holmes, mas a manifestação da humanidade no criminoso, humanidade essa marcada pela finitude e pela falibilidade. Isto torna o criminoso num homem como outro qualquer. É a sua humanidade que o conduz ao crime. E é isso que o autor explora neste primeiro romance. Não é apenas esta atenção à humanidade, à sua condição existencial, que é fundamental. É também a concepção de justiça. Refiro-me à justiça retributiva. Simenon não nega que a justiça deva retribuir o mal com o mal (qualquer pena é sempre a aplicação de um mal para punir o mal), mas, como no caso deste primeiro romance, a humanidade do criminoso é essencial para que o comissário da polícia lhe permita escolher a dignidade ou a infâmia. Na cultura ocidental, há duas execuções que são arquetípicas. A de Sócrates, que se auto-executa, ao tomar a beberagem venenosa, e a de Cristo, que é submetido à mais infamante das execuções. Só um deus – neste caso, o filho de Deus –pode suportar a cruz, sem que a sua humanidade seja aniquilada. Na morte de Sócrates, há uma afirmação de uma dignidade humana que transcende a aplicação mais radical do direito penal. E Maigret, nesta primeira aventura, surge como um juiz moral que dá a escolher ao culpado a natureza da sua morte.
terça-feira, 9 de dezembro de 2025
Monotonia da secretária
Ainda não estou preparado para caminhar à chuva. Por isso, fiquei em casa em vez de me submeter à agrura dos elementos. Tenho de comprar equipamento adequado, mas hesito, hesito…. Não sei se, mesmo equipado para enfrentar o mau tempo, me apetecerá ir para a rua e expor-me ao delírios chuvosos de S. Pedro. Dir-me-ão – e com razão, reconheço – que estamos em tempo de chuva. Estamos. Diante de mim tenho o romance Fontamara (1930), de Ignazio Silone, publicado em Portugal em 1959. A editora é a Publicações Europa América, que chegou a ser uma das grandes editoras do país, mas que não resistiu às intempéries. O romance mais conhecido de Silone é Vinho e Pão, que, um dia destes, talvez leia. Lembro-me, perfeitamente, de o ver nas livrarias, mas nunca o cheguei a comprar, até que, há dias, decidi adquiri-lo a um alfarrabista. O título é claramente eucarístico, embora a temática, segundo me constou, seja mais de natureza política e, ao mesmo tempo, existencial, o que estaria no espírito da época. A obra é de 1936. Isto recordou-me um quadro de Júlio Pomar, O Almoço do Trolha, que é, na verdade, uma refiguração da Sagrada Família, na sua estrutura triangular. Seria interessante – e talvez tenha já sido feito – estudar como as figuras do espírito revolucionário – nomeadamente, nas diversas artes – dos séculos XIX e XX se fundam na simbólica do cristianismo e que, sem essa simbólica, provavelmente nunca teriam existido. Somos aquilo que somos, e o que somos enraíza-se em Atenas, Roma e Jerusalém. Convém dar atenção às três e não deitar nenhuma borda fora. É o que me ocorre neste dia de chuva, que me impediu – quero dizer: me deu uma justificação ou uma desculpa – de ir fazer a minha caminhada diária. O relógio – um smartwatch que me controla a existência – está a mandar-me mexer, como quem diz: põe-te a andar. Deve estar farto da monotonia da secretária.
segunda-feira, 8 de dezembro de 2025
Estratagemas da natureza
A neta mais nova esteve cá todo este fim-de-semana. Veio em busca de apoio da avó em todas aquelas disciplinas do nono ano que detesta. Uma agenda de trabalho rigorosa, mas com espaços para respiração. Os seus quase quinze anos encheram a casa. Agora, voltou para Lisboa; o dia anoiteceu rapidamente. Os netos são uma espécie de segunda luz. Haverá nesta relação entre avós e netos um estratagema da natureza. Oferece aos mais velhos uma esperança para o tempo que lhes resta. Uma promessa de que a vida continua, não a pessoal, mas a de alguma coisa inexprimível por palavras, mas que se sente no amor entre gerações, nos olhares de expectativa, nos projectos que sendo dos netos, ainda são, por instantes, os dos avós. Agora, vou procurar um jogo de Xadrez a sério. Para o meu neto, claro. Para o ensinar a jogar. O Xadrez é um jogo militar, mas também a vida é milícia que exige um pensamento estratégico claro. O peão avança duas casas e as brancas preparam-se para ocupar o centro, apesar de o negrume da noite ter triunfado sobre a luz anémica do dia.
domingo, 7 de dezembro de 2025
Sombras dominicais
Um domingo de sombras. De manhã, fui caminhar. Na rua onde costuma haver gatos ao sol, não encontrei sequer um. Não havia sol. Pensei: os gatos são animais meticulosos. Se não há sol, não desperdiçam energia vindo para o espaço publico. Se há, ocupam sempre os mesmo lugares. A ausência dos animais foi compensada pela multidão de folhas mortas a ocupar, como um exército invasor, os passeios. Com a humidade, o processo de decomposição acelera-se e o risco de queda dos transeuntes aumenta exponencialmente, ainda por cima em passeios calcetados, uma fixação dos autarcas e uma ameaça contínua para os cidadãos. Seja a humidade do tempo frio, seja o polimento das pedras de calcário no tempo quente, a queda é sempre uma possibilidade real. Contudo, que importância podem ter meia dúzia de quedas perante o olhar embevecido de um autarca? Sempre que posso, escolho o alcatrão, mas são poucas as ruas em que isso é possível. Enquanto caminhava, ia ouvindo o Quator pour la Fin du Temps, de Olivier Messiaen. O compositor tomou por inspiração um versículo de S. João: Não haverá mais tempo. Ora a música distribui-se pelo tempo, pôr fim ao tempo é também pôr fim à música. Talvez esta seja uma reminiscência da eternidade, mas uma música eterna é uma contradição. Aquilo de que a música é uma cópia, para falar à maneira de Platão, nunca, neste mundo, o saberemos. E nesta ignorância, uma pessoa caminha, observa os gatos ou a sua ausência, as folhas caídas, com a música em fundo, como uma promessa de eternidade num acto da mais prosaica temporalidade. As sombras ainda não desapareceram deste domingo, nem da minha mente, nem daquilo que escrevo. Hélas!
sábado, 6 de dezembro de 2025
Não ter silêncio
Maurice Maeterlink escreveu que há indivíduos que não têm silêncio, e que matam o silêncio à sua volta. Note-se que esses indivíduos têm uma deficiência ontológica: não têm em si silêncio. Têm no seu ser uma deficiência irremediável. Falta-lhes o silêncio como a outros falta a visão, a audição ou a fala. E isso é uma calamidade para quem os rodeia. Como a patologia não é reconhecida, ninguém se preocupa com a cura ou a minimização do problema. E aquele que não tem silêncio em si, não pára de derramar o ruído onde quer que esteja. A única solução é o afastamento. Perante alguém que não tem silêncio, a melhor conduta é ir para longe. Nem sempre, porém, é possível. Acontece – e não tão poucas vezes quanto se pensa – que nos deparamos com uma irmandade destes doentes, a que é difícil fugir, pois ela funciona em onda e, ao mesmo tempo, em rede. Sentimo-nos afogados no ruído ou presos nas malhas da vozearia. É nessas horas infelizes que descobrimos a paciência como uma das mais valiosas virtudes.
sexta-feira, 5 de dezembro de 2025
Leitura e halterofilia
Não sei o que me perturba mais, se o ensaio da banda de rock da escola aqui ao lado ou o número de páginas do novo romance de Gonçalo M. Tavares, 912, segundo vi no Público. À primeira vista, o ensaio é mais invasivo, mas só se realiza à sexta-feira e dura relativamente pouco tempo, pois os músicos, um deles um rapaz da minha idade, os outros não conheço, não terão o fôlego que um dia tiveram. Acontece a todos. E o problema reside mesmo no fôlego, no que toca ao romance – O Fim dos Estados Unidos da América - Epopeia. Não o fôlego para enfrentar aquelas páginas todas, mas para segurar o livro nas mãos. Fui ver ao site da editora as características do livro. Queria saber se, por acaso, estava lá o peso. Fiquei admirado: estava mesmo. Uns módicos 1166 gramas; isto é, quase um quilo e duzentos gramas. Não posso com o livro, pensei. Ao fim de uns minutos de leitura vai-me doer a coluna – a partir de certa altura da vida, a coluna tem tendência a doer. Ainda pensei: Bem, talvez o livro seja bom para exercitar a musculatura dos braços – a partir de certa altura da vida, os músculos têm tendência a definhar. Afastei, porém, o pensamento e a futura musculação. Para que me servem os dispositivos de leitura electrónica que pululam nesta casa, perguntei-me. Lá fui pesquisar nas livrarias do Kindle e do Kobo. A editora, porém, preocupa-se imenso com a musculatura dos braços dos leitores e não abre os seus livros (haverá uma ou outra excepção) a ciberleitores, como seria o meu caso. Parece que o ensaio do conjunto já acabou, também o dia definha. O problema da leitura do romance é que está por resolver. Se decidir comprar o livro, inscrevo-me também no ginásio que há ao fundo da avenida e faço musculação durante um mês antes de começar a ler o romance. É possível que no fim da leitura, não apenas tenha uma musculatura de braços digna de um halterofilista, como os próprios Estados Unidas da América tenha acabado e dado lugar a outros países. Nunca se sabe o que pode acontecer quando se começa a fazer musculatura para ler um livro.
quinta-feira, 4 de dezembro de 2025
Teatralidades
Mais logo, terei de me deslocar à capital do distrito aqui ao lado, o que fica para Norte. Vou ao teatro, mas não faço ideia do que vou ver. Queres ir ao teatro? Respondi que sim, mas não sei se perguntei para ir ver o quê ou quem. Provavelmente, não. Daqui a pouco irei olhar para os bilhetes electrónicos e descobrir o que houver para descobrir sobre o assunto. Nisto há uma mistura de confiança em quem propõe e diminuto entusiasmo pela arte dramática. Há tempos cheguei à triste conclusão de que prefiro ler as peças a vê-las encenadas. Um encenação é sempre um exercício de limitação, uma fronteira que se traça à imaginação. A leitura tem a vantagem de deixar a livre imaginação fluir, tanto no cenário como nas personagens, seja no seu aspecto, na sua voz, no modo como se vestem. Tudo isso está em aberto e é o leitor que o fecha. Na representação, o número de coisas fechadas é grande, e o espaço para imaginação, continuando a existir, é diminuído de modo drástico. Aquele actor, aquela actriz, aquelas vozes, aquele cenário. São esses limites, porém, que tornam o teatro possível, pois este é representação e toda a representação é uma interpretação, a qual é sempre um traçar de limites. Talvez nesta inclinação para a leitura esteja um laivo de misantropia. Uma peça teatral implica a presença da humanidade na pessoa dos actores. No texto, apenas existem palavras combinadas. Quem as produziu, não é visível. Seja como for, sempre posso dar a justificação teórica de que não é misantropia que me move na indiferença pelo teatro, mas a limitação da imaginação que toda a representação impõe. Corro menos riscos, num mundo em que é fácil correr riscos por se ter opinião pouco humanitária sobre isto ou sobre aquilo. Seja como for, não posso dizer que não sou um humanista. Sou, mas um pouco misantropo. Aliás, é plausível que os maiores humanistas sejam, ao mesmo tempo, os maiores misantropos.
quarta-feira, 3 de dezembro de 2025
Pretéritos imperfeitos
É possível que já tenha escrito aqui sobre o pretérito imperfeito. Também é possível que não, que nunca o tenha feito. Não, temos de ser exactos, pois a verdade também reside na casa da exactidão: no outro dia, escrevi sobre ele. Uma pesquisa no word revelou-me que foi há pouco tempo. Volto a ele porque é assim que me sinto perante este dia, cinzento e frio. Sou uma imperfeição pretérita. Não haja equívocos. Não é a imperfeição que é coisa do passado, sou eu. A imperfeição continua presente, persiste, vence os obstáculos que o desejo de perfeição – se eu tivesse tal desejo – lhe possa pôr no caminho. Sou uma acumulação de pretéritos. Aqueles que me são mais próprios são os pretéritos imperfeitos do conjuntivo. Se eu soubesse escrever, seria escritor. A imperfeição nasce-me de as minhas preposições condicionais nunca se transformarem em categóricas. Falta-me o talento para preencher as condições, logo o meu destino é a imperfeição de cada dia. Sim, é verdade, eu podia falar de outra coisa, caso não me faltasse imaginação e me ocorresse alguma.
terça-feira, 2 de dezembro de 2025
Frugalidade imoral
Enquanto contemplava a chuva, dei por mim a pensar sobre o Abade de Mably (1709-1785). Não teria grande vocação eclesiástica; interessava-o, fundamentalmente, a filosofia política e a economia. Pode ser contado entre os precursores da vaga de igualitarismo que explodiu no século XIX, com repercussões ainda no XX. Para além do igualitarismo, tinha opiniões ao arrepio da cosmovisão em que vivemos. Por exemplo, defendia a ideia de que o luxo e o comércio excessivo corrompem. Pior ainda: o Estado deve promover a frugalidade. A justa medida – para evitar o excesso e a corrupção dos costumes – e a frugalidade são ideias moralmente valiosas, mas que os nossos dias não suportam. Se todos formos frugais e evitarmos o excesso de consumo, a economia mundial entrará em colapso, com repercussões nos rendimentos da generalidade dos seres humanos. No mundo de hoje, será pouco caridoso ser frugal. A sobriedade e a moderação podem ser boas para o indivíduo, mas não passarão de um exercício egoísta. Um egoísmo que recusa, em nome da moral, oferecer ao seu ego todos os objectos dos seus desejos possíveis e mesmo alguns dos impossíveis. Talvez exista um problema qualquer quando aquilo que é moralmente saudável se torna um problema para os outros. A moralidade, que nasceu da necessidade de respeito pelo outro, tornou-se uma imoralidade. Também a chuva que há pouco caiu foi frugal. As nuvens recusaram-se a verter mais água, retiraram-se e deixaram o sol brilhar. Uma conduta imoral, pois sempre precisamos de água para encher as barragens e podermos consumi-la segundo o excesso que a nossa virtude contemporânea exige.
segunda-feira, 1 de dezembro de 2025
Dia do desacastelhanamento
Esta manhã, ao fazer a caminhada diária, estranhei, sendo segunda-feira, o ar de domingo que o dia me mostrava. Poucos carros a circular e ainda menos gente pelas ruas. Uma caminhada solitária, quase num deserto povoado de fantasmas. Depois, ao ver alguns gatos a apanhar sol, sem preocupação com o modo de ganhar a vida, assaltou-me a ideia de que estivessem em dia feriado. Afinal, não eram eles, mas nós, portugueses, que celebramos mais um aniversário de nos termos visto livres de um rei espanhol, de uma corte espanhola, de uma monarquia que, apesar de se dizer o contrário, era, efectivamente, espanhola. Se há país de que gosto, é de Espanha. Contudo, nem por um minuto gostava de ser espanhol ou, pior, estar sob o domínio dos senhoritos de Castela e Leão. Também nada tenho contra os castelhanos, mas não quero ser castelhano. Por isso, acho bem que o dia 1 de Dezembro seja feriado e nos possamos congratular com a decisão do Duque de Bragança aceitar a coroa das mãos dos insurrectos e apagar as leviandades de um rei que julgava estar numa época, mas estava noutra. O que lhe foi fatal lá para as terras da moirama. A ele e a nós, que tivemos de acastelhanar durante sessenta longos anos. Merecemos o feriado, os humanos portugueses porque se libertaram dos castelhanos; os gatos porque não sabem viver sem feriados, e um mundo sem gatos, mesmo castelhanos ou leoneses, o que não era o caso, como me apercebi ao falar com eles, não seria a mesma coisa.